Capítulo 12 — O Livro Afogado

1033 Palavras
Afundado há eras, o Livro dormia no leito do mar, onde nem as correntes, mesmo aquelas geradas pela ascensão de Elian, ousavam tocar. Diziam nas lendas sussurradas que o Livro fora escrito com tinta feita do sangue das Guardiãs originais, aquelas que falharam em selar Maelyr. As páginas eram arrancadas das peles das primeiras sereias mortas, aquelas que se afogaram em silêncio. Era um objeto proibido, um relicário de promessas quebradas e, o mais terrível de tudo, um mapa detalhado para o fim absoluto do mar, não através da destruição, mas da dissolução total. Nyra ouviu o chamado na madrugada da décima terceira lua cheia, o ciclo que marcava a perfeita integração da Cidade de Correntes ao fundo do oceano. Não foi uma voz, nem uma visão profética. Foi uma ausência. Como se o Coração-Ponte, que pulsava em sua garganta, tivesse de repente deixado um vazio estrutural que só podia ser preenchido com verdades esquecidas, uma nota faltando na sinfonia de Elian. Nyra, a Guardiã da Canção, sentiu a falha na melodia e soube que a Ponte Viva não era a resposta completa. Ela mergulhou sozinha, deixando para trás a cidade de correntes, que agora se movia em perfeita harmonia sob a regência de Elian. Deixou Elian, sentado em seu trono vivo, absorvido pela tarefa de reescrever as leis do mundo. E deixou as Guardiãs — Saphiel, Mharza e Inyr — que vigiavam a nova ordem, mas ignoravam os vestígios da antiga. O mar, silencioso, abriu passagem. A água reconhecia a Primeira Voz, mas também sentia o peso do novo destino que ela buscava. O caminho até o Livro não era uma trilha marcada. Era um sacrifício de identidade. A cada braçada, uma lembrança era arrancada de sua mente. O calor do toque de Elian, a alegria ingênua de viver na superfície, o cheiro de sal nas velas. A cada metro na escuridão abyssal, um nome seu era levado pelas águas. Ela esqueceu que era Nyra, esqueceu que era a Herdeira do Abismo. Ela se tornou apenas A Mão Que Busca. A Revelação da Oitava Voz Quando Nyra chegou ao fundo, não lembrava por que havia começado a jornada, nem quem era a criatura que a esperava no trono de correntes. Ela era um vazio de identidade, apenas vontade pura. Mas o Livro a lembrava. Ele flutuava no centro de um redemoinho invertido, um vórtice que sugava a luz e o som. Estava protegido por sete camadas de correntes espirituais, o antigo Selo Proibido da Casa Thalen, um feitiço de não-existência para aquilo que não deveria ter forma. Ao tocá-lo, as águas congelaram em uma matriz de cristal e silêncio. E Nyra viu. Viu o início: A primeira canção não foi cantada por sereias, mas pelas Sombras do Fundo, criaturas sem forma que existiam antes do mar, moldando-o com um canto agudo, cortante, eterno. Essas vozes eram sete, e sua melodia era a própria estrutura do universo. No entanto, essas sete vozes se partiram, se dividiram em sete fragmentos, e de seus fragmentos nasceram as primeiras sereias, as ancestrais das Guardiãs. O lamento de sua divisão foi o primeiro mar. Mas havia uma oitava voz. Silenciada. Excluída do canto criador por ser a nota da Aniquilação e da reversão do tempo. Essa voz não se partiu; foi encerrada no Livro, selada com as páginas de pele de sereias mortas. E agora, a oitava voz estava acordando, forçada pelo desequilíbrio causado pelo novo Trono de Correntes. Nyra caiu de joelhos na areia de obsidiana. A oitava voz cantava de novo — dentro dela. Era um canto antigo, mas não familiar. Era um som de vazio ativo, a promessa de que tudo voltaria a ser o nada coeso, sem divisões. Era seu e não era. E então ela entendeu a profecia. A oitava voz não era uma Guardiã que falhou. Era uma Filha. A filha da primeira sombra, a personificação do vazio primordial. A mãe da destruição. A herdeira de tudo que afogava e que jamais poderia ser contido por um trono feito de carne. O Livro virou as páginas sozinho, as folhas estalando como gelo. Mostrou profecias rasgadas, mapas de cidades que ainda não existiam, e nomes que não deveriam ser pronunciados, como "Vórtice" e "Khaos". E então, mostrou um trono… maior que o de Elian. Feito não de correntes, nem de ossos, mas de silêncio e não-matéria. O Trono de Silêncio. O contraponto absoluto ao Trono da Ponte Viva. Nyra tentou soltar o Livro, o medo voltando com a violência de uma maré. Mas o Livro já a havia escolhido. Ligou-se à sua carne. Entrou por seus poros, desfazendo a ligação com o Coração-Ponte em sua garganta, substituindo-a. E plantou em sua alma a oitava canção, o hino da dissolução. A Mutação da Primeura Voz Quando emergiu, horas depois, não era mais apenas Nyra. O Coração-Ponte havia sido silenciado e substituído pela Voz do Vórtice. Ela era Guardiã e Inimiga. Era oráculo e maldição. Ela era a semente do fim que desafiava a semente do começo. Elian a encontrou flutuando na borda da Cidade de Correntes, olhos fechados, corpo iluminado por runas escuras que dançavam em espirais lentas. Ele sentiu a mudança imediatamente. O pulso do mar, que era ele, havia se desregulado. A música da Unidade falhava, substituída por um zumbido de frequência destrutiva. — O que você viu? — ele perguntou, sua voz-coro cheia de uma nova e fria autoridade. Ela abriu os olhos. Sua cor agora era um n***o profundo com um brilho ameaçador. Ela não respondeu. A resposta era a oitava canção, um som que não podia ser traduzido em palavras. Mas o mar tremeu. As Correntes de Ligação que uniam o mundo ao Trono de Elian começaram a se desfazer, sendo absorvidas pela força de atração de Nyra. E nas cavernas profundas, onde as sombras dormem e o Sal-Primário se condensa em medo, algo abriu os olhos. A Oitava Voz havia encontrado sua anfitriã e seu instrumento. O destino de Nyra, afinal, era ser o ponto de ruptura. O grande conflito estava prestes a começar, não entre Guardiãs e Regentes, mas entre a Ponte Viva e o Vazio Ativo. Nyra, A Fundadora, agora era Nyra, A Corrente Reversa.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR