O primeiro som não foi um trovão. Foi um suspiro.
Lento. Profundo. Como se o próprio céu, que agora ostentava a cicatriz da f***a, estivesse prendendo a respiração por séculos, contendo a verdade, e, finalmente, deixasse escapar o ar da memória.
Então vieram as rachaduras de luz, rompendo o azul além das nuvens. Não eram relâmpagos. Eram fendas, cortes finíssimos no tecido do firmamento, por onde escorria algo espesso, reluzente, translúcido: água.
Mas não qualquer água. Era o mar de cima, o oceano primordial que havia se evaporado em segredos e havia sido aprisionado no esquecimento da humanidade.
Elian olhava para cima, ofegante, o Ponto Zero absorvendo a física invertida. Não havia vento, não havia chuva. Havia queda livre da origem. A água não descia em gotas. Ela deslizava, flutuava no ar, tomando formas que se desfaziam e renasciam a cada segundo, desafiando a gravidade da negação.
Cardumes cruzavam o céu. Peixes-lua flutuavam entre prédios. Tentáculos de algas celestiais dançavam em volta de antenas de rádio, forçando a natureza a reivindicar o espaço artificial.
Nyra estava de pé. O corpo inteiro iluminado por uma bioluminescência azul, a luz do abismo. O cabelo se agitava mesmo sem vento. Os olhos eram completamente prateados agora — sem pupilas, apenas o reflexo da Canção Inteira.
Ela ouvia tudo. Ouviu o mar de cima falar em sílabas antigas. Ouviu o choro dos que estavam secos por dentro, libertando a dor reprimida. Ouviu os nomes dos esquecidos, o vasto coro de todas as almas perdidas no ciclo da mentira.
A primeira onda caiu sobre a cidade como um abraço de origem. Não destruiu o concreto; purificou a alma da cidade.
A água tocava e revelava. Onde havia mentira, surgia lama. Onde havia dor, surgia sal. Onde havia silêncio da negação, surgia música, o eco da Canção Inteira.
Nas janelas dos edifícios, velhos gritavam nomes dos pais que haviam reprimido por gerações. Nas ruas, crianças corriam com peixes nas mãos, rindo como se soubessem que eram parte do milagre. Os animais paravam, deitavam, ouvindo a frequência perdida. Tudo estava ouvindo.
E no centro da praça, Nyra se ajoelhou. A Matriz do Vazio tocava a Terra, a Matéria. As palmas das mãos encostadas na terra encharcada. Seus dedos criaram raízes de luz. De onde tocava, nasciam corais. Coloridos. Vivos. Respirando o ar salgado da redenção.
Elian se aproximou. Mas ao tocar o ombro dela, viu imagens, a Canção Inteira comunicando a história através da água.
Fragmentos. Visões.
— O que é isso? — ele perguntou, ofegante.
— Memórias do mar — sussurrou ela. — Coisas que ele guardou quando os homens deixaram de ouvir, antes de Yhsa ser silenciada.
Ele viu…
— Um templo submerso com colunas de ossos.
— Um deus primário que chorava por ter sido esquecido.
— Uma criança humana sendo levada em silêncio por uma corrente viva, a última oferenda para estabilizar a superfície.
— E no fim, o rosto de Nyra, mas como uma imagem arcaica… na superfície da água, como se ela sempre tivesse estado ali, em todas as eras, esperando seu tempo.
O mar de cima continuava a cair. Mas agora, as águas flutuavam ao redor de prédios, criando portas líquidas. Túneis de água que levavam a lugares além da vista.
Ponteiros de relógios giravam para trás. O tempo estava cedendo à Canção Inteira, que reescrevia a história para remover a negação.
E Nyra, no centro de tudo, cantava sem voz. Seus olhos agora projetavam símbolos no ar, letras vivas, a escrita ideográfica de Yhsa, que dançavam e se agrupavam como se estivessem escrevendo um novo evangelho para a humanidade.
Elian percebeu a nova geometria do mundo:
— Não estamos mais em um mundo dividido.
— Estamos no entre.
— O oceano virou céu.
— A terra virou ponte.
— E Nyra virou porta.
Mas portas podem ser cruzadas… ou seladas.
E ao longe, no horizonte agora marinho (onde antes estava a terra), algo se movia. Grande. Escuro. Com olhos que ardiam como brasas sob a água.
Não vinha da terra. Não vinha do céu. Era a coisa esquecida.
A que o mar tentou esconder com a elevação da superfície. A que o nome de Yhsa protegeu por séculos. A Primeira Negação, o Anti-Trono que se alimentava da ilusão humana. A última sombra de Maelyr.
Nyra parou de cantar. A luz azul se apagou em seu corpo.
Elian apertou o selo dividido, sua metade de luz silenciosa, pronto para o último combate.
E juntos, eles olharam para o fim da linha. Porque o mar estava descendo. E com ele… o que nunca deveria subir. A batalha final pelo Retorno estava prestes a começar.