Capítulo 2 — As Três Leis do Mar

1199 Palavras
Não era só Velha Âncora que se agitava. Ao norte, nas ruínas afundadas da Fortaleza de Sal, peixes fugiam em massa, nadando em círculos caóticos e depois flutuando, mortos. O próprio oceano parecia esvaziá-los, preparando-se para a invasão que viria. Em Taryss, a cidade submersa do povo das marés, as estátuas de guardiões milenares tremiam com a profanação. Rachaduras surgiam em conchas petrificadas. Os anciões, de pele translúcida e olhos cegos, sussurravam o veredicto: — A Herdeira profanou o ar com seu canto. Mas pior, ela está lembrando. A Ponte do Esquecimento vai ruir, e os que ficaram serão libertados. Nyra caminhava pela praia sob um céu que se recusava a clarear, cinza como os olhos dos mortos. Ela procurava por algo que só o sal guardava. A areia grudava nos seus pés molhados. Por onde passava, crustáceos viravam de lado, e as ondas se recolhiam, hesitantes, temendo o toque de quem vinha do fundo. Ela ouviu vozes no vento. Sons que só quem vem do fundo pode entender, exigindo que ela voltasse, acusando-a de violar os juramentos: — “Estás quebrando as Três Leis. O retorno será o preço.” Eram três regras sagradas. Pactos costurados com canto e morte. As palavras vinham em sua mente como tatuagens sob a pele, revelando as exigências para seu povo e as consequências para a terra: 1. Não cantarás fora da água. O canto é a alma. E quando solto em terra, envenena os que respiram ar e rasga o véu entre os mundos. Não é um dom. É uma arma. 2. Não amarás os que pisam solo seco. O amor enlaça. Mas o sangue dos dois mundos não se mistura; a conexão cria um vínculo proibido que enfraquece o Trono. O que nasce dessa união nasce… quebrado. Um farol que atrai a escuridão dos abismos, aqueles que foram selados. 3. Nunca lembrarás. A memória é uma âncora. E sereias não têm direito à âncora. Lembrar é trair a profundidade, pois o passado é a chave para a guerra. Nyra já havia violado a primeira lei com seu lamento na capela. E estava muito perto de quebrar a segunda com a atração por Elian. Mas era a terceira que a feria, pois o mar, irado, estava fazendo-a lembrar contra sua vontade. Elian vasculhava os livros antigos na biblioteca abandonada atrás da capela. A vila tinha esquecido ou preferia esquecer aquele lugar. Ele precisava entender quem era ela, e por que o toque dela lhe trazia visões proibidas. Achou, por acaso, um volume grosso encapado com couro seco, que parecia grudar em seus dedos. O título estava em língua perdida, mas ele conseguia ler: “Sobre os Cânticos Afogados e os Nascidos da Ponte” Ali, em traços tortos, lia-se a distinção crucial: "Existem três tipos de criaturas do mar: As que foram moldadas pelo fundo, monstros. As que foram geradas pelas ondas, filhos do sal. E as que foram roubadas do mundo dos homens, rainhas sem coroa, cujo sangue é o único selo." Elian tremeu. Nyra… era uma dessas. Mas qual? A rainha sem coroa. Nyra sentia o corpo mudar rapidamente. Os pulmões ardiam menos. Sua carne estava ficando fria, e o pulso, lento. A pele ficava mais fina, quase transparente, e por baixo dela, as membranas dos ouvidos e a região do pescoço se reestruturavam. Seu sangue azul já não era apenas uma anomalia, era o despertar de sua verdadeira natureza, preparando-a para o fundo. Certa noite, ela entrou no mar. Não para nadar, mas para mergulhar até onde a luz morre, seguindo um ritual esquecido que seu sangue guiava. Mares escuros. Peixes cegos. Vozes antigas. Ela seguiu até uma f***a nas rochas onde uma flor de algas pulsava como um coração. Ali, esperava alguém. — Estás quebrando as leis e despertando a fúria — disse a figura. Era uma mulher feita de pedra marinha, uma Guardiã, com a pele incrustada de cracas. A voz como mil gotas d’água. — Estou lembrando — respondeu Nyra. — Isso é traição ao acordo. O destino de teu povo dependia de teu esquecimento. — Estou sangrando. — Então teu tempo está acabando, Herdeira. A vida em terra está te matando. A Guardiã tocou o rosto de Nyra com dedos de coral branco. — O pacto de silêncio exigia a vida do quebra-regras. Ele ainda vive? Nyra hesitou, sentindo a dor da memória que retornava. — Sim. — Então o pacto foi mesmo partido, e o preço será a guerra. Por causa dele, a maldição Maelyr foi libertada das profundezas. E agora… o trono vai sangrar. Elian começou a ter sonhos mais vívidos. Via Nyra com asas de água, cercada de multidões que cantavam para ela. Via-se criança, sendo jogado no mar, mas salvo por uma menina. Via o mar engolindo uma torre, e uma mulher chorando sangue dentro de uma concha gigante. E o mesmo símbolo no final: a concha aberta, a cicatriz. O livro dizia que esse era o selo dos Nascidos da Ponte, aqueles que existiam para manter os abismos fechados. Uma noite, sonhou com sua própria morte, acordando com sangue no nariz e uma pérola n***a embaixo do travesseiro. Não era um presente, mas um pagamento; o mar estava cobrando por sua interferência no destino de Nyra. O mar começou a subir, ignorando as barreiras de areia. Os mais velhos da vila espalhavam o temor: Toda vez que a herdeira canta, o oceano exige um corpo em troca, e a dívida recai sobre quem carrega seu selo. Na décima segunda noite, Nyra subiu ao rochedo onde antes ficava o farol. Levava consigo um colar, envolto em algas, com uma pedra n***a pulsante que ressoava com a cicatriz de Elian. Ela o segurou contra o peito. A dor veio como uma onda: Ela, uma criança, sendo oferecida como a última de sua linhagem para selar o portal. Homens de Velha Âncora a arrastando para o mar, não para a morte, mas para o exílio. Uma ponte de sal quebrando sob o peso da traição. E Elian, um menino. Seu amigo. Seu Guardião. Ele tentando salvá-la, mas caindo em sua defesa. Elian… morrendo. Mas ele não morreu. Os Anciões o encontraram e lhe deram uma vida vazia, trocando sua memória pelo selo da cicatriz no peito. Ele esqueceu o preço que pagou para que ela vivesse. Naquela madrugada, Nyra voltou ao cais. Elian a esperava, sem perguntas. Apenas entregou a ela o livro, a verdade silenciosa. — És uma rainha sem trono. E eu sou o selo que te mantém aqui — disse ele. Ela assentiu. — O mar quer tua volta. E tua morte. E a minha, para completar o sacrifício. Nyra tocou a mão dele. — Eu não volto. — Por quê? Ela olhou o mar, refletindo seus olhos negros como vácuo. — Porque se eu voltar… eu levo o mundo comigo. O selo se quebra. Debaixo da terra, abaixo do mar, os outros começaram a acordar. Filhos do sal. Guardas da Ponte. E monstros de Maelyr que nunca deveriam sair. A ponte entre os dois mundos rachava. Porque a canção de Nyra estava apenas começando. E o amor… o amor era o maior erro, a falha final do selo.
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