POV RAY
O caminho até a zona norte foi... silencioso.
O tipo de silêncio que machuca os ouvidos de tão carregado.
Cam dirigia. Ele parecia o único tranquilo no carro, mãos firmes no volante, expressão serena como se estivesse indo pra um jantar de família. Já Ian, no banco do passageiro, estava com as pernas esticadas e um cigarro pendurado no canto da boca. Ele não falava. Só respirava fundo às vezes, como se a presença dos outros o sufocasse.
E eu… bem, eu estava no banco de trás, com a mão na faca que ficava presa ao meu tornozelo.
Não porque planejava usá-la, claro.
Bom… talvez um pouco.
— Alguém vai explicar por que, de todos os lugares possíveis, a gente tá indo pra uma fábrica abandonada no meio do cu da cidade? — Ian quebrou o silêncio com a voz carregada de tédio.
— Porque uma das nossas informantes rastreou movimentação noturna lá. — respondeu Cam, sem tirar os olhos da estrada. — A mesma movimentação que apareceu antes de cada entrega de DreamFire.
— Informantes — Ian resmungou. — Sempre confiáveis.
— E o que você sugere, Sr. Câmera em fúria? — perguntei, sem esconder o deboche.
Ele se virou, os olhos âmbar queimando de ironia.
— Eu sugeriria voltar no tempo e impedir que vocês dois nascessem, mas acho que já é tarde demais.
Cam soltou um suspiro pesado.
— Vocês dois são piores que crianças brigando por brinquedo.
— Não. Crianças têm salvação. — respondi, voltando o olhar para a estrada escura.
A fábrica apareceu no horizonte como um monstro adormecido. Uma estrutura enorme, enferrujada, coberta por mato alto e pichações. Havia janelas quebradas no segundo andar e um guindaste tombado no canto do pátio. O lugar parecia abandonado há décadas, mas as luzes — fracas e irregulares — entregavam o contrário.
Cam parou o carro a uma distância segura.
— Entramos pelos fundos. Nada de confronto se pudermos evitar. Observamos, registramos e recuamos com as informações.
— Sem confronto? — Ian murmurou, saindo do carro — Quem vai dar essa notícia pra Ray?
— Talvez você, se quiser testar quantos ossos consegue quebrar antes de gritar por socorro. — retruquei, já me movendo na direção da cerca.
Subimos pela lateral, uma trilha de concreto rachado e lama que dava acesso a uma entrada secundária. Cam foi na frente, agachado e atento. Ian veio atrás, tropeçando em uma raiz como um civil de filme B.
— Você é mesmo o melhor deles? — perguntei, sem virar o rosto.
— Eles me escolheram por talento. E porque o bonito da equipe precisava de alguém pra equilibrar. — respondeu com um sorriso torto.
Segurei o riso. Mas não sorri.
A porta estava semiaberta. Cam a empurrou com cuidado. O cheiro de ferrugem e óleo velho tomou nossos sentidos. E algo mais.
Químico. Adoçado. Artifício demais pra ser natural.
DreamFire.
O corredor interno estava escuro, iluminado apenas por um fio de luz vindo de uma sala ao fundo. Ouvíamos passos. Vozes abafadas.
Três. Talvez quatro pessoas.
Cam fez sinal com a mão. Dividimos posições. Eu fui pela lateral, escondida entre máquinas antigas. Ian foi para o corredor oposto. Cam ficou mais perto da porta de entrada.
Observei um dos caras pela fresta da parede.
Jovem. Tatuagem no pescoço.
Corvo.
O nome queimou na minha mente como uma lâmina em brasa.
— Temos que pegar isso em vídeo — sussurrou Ian pelo ponto de comunicação. — A cara dele vai valer ouro.
— Você tem 10 segundos. Depois eu quebro a cara dele ao vivo. — rosnei.
— E eu achando que você era sutil.
— Eu sou. Até não ser.
Cam interveio.
— Calma. A gente tá aqui pra observar. Nada mais.
Eu queria responder. Gritar. Arrebentar aquela porta e arrancar a língua do Corvo com as próprias mãos.
Mas então...
— A entrega para o território leste sai amanhã — disse um dos homens, abrindo uma caixa repleta de pacotes reluzentes. DreamFire puro.
— A da zona sul também. Mas o contato novo da Laurent vai pagar o triplo. Parece que o "fotógrafo" tá desesperado pra conseguir controle. — outro homem zombou.
Congelamos.
Fotógrafo?
Ian.
Cam me olhou. Ian engoliu em seco.
— Isso é mentira. — disse ele, baixo, frio.
— Ninguém aqui disse que acredita. — Cam respondeu, mas os olhos dele diziam outra coisa: dúvida. Leve, mas presente.
— Isso é armação. Eu nunca comprei nada. Nunca vendi. — Ian completou.
— Você já usou. — sussurrei.
Ele se virou pra mim, olhos duros.
— E você já matou. A gente pode seguir ou quer começar um duelo de pecados?
Cam entre nós, de braços erguidos.
— Baixem a voz.
Mas foi tarde demais.
O barulho chamou atenção do grupo na sala. Um dos homens se aproximou com uma lanterna. A luz varreu o chão até encontrar o rastro da nossa pegada na poeira.
— Droga. — Cam murmurou. — Retirada. Agora.
Começamos a recuar, mas a lanterna virou e nos iluminou por completo.
— Ei! Tem alguém aí!
Merda.
O caos começou.
Corri pela lateral, puxando a faca. Cam sacou a pistola com silenciador e disparou para cima, distraindo os perseguidores. Ian rolou sobre uma das mesas e agarrou a câmera, filmando tudo enquanto corria.
Tiros. Gritos. Uma explosão repentina em uma das caldeiras desativadas.
Corvo fugiu.
Eu quase o alcancei. Quase. Mas o desgraçado se jogou por uma escada lateral e desapareceu numa moto antes que eu pudesse cravar minha lâmina entre as costelas dele.
Cam puxou meu braço antes que eu saísse correndo atrás.
— Não agora, Ray. Não assim.
— Ele tava ali! Ele tava ali, Cam!
— Eu sei. E a gente pegou ele no vídeo. — disse Ian, ofegante, levantando a câmera. — Cada palavra. Cada rosto. Cada droga.
Paramos, ofegantes, sujos, suando.
O céu estava escuro. A cidade parecia observar em silêncio.
— Isso vai dar merda — murmurei.
— Isso já é merda. — Ian respondeu.
Cam apenas olhou para o céu. Pensativo.
— Mas pela primeira vez… a gente tem algo.
Ficamos ali, quietos, respirando como sobreviventes de uma guerra curta, mas intensa.
E foi naquele momento — naquele exato momento — que percebi algo que me fez estremecer:
Eles não eram tão insuportáveis quanto eu pensava.
Ainda não confiava em Ian. E Cam era bom demais pra ser real.
Mas... algo tinha começado ali.
Uma rachadura.
Uma faísca.
Ou talvez… apenas o primeiro passo de algo que poderia se tornar perigoso demais até mesmo pra mim.