PRÓLOGO

894 Palavras
**Prólogo — Narrado por Lara** Às vezes, guardamos lembranças que não escolhemos. Elas retornam sozinhas, na quietude da noite, como se alguém tivesse pressionado o botão de play na minha mente. Cresci tentando esquecer essas memórias, mas o corpo guarda aquilo que a mente se esforça para apagar. Eu me recordo da minha mãe, Camila Albuquerque, atravessando a sala com seus saltos altos, ostentando uma maquiagem impecável mesmo às dez da noite. Era uma modelo sempre pronta para ser fotografada, sempre tão bonita que parecia não caber no sofá velho onde eu me encolhia. Ela gritava com meu pai, e eu escutava tudo escondida atrás da porta. — Eu não pedi isso, Roberto! Eu não pedi essa menina! Sua voz penetrava o ar como uma lâmina afiada. Meu pai, Roberto Monteiro Albuquerque, delegado de postura imponente e voz grave, tentava apaziguar a situação. — Camila, chega. Ela é nossa filha. — Tua filha! Ela retrucava, despejando veneno em cada palavra. — Eu tenho uma carreira, um corpo, um contrato. Não nasci para criar ninguém, muito menos uma menina que parece carregar o peso do mundo. Apesar de não compreender completamente a discussão, eu entendia o bastante para perceber que tudo aquilo se referia a mim. Ele respondia com o mesmo tom, como se estivesse em um interrogatório: — Se você não nasceu para isso, então aprenda. Eu enfrento o mundo lá fora, mas dentro de casa, a responsabilidade é sua. E então, ela ria. Uma risada de deboche, segurando um copo de vinho. — Eu não serei prisioneira dessa vida, Roberto. Nem do seu trabalho, nem dessa criança. Carregue você! Você usa uniforme, você se considera um herói. Eu tenho a minha vida. Naquela época, com seis ou sete anos, encolhida no chão, segurava meu travesseiro, tentando me convencer de que era apenas um pesadelo. O barulho que vinha de fora atravessava a parede, mas ninguém parecia se preocupar em atravessar a porta até mim. O tempo passou e eu enterrei essas lembranças. Fiz de conta que não doía. Mas quando me tornei adulta, meu pai finalmente revelou a verdade, e todas as peças se encaixaram novamente. A voz da minha mãe ecoou em minha cabeça como se nunca tivesse parado: “Eu não pedi essa menina”. E eu compreendi. Não foi um abandono acidental, não foi o destino. Foi uma escolha. Ela nunca quis ser mãe. E eu fui crescendo aprendendo que até mesmo o sangue pode rejeitar. Meu nome é Lara. Tenho 19 anos. E a primeira cicatriz que carreguei não foi na pele, mas na alma, no dia em que ouvi a mulher que me trouxe ao mundo declarar que não me desejava. Atualmente, há muitas mulheres que optam por não ter filhos. Não as julgo. Cada uma conhece seu corpo, seus desafios e a vida que deseja levar. O que realmente machuca não é a decisão de não ser mãe. O que dói é escolher ser mãe e, no meio do caminho, abandonar essa escolha. É prometer amor e dar apenas vazio. É sorrir em fotos com maquiagem cara enquanto a filha se esconde atrás da porta, ouvindo que nunca foi desejada. Minha mãe fez suas escolhas. Preferiu a carreira, as luzes e os flashes. Eu escolhi sobrevivência sem ela. O que ficou comigo foi meu pai, rígido e contundente, repleto de cicatrizes que nem eram minhas, mas que acabaram se unindo às minhas. Hoje, aos 19 anos, ao olhar no espelho, não vejo uma modelo de capa de revista. Vejo tudo aquilo que ela desprezava: um corpo grande, uma voz alta, uma presença que não se encaixa em lugar nenhum. E o pior? Aprendi a amar isso. Aprendi a ocupar espaço como uma forma de vingança. Se minha mãe não me quis, o mundo terá que me suportar. Esse é o meu início. Um vazio do tamanho dela. E essa é a minha verdade: eu nasci da rejeição. Cresci na ausência. E agora resta apenas descobrir até onde uma ferida pode me levar. Existem coisas na vida que não planejamos. Como eu, filha de um delegado rígido, criada à base de gritos e disciplina, encontrar-me nas garras do homem mais temido da cidade: o Lobo. Meu pai sempre acreditou que me trancando em casa e me protegendo do mundo, conseguiria me salvar da violência que combatia lá fora. Ele não percebeu que a verdadeira violência reside dentro de nós, quando crescemos ouvindo que não fomos desejadas. Não há grades que consigam conter uma cicatriz. E eu, filha de Roberto Monteiro Albuquerque, que ostenta estrelas no peito e uma arma na cintura, acabei caindo no colo do inimigo dele. Nos braços tatuados, na boca que só sabe ordenar, no olhar que simultaneamente ameaça e hipnotiza. É irônico, não? A filha que minha mãe nunca desejou e que meu pai não conseguiu proteger acaba sendo puxada pelo destino para as garras do Lobo. E quando ele cravou os olhos em mim pela primeira vez, eu compreendi: não se tratava de ser prisioneira. Era sobre descobrir se eu teria coragem de morder de volta. Porque no Morro da Serpente não existem contos de fadas, nem finais felizes. Aqui, você sobrevive ou é engolido. Essa é a minha história. A filha rejeitada. A filha do delegado. A menina que aprendeu cedo que até mesmo monstros podem sangrar. Bem-vindos às minhas cicatrizes.
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