1. Julia

1229 Palavras
Eu já sabia que alguma coisa estava errada antes mesmo de ele abrir a boca. O jeito como desviou os olhos, a forma ensaiada com que mexeu na caneca de café e a empurrou pra perto de mim, como se fosse um gesto de carinho. Gesto barato, disfarce frágil. Tudo em mim já gritava que aquele era o fim. Ele respirou fundo, ajeitou a gravata como se precisasse de coragem e soltou: — O jornal vai passar por uma reestruturação, Júlia… As palavras vieram lentas, arrastadas, como se pesassem na boca dele. Eu inspirei fundo, tentando agarrar o pouco de dignidade que ainda me restava, e deixei escapar com uma ponta de ironia: — E eu fui reestruturada pra fora, é isso? Ele fez aquela cara de covarde, aquela expressão mole de quem não quer assumir nada pra não parecer o vilão da história. Abaixou os olhos, coçou a testa, e murmurou: — Você sabe como funciona. Corte de gastos. Nada pessoal. Nada pessoal. Claro que não. Nada pessoal quando cortam justamente a mulher de trinta e três anos, com dez anos de casa, currículo sólido, que tinha se matado pra segurar pautas que ninguém queria. Nada pessoal quando isso acontece logo depois de uma matéria incômoda sobre um vereador escroto. Nada pessoal também quando, por coincidência, contratam a repórter novinha, cheia de seguidor, bonita de feed, mas que não sabia alinhar uma vírgula numa frase. — É por causa da matéria? — perguntei, firme. Ele se atrapalhou, arregalou os olhos, fingindo surpresa, como se não tivesse ensaiado aquilo frente ao espelho. — Não, não… imagina. Isso é só… questão orçamentária. As mãos dele tremiam levemente sobre a mesa. Era o tipo de mentira que não se sustenta sozinha. Levantei da cadeira antes que minha garganta fechasse. Não dei o gosto de me ver chorando. Guardei a caneca trincada que sempre foi minha, enfiei minha caneta preferida na bolsa e caminhei até minha mesa tentando manter alguma elegância no passo. Cruzei com Rodrigo no corredor. Não virei o rosto, não dei chance pra olhar. E ele, filho da p**a que era, também não teve a coragem de me parar. Dois dias depois, ele chegou em casa mais cedo. Cabelos molhados, cheiro de sabonete diferente, como se tivesse tomado banho em outro lugar. Na hora, um alerta acendeu dentro de mim. — A gente precisa conversar — ele disse, a voz pesada, quase engolindo as próprias palavras. Engoli seco. Minha boca se encheu de um gosto amargo. — Conheceu alguém. Ele travou por um instante. O silêncio dele me respondeu antes da boca. — Não é bem sobre isso… — É sim — cortei, sem paciência. Sentei no braço do sofá, sentindo minhas pernas bambas, mas não ia mostrar fraqueza. — Vinte e poucos anos, né? Trabalha com você? — disparei, como quem já sabe a resposta. Ele abaixou a cabeça, como se procurasse alguma desculpa no chão. — Você anda tão focada no trabalho, Júlia… — começou, a voz mansa, justificativa ensaiada — a gente acabou se afastando. Ri, mas foi uma risada curta, seca, carregada de veneno. — A gente não se afastou, Rodrigo. Você só cansou de mulher da sua idade. Ele não negou. Nem piscou. No dia seguinte, foi embora. Me deixou com o apartamento vazio, uma caixa de lembranças inúteis, o aluguel vencendo e um orgulho ferido que parecia mais pesado que qualquer móvel. As semanas seguintes foram silêncio. Silêncio grosso, sufocante. Eu m*l conseguia levantar da cama sem sentir um peso no peito. Aos trinta e quatro anos, eu era o tipo de mulher que os outros já olham de lado, como quem pensa: “passou do ponto”. Sem emprego. Sem relacionamento. Sem p***a nenhuma. Até que, numa madrugada insones dessas, zanzando por um site de vagas, dei de cara com um anúncio tosco, m*l diagramado, quase amador: “Procura-se coordenadora para núcleo de cultura e escrita no Morro do Sossego. Perfil: proativa, empática e resistente ao caos.” Resistente ao caos. Sorri sozinha, no escuro. Se tinha uma coisa que eu era agora, era resistente ao caos. Cheguei ao morro com uma mala nas costas e um nó no estômago. Subi a ladeira tentando parecer firme, mas o coração descompassava. Uma moto passou rápido demais, quase arrancando minha bolsa do ombro. — Ô! — gritei, assustada, mas ninguém olhou pra trás. A vida ali seguia sem pausa. Crianças correndo descalças, música alta vindo de uma caixa de som estourada, cheiro de comida no ar. Eu estava no meio de um mundo que não era o meu. Não ainda. Subi a escadaria suando, bufando, pensando se tinha feito a maior besteira da minha vida. Até que vi uma mulher parada na frente do posto de saúde, braços cruzados, óculos escuros escondendo o olhar. Não precisei de muito pra perceber a firmeza que emanava dela. — Júlia? — perguntou, a voz firme, sem rodeio. — Sou eu. — Vera. — Ela estendeu a mão, seca e forte. — Bem-vinda ao caos. Apertei a mão dela e, naquele instante, soube que ali havia uma força que me fazia falta. Nos primeiros dias, pensei em desistir. O projeto era pequeno, quase sem recurso nenhum. As crianças bagunçavam, algumas mulheres vinham só pra desabafar e chorar. Havia uma dor crua no ar. Tudo parecia mais difícil. Mas também mais verdadeiro. E, ainda assim, tinha algo que me puxava. Talvez fosse o jeito como Vera falava: prática, objetiva, com aquele olhar de quem já viu de tudo, mas se recusa a desistir. Talvez fosse o fato de, pela primeira vez em meses, ninguém se importar se eu era “velha demais”. Aos poucos, fui ficando. Vera me ensinou mais sobre o morro do que qualquer livro poderia. Conhecia cada viela, cada história, cada cicatriz daquele lugar. E mesmo sendo dura, era acolhedora de um jeito estranho. Não era de abraçar, mas sustentava a gente com o olhar. Da vida pessoal, falava pouco. Uma vez só comentou, como quem não queria falar, mas deixou escapar: — Tenho um filho. Vive sumido. Gosta de me testar. — Ele mora aqui? — perguntei, curiosa. — Às vezes. Às vezes não. Nunca disse o nome. Nunca mostrou foto. Eu não perguntei mais. Respeitei. Cada um carrega seus silêncios. Dois meses se passaram. Já andava pelo morro sem medo. Sabia onde comprar pão quente, quem fazia o melhor pastel. Me acostumei ao barulho, às cores, à intensidade que não dava trégua. Naquela tarde abafada, voltava da vendinha com duas sacolas nas mãos quando a mesma moto passou de novo. Dessa vez, devagar. Olhei por reflexo. O piloto era um rapaz de boné preto e regata. O olhar dele me atravessou como uma lâmina. Ficamos ali, dois segundos presos, um encarando o outro. Dois segundos longos, que pareceram eternos. Sem sorriso. Sem gesto. Só aquele olhar direto, escuro, carregado de alguma coisa que eu não sabia nomear. Meu corpo reagiu antes da minha cabeça. Um arrepio subiu pela nuca, gelado. Continuei andando, mas os joelhos estavam moles. Evitei virar o rosto, como se fingir indiferença fosse uma proteção. Tentando me convencer de que aquele olhar não tinha me afetado. Que não tinha me deixado… curiosa. Ele não disse nada. Não fez nada. Mas eu soube, naquele instante, que aquele homem ia me tirar o chão. Só não fazia ideia do quanto.
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