As manhãs voltaram a ter o mesmo cheiro de café e distância.
Leonardo saía cedo, voltava tarde e fingia que o mundo seguia igual.
Mas nada estava igual.
Nem ele. Nem eu.
A noite que deveria ter sido esquecida ainda vivia nos meus ossos.
Cada lembrança, cada toque, cada palavra dita entre a chuva parecia me acompanhar como uma marca invisível.
E, a cada dia, eu sentia mais — o corpo mudando, o humor oscilando, o coração descompassado.
A primeira vez que percebi foi ao acordar.
O enjoo veio de repente, ácido, brutal.
Corri até o banheiro e m*l tive tempo de respirar.
O gosto amargo da dúvida veio junto.
Não quis pensar.
Preferi acreditar que era nervosismo.
Mas os dias seguintes vieram com os mesmos sintomas: enjoo, tontura, cansaço.
E então, o atraso.
Fiquei em frente ao espelho por longos minutos.
O reflexo mostrava uma mulher que não reconhecia.
Pálida. Cansada.
Mas com um brilho nos olhos que eu não sabia nomear.
Toquei o ventre, hesitante.
— Não pode ser… — murmurei pra mim mesma.
Mas no fundo, já sabia.
Os fragmentos da lembrança daquela noite vieram como flashes:
o calor da pele dele, o som da chuva, a forma como me segurou quando tudo acabou.
Não havia volta.
Não havia “talvez”.
Respirei fundo, tentando me acalmar.
Mas o coração já havia entendido o que a razão recusava.
Naquela manhã, ele saiu sem dizer uma palavra.
Deixou apenas o cheiro do perfume e o silêncio no ar.
Senti um peso no peito — o mesmo de sempre, mas dessa vez misturado com medo.
Peguei o celular e disquei o número da minha mãe.
Ela atendeu na terceira chamada.
— Isabella? Filha? Está tudo bem?
Tentei responder, mas a voz falhou.
— Mãe… preciso te ver.
— Aconteceu alguma coisa?
— Eu não sei. Mas preciso falar com você.
— Venha agora. Estou em casa.
Desliguei e sentei na cama.
Por um instante, pensei em contar tudo — sobre o casamento forçado, a prisão dourada, o homem que virou tormento e abrigo.
Mas não sabia nem por onde começar.
O trajeto até a casa dela pareceu mais longo que o normal.
Cada rua parecia carregar um pedaço da minha história que eu queria esquecer.
Quando cheguei, minha mãe abriu a porta antes mesmo que eu tocasse a campainha.
— Filha… — Ela me abraçou com força. — Você está pálida. O que houve?
— Eu… não sei como dizer isso.
— Dizer o quê?
Sentei no sofá, as mãos trêmulas.
— Acho que estou grávida.
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor.
Ela me olhou, sem piscar, por longos segundos.
— Você tem certeza?
— Ainda não. Mas sinto. — Toquei o ventre. — Aqui dentro… algo mudou.
Ela respirou fundo, tentando conter as lágrimas.
— Isabella…
— Eu não planejei. — As palavras saíram em um sussurro. — Eu juro que não planejei.
— Eu sei, meu amor. — Ela segurou minha mão. — Mas precisa ter certeza.
— E se for verdade?
— Então você vai ter que ser mais forte do que nunca.
As lágrimas começaram a cair, silenciosas.
— Mãe, eu não sei o que fazer.
— Respire. — Ela me abraçou de novo. — Você sempre soube o que fazer, mesmo quando dizia que não.
Ficamos assim por alguns minutos, em silêncio, até que ela se levantou e foi até o armário.
Voltou com uma sacola nas mãos.
Dentro, um pequeno teste.
— Faz agora.
— Agora?
— Antes que o medo te convença a não fazer.
Peguei o teste como se fosse uma sentença.
Entrei no banheiro e encarei o espelho.
Meus dedos tremiam.
O tempo nunca passou tão devagar.
Cada segundo parecia uma eternidade.
Quando finalmente olhei, o ar me faltou.
Dois traços.
Nítidos. Incontestáveis.
Meu mundo parou.
Sentei no chão, sem força pra ficar de pé.
As lágrimas vieram sem aviso, misturadas com riso nervoso e desespero.
A cabeça girava.
O coração batia em descompasso.
Minha mãe bateu na porta.
— Filha?
— É positivo. — A voz saiu trêmula. — Mãe… é positivo.
Ela entrou, me abraçou e chorou junto comigo.
Por um instante, não éramos mãe e filha.
Éramos duas mulheres tentando entender o peso da vida.
— O pai sabe? — perguntou, por fim.
— Não.
— Vai contar?
— Eu… não sei.
Ela segurou meu rosto. — Ele precisa saber, Isabella.
— Ele não vai querer.
— Você não pode decidir isso por ele.
— Mãe, ele não é um homem comum. — A voz falhou. — Ele é frio, calculista. Não sabe o que é amor.
— Então talvez esse seja o momento de aprender.
— Ou de me destruir de vez.
Ela suspirou. — Filha, essa criança não tem culpa.
Essas palavras ficaram ecoando na minha mente.
A criança não tem culpa.
Era verdade.
Mas e se ele me culpasse?
Voltei pra mansão ainda em choque.
O mundo parecia em câmera lenta.
O vento, o som dos carros, até os próprios passos.
Cada detalhe daquela casa me sufocava.
O sofá onde ele lia, o copo de whisky no bar, a escada onde nos cruzamos tantas vezes em silêncio.
Subi pro quarto e fechei a porta.
Toquei o ventre de novo, e o medo se misturou com algo que eu não esperava: ternura.
— Oi, meu amor… — sussurrei, entre lágrimas. — Eu não sei o que vai ser da gente, mas prometo que vou te proteger.
O som da porta se abrindo me fez congelar.
Leonardo.
Como se o destino tivesse escolhido o pior momento possível.
Ele parou na entrada, o olhar cansado.
— Onde estava?
— Na casa da minha mãe.
— Sem avisar?
— Não achei que precisasse.
— Tudo o que você faz me afeta, Isabella.
— E tudo o que o senhor faz me destrói.
Ele respirou fundo, como quem engole a própria fúria.
— Não quero brigar.
— Ótimo. Então vá.
— O que está escondendo?
— Nada.
— Está mentindo.
— Estou tentando respirar.
Ele deu um passo à frente, me observando com aquele olhar que parecia atravessar a alma.
— O que está acontecendo?
Fechei os olhos.
Não podia dizer.
Ainda não.
— Nada, Leonardo. Eu só… estou cansada.
— De mim?
— De tudo.
Ele hesitou, e por um segundo, a máscara caiu.
O homem frio deu lugar a algo mais humano.
— Isabella… — murmurou. — Eu não quero te perder.
As lágrimas ameaçaram cair de novo.
Mas me contive.
— Tarde demais.
Virei de costas e caminhei até a janela.
O vento frio entrou, arrepiando minha pele.
Por dentro, algo me dizia que aquele era apenas o começo.
A partir dali, minha vida deixava de ser só minha.
E o que quer que viesse, eu enfrentaria.
Com ou sem ele.
Peguei o diário e escrevi:
Dois traços. Um novo destino.
Eu queria gritar, mas o som não saiu.
Ele nunca quis ser pai.
Mas o universo nunca pediu a permissão dele.
Fechei o caderno e deixei que a noite caísse sobre mim.
No escuro, uma certeza me abraçou:
por mais que ele tentasse negar, o amor que nascia em mim seria a única verdade que ele jamais conseguiria controlar.