Capítulo 03 : Cláusulas e Garras

1510 Palavras
Alina O cheiro de ferro e chuva iminente — uma promessa de refúgio que era também uma armadilha — parecia emanar do contrato antes mesmo que eu o tocasse, como se aquele papel carregasse um peso que ia além da tinta. Do outro lado da mesa, Viktor não pedia, apenas exigia com sua mera presença. Ele era um decreto silencioso, frio e inevitável, preenchendo a sala por completo. Enquanto isso, o Conselho aguardava. Três testemunhas, todos com rostos treinados para a impassibilidade, observavam o salão amplo e imaculado. A formalidade era encenada sob a bandeira da alcateia e uma iluminação gélida que não permitia sombras onde a mentira pudesse se esconder. Naquele mundo, eu sabia que o teatro era fatal. Respirei fundo. Eu era uma ômega, sim. Mas não era um objeto. — Antes de assinar, eu imponho condições — anunciei, e a minha voz soou firme o bastante para me pertencer. Um dos conselheiros ergueu as sobrancelhas, como se eu tivesse cometido blasfêmia. Viktor não moveu um músculo, mas o olhar dele mudou de temperatura. Não era surpresa. Era avaliação. — Você já leu o que está escrito — disse ele, baixo, sem pressa. — O contrato foi elaborado para proteger. Para evitar ruídos. — E eu não sou ruído — retruquei, sustentando o olhar. — Sou pessoa. O silêncio que se seguiu foi longo, medido. Eu senti o próprio coração batendo contra as costelas, insistente, como se quisesse me lembrar do risco. E eu me lembrei. Eu sempre me lembro. Só que medo não é argumento. Viktor fez um gesto mínimo para que eu prosseguisse. Eu virei a primeira folha com calma, mesmo com o corpo inteiro em alerta. — Primeiro: meus estudos e meus plantões não serão interrompidos. — Minha mão apertou a borda do papel. — Eu não vou abandonar minha formação por causa de um contrato. Se eu estiver em serviço, estarei em serviço. Sem discussões. Um conselheiro pigarreou, evidentemente incomodado com a situação. Viktor, contudo, não se apressou em responder. Em vez disso, ele me analisou com um olhar que sugeria que eu era um desafio intrigante. — Você realmente acredita que eu assinaria algo que a colocaria em risco? — perguntou, inclinando o queixo em um gesto de clara autoridade. — Escalas significam rotinas. Rotas fixas. Padrões de tempo. — Nesse caso, você reforça a segurança. Não a minha vida — retruquei, sentindo a audácia crescer em minha voz. — Se deseja meu tempo, terá que comprá-lo com respeito. A palavra "respeito" soou como um corte na sala. Notei o olhar trocado entre os conselheiros. Senti a expectativa deles: esperavam submissão, não uma negociação. Viktor apoiou a mão na mesa. O movimento foi calculado, lento, mas a ameaça pairava no ar: ele poderia encerrar a discussão a qualquer momento. — Continue — ordenou. Meu estômago contraiu. Eu odiava como aquela voz conseguia me prender por dentro. Não era desejo. Era instinto — o tipo de instinto que o mundo dele usava para justificar correntes. Eu me recusei a deixar isso virar verdade. — Segundo: limites físicos e pessoais. — Engoli em seco, escolhendo cada palavra. — Eu terei um quarto que seja meu, com uma porta que eu possa fechar. Eu não serei vigiada dentro da minha i********e. E eu não aceitarei toque como punição, ameaça ou imposição. A última frase fez o ar ficar mais pesado. Eu vi o conselheiro mais velho estreitar os olhos, como se eu tivesse exposto algo vergonhoso. Viktor continuou imóvel. — Você está pedindo autonomia dentro de um pacto de exclusividade — disse ele. — Estou exigindo dignidade dentro de qualquer pacto — corrigi. — Exclusividade não é licença para posse absoluta. Ele me encarou por um instante tão intenso que eu quase senti o olhar dele como mão na minha pele. Depois, falou sem alterar o tom: — Eu não preciso de licença para nada. Mas entendo estratégia. Portas fechadas impedem ouvidos de ouvir. Eu não sabia se aquilo era concessão ou ameaça disfarçada de lógica. Talvez as duas coisas. No mundo de Viktor, gentileza e cálculo costumavam andar de mãos dadas. Virei outra folha. — Terceiro: voz nas decisões pessoais — declarei. — O que eu visto, o que eu estudo, com quem eu falo, onde eu vou… isso não será decidido por você sozinho. Você pode opinar. Você não pode ordenar. Um conselheiro soltou um riso curto, descrente. Eu não me virei para ele. Eu não estava ali por aprovação. Viktor, por fim, encostou as costas na cadeira. Quando falou, o gelo veio junto. — Você tem coragem, Alina. — Meu nome na boca dele soou como uma marca invisível. — E teimosia. Isso pode te salvar… ou pode te colocar no chão. Meu peito apertou, mas eu não recuei. — Eu já vivi tempo demais no chão para aceitar voltar para lá só porque um Alfa decidiu. A tensão puxou as paredes para mais perto. Eu ouvi um som distante do lado de fora, como passos apressados, e meu corpo reagiu por reflexo — alerta, instinto, sobrevivência. A sala, porém, permaneceu fechada, controlada, como se nada no mundo pudesse atravessar aquele ritual. Viktor se inclinou para frente. — Minhas condições permanecem: silêncio, exclusividade e um ano — disse ele, com a frieza de quem assina destino. — As suas… serão anexadas como aditivos. Mas com uma observação: quando eu disser “agora”, você não debate. Você obedece. Porque o “agora” vai significar perigo. Eu odiei como uma parte de mim entendeu. Odiou, mas entendeu. — Se você usar “perigo” como desculpa para controle, eu quebro o acordo — falei, com o coração na garganta. Um conselheiro abriu a boca, chocado. Viktor apenas sustentou o olhar, e, por um segundo, eu vi algo ali — não calor. Não ternura. Um tipo de respeito duro, torto, que só existe quando duas vontades se chocam e nenhuma se parte. — Se você quebrar, eu recolho os cacos — disse ele. — E não gosto de perder. As testemunhas se levantaram. O Conselho se posicionou ao redor da mesa, como se o ato de assinar precisasse ser guardado por olhos oficiais. O advogado aproximou os documentos com um cuidado reverente, e eu vi o espaço exato onde meu nome deveria selar aquilo. Minhas mãos tremiam pouco, mas tremiam. Não de fraqueza. De consciência. Quando a caneta tocou o papel, eu senti um frio correr do pulso ao cotovelo. Minha assinatura saiu firme, apesar de tudo. Três conselheiros assinaram em seguida. Carimbos. Rubricas. Um peso antigo sendo oficializado. Viktor assinou por último. Ele não hesitou. Não respirou fundo. Não demonstrou nada. Era como se o mundo inteiro fosse apenas um tabuleiro, e eu, uma peça rara que ele decidiu proteger… e prender. Assim que a última testemunha finalizou, a porta se abriu e meu irmão entrou, pálido, com os olhos inquietos. Ele parecia menor ali dentro, como se o Conselho tivesse sugado o ar dos pulmões dele. — Alina… — a voz dele falhou. Eu me levantei, e foi impossível não sentir o corpo de Viktor reagir, discreto, como um predador avaliando distância. Controle. Sempre controle. — Você prometeu que ia ficar fora disso — sussurrei, com raiva e alívio misturados. Meu irmão passou a mão pelos cabelos, sem coragem de encarar Viktor por muito tempo. — Eu vou sumir do radar — disse, rápido, como quem recita uma penitência. — Vou cortar contato, mudar rota, apagar tudo. Ninguém vai me usar para chegar em você. Eu quis acreditar. Eu quis tanto que doeu. — Você jura? — perguntei, e minha voz traiu a emoção. — Juro — respondeu ele, e, por um instante, eu vi o menino que ele já foi, antes de erros virarem sentença. — Eu estraguei muita coisa… mas não vou estragar você. Viktor não se meteu. Não precisava. A presença dele era suficiente para que a promessa do meu irmão soasse mais urgente, mais real, mais apavorada. Quando o ritual terminou e fomos conduzidos para fora do salão, eu senti o ar mudar. Corredores longos, seguranças demais, portas demais, silêncio demais. O tipo de lugar onde segredos não escapam — são enterrados. Meu celular vibrou. Uma mensagem sem número. Sem nome. Apenas palavras. “O contrato não vai salvá-la.” Um frio percorreu meu corpo tão rápido que quase me sufocou. Agarrei o celular, a sensação de que ele — e eu — poderíamos desmoronar a qualquer momento. Viktor percebeu na hora. Seu olhar varreu meu rosto, e eu tive certeza: ele não precisava ver a tela para entender que o terror da guerra acabara de me alcançar. — O que aconteceu? — Sua voz era baixa, mas carregada de perigo. Fixei os olhos na mensagem por mais um instante, sentindo o peso daquelas palavras se tornar uma ameaça real e faminta. Então o encarei, e, pela primeira vez, minha audácia vinha mesclada com pavor. — Alguém está caçoando do seu contrato — revelei. — E está me avisando... que isso não vale nada além de papel.
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