Ponto de vista de Xiaomei
Adentro a sala de Alessandro. Kira sai, deixando-nos a sós. Esse homem foi um dos poucos que nunca cederam ao meu charme. Muitos já caíram nas minhas provocações, mas ele e Douglas parecem imunes aos meus feromônios e ao meu poder de sedução.
Meu corpo foi modificado para ser o objeto de desejo de qualquer homem e até de algumas mulheres. Exalo feromônios que turvam o raciocínio, tornando a conversa mais fluida e deixando-os vulneráveis às minhas sugestões. Uso meu charme pessoal, perfumes estrategicamente escolhidos e roupas que destacam as áreas certas, aquelas que podem distrair qualquer um. Mas Alessandro... Alessandro nunca se sentiu atraído. Na verdade, ele já reclamou do meu cheiro. Por um tempo, cheguei a pensar que ele fosse homossexual, mas então o vi com Amanda e percebi que não era o caso.
Ele gosta de princesinhas.
Kira não é uma princesinha. Kira tem uma beleza que beira o irreal, mas seu corpo é forte, musculoso, aprimorado por implantes. Alessandro sempre odiou implantes. Mas agora ele olha para ela de um jeito diferente. Admira as partes modificadas. Estranho. Ainda mais porque notei que ela já não tem o braço cibernético, nem o olho. As pernas continuam artificiais, mas o resto, quando foi que ela mudou?
Alessandro me encara. Preciso me concentrar nele. Depois penso nisso.
— Alessandro, Kira voltou de uma missão bem-sucedida e...
Ele nem espera eu terminar. Interrompe com aquela arrogância natural, carregada de um orgulho velado:
— Xiaomei, Kira passou quase cinco dias fora limpando a mërda que o seu agente fez. No fim, foi ótimo. Descobrimos mais sobre a Cidade da Sucata e ela conseguiu dossiês de políticos e líderes de máfia que, caramba... nunca imaginei. E sabe o que é pior? — Ele se inclina ligeiramente, um sorriso cínico brincando nos lábios. — No fim das contas, até tenho que te agradecer por isso. Um mäl que veio para o bem.
Alessandro mäl me deixa abrir a boca antes de disparar:
— Você é uma cobra, Xiaomei, mas tem talento para espionar como poucos. E já deve saber que Kira chegou até o prédio com um homem. Quero que descubra quem ele é e como se conheceram. Sei que seu agente foi junto, tanto para relatar os eventos para você quanto para aprender a agir em campo. Mas... esquece. Você jamais conseguirá reproduzir a Kira.
Sua voz tem um tom venenoso, cortante como uma lâmina bem afiada.
Solto o ar em derrota e sigo rapidamente para minha sala. Reúno tudo que tenho e levo até Alessandro. Talvez seja inteligente fingir que estou ajudando. Afinal, não há nada comprometedor nas filmagens... exceto pelo tal Jair subindo na garupa da moto de Kira e se agarrando a ela. Um detalhe curioso. Não consigo evitar um sorriso ao lembrar da cena enquanto me acomodo na cadeira em frente a ele.
— Aqui está, Alessandro. Tudo que você precisa.
Sem hesitar, ele pega os relatórios e os chips, insere-os no computador, e assistimos juntos. Um a um, os vídeos rodam na tela. Aproveito a oportunidade para observar suas expressões. Como esperado, os momentos de interação entre Jair e Kira são os que realmente capturam sua atenção. Seu rosto se contrai levemente. Ele reage.
Observo Alessandro. Seu olhar está fixo na tela, imóvel, sem piscar. Já faz quase duas horas que ele assiste aos vídeos sem dizer uma única palavra. Apenas observa.
Acompanhei as mudanças em sua expressão: frustração, raiva, medo, orgulho... um turbilhão de emoções que foram se revezando. Mas agora, há mais de vinte e cinco minutos, seu rosto não se altera. Algo mudou. Dou a volta na mesa e paro ao seu lado. Quando olho para a tela, entendo o motivo.
O vídeo está pausado exatamente no momento em que Jair sobe na moto com Kira e segura sua cintura. O maxilar de Alessandro está trincado, os punhos cerrados. Sua aura exala raiva, densa e sufocante.
— Você sabia? — Sua voz sai baixa, quase inaudível, mas carregada de algo perigoso.
— Sabia o quê? — Finjo não entender, mesmo já sabendo a resposta.
Ele mantém o olhar na tela, mas sua voz agora vem calma, fria.
— Que ela chegou em Manaus com ele?
— Sim, sei que ela chegou até o prédio com ele. E só não sei...
Não termino. Alessandro me interrompe bruscamente.
— Quero todas as filmagens da frente do prédio. Qualquer gravação em que ela apareça.
— Sim, Sr. Alessandro. — Concordo, fingindo obediência, mas minha mente já está traçando seus próprios planos. Não para traí-lo, mas para garantir que meu valor dentro da BioCom continue crescendo. Cada peça que se move nesse jogo pode ser uma oportunidade para me destacar, e eu não pretendo desperdiçar nenhuma delas.
Antes que a conversa se aprofunde, o telefone de Alessandro toca. Ele atende com impaciência, e eu apenas observo enquanto a voz da secretária do outro lado da linha anuncia o retorno de Kira. Sinto uma pontada de frustração, embora já esperasse por isso. Era previsível que ela aparecesse exatamente agora, quando as peças começavam a se mover no tabuleiro.
Kira não voltou de mãos vazias. Recuperou um projeto importante, algo grande o suficiente para prender a atenção de Alessandro. Mas há mais. Sempre há mais quando se trata dela. Pelo que sei, Kira não apenas garantiu o sucesso da missão, como também obteve informações extras. Informações que podem ser valiosas para a BioCom e para mim.
Infelizmente, Killey não teve acesso aos detalhes, o que me deixa sem algumas peças desse quebra-cabeça. Mas isso não me impedirá de descobrir tudo o que preciso. O que mais me intriga, no entanto, é que Kira não retornou sozinha. Além de um homem, ela trouxe outras pessoas.
Quem são eles? Por que estão aqui? O que representam para Kira? Para Alessandro? E para a BioCom?
Sei que um deles é um Netlinker, um hacker que trabalhou na criptografia dos arquivos da Dra. Chambers. Outro, o homem que veio na moto com ela, é um Sicário. E parece que há também uma mulher no grupo, possivelmente uma medicânica.
Alessandro permanece impassível, mas seus olhos entregam que há algo nessa situação que o incomoda. O maxilar ligeiramente tensionado, o dedo batendo ritmicamente na mesa — pequenos gestos que indicam que sua mente está a mil. Ele já fez suas conexões, percebeu algo que eu ainda não percebi. E se há algo que aprendi ao longo dos anos, é que nada nesse jogo acontece por acaso.
Vou descobrir o que está acontecendo. E quando o fizer, usarei essa informação para fortalecer minha posição dentro da BioCom. O mundo corporativo é um campo de batalha, e eu pretendo sair vitoriosa.
Kira avança com sua postura imponente, sempre carregando a aura de quem lidera. No entanto, ela não passa de uma propriedade da BioCom, e em breve, farei questão de lembrá-la disso. Passo por ela e percebo seu olhar fixo em mim. Diminuo o ritmo, encaro-a e solto com um meio sorriso:
— Então, bonequinha, o vice-diretor está te esperando. Mas não se iluda… Ele só amou uma mulher. E ela está morta.
Ela nem pisca. Nenhuma reação. Seu semblante permanece inabalável, como se minhas palavras fossem insignificantes. Por um momento, me pergunto se estou vendo coisas, mas logo concluo que essa tal Kira não passa de uma máquina de combate — sem sentimentos, sem fraquezas. Ainda assim, há algo nela que me intriga. Algo indecifrável. Mas o que mais me chama atenção é a sua confiança.
Volto para minha sala e, assim que entro, chamo meu mais fiel escudeiro. Lobão Guaraço. Um Netlinker. Bioesculpido em lobo-guará.
É fascinante o que a tecnologia é capaz de fazer. Um homem que antes tinha 1,78 m agora mede 1,30 m. Orelhas alongadas, focinho afilado, r**o esguio… uma réplica viva e autêntica de um lobo-guará.
Ele entra sem dizer uma palavra, mas sorri de canto. Já sabe o que quero. Em sua mão, um chip. Sem pressa, ele o exibe entre os dedos antes de entregá-lo.
— As imagens — diz, como se lesse minha mente.
Insiro o chip e logo a tela exibe Kira chegando à frente do prédio, montada em sua moto. Mas o que me chama atenção não é apenas ela. É o homem que a acompanha. Alto, forte, um verdadeiro colosso. E belo.
Silvo baixinho, divertido.
— Ora, ora… que homão a Kira arrumou. Será que ela gosta desse tipo? O cara é… exótico.
Minha empolgação não passa despercebida. Guaraço começa a rir, os dentes lupinos à mostra.
— Aí, chefia… esse aí me vê, vai querer me comer no almoço. Melhor eu nem dar bobeira!
Solto uma risada alta. Meu Lobão Guaraço e seu senso de humor afiado. Ele fica sem graça, mas eu continuo analisando.
Nas imagens, Kira entrega dinheiro ao homem. Logo depois, envia uma mensagem para o celular dele. Possivelmente um endereço.
Mas que endereço? Kira mora e vive aqui, na BioCom. Ela teria outro lugar? Outra vida? Com quem ela anda interagindo?
Franzo a testa. Preciso descobrir. E, claro, só revelarei ao Sr. Alessandro o que for realmente interessante para mim.