SEDE DOS MÃOS DO DESTINO
Ponto de vista de Hugo Hëinz
— Hoje, meus amigos, estamos aqui para celebrar o nosso sucesso. Finalmente conseguimos comprovar que a nossa Kira é a mesma registrada em 1782, a mesma de 1959, e agora, de 2001 — digo com orgulho. — Obtivemos, por fim, os registros do Dr. Solomov e seus experimentos em Aspen.
— Senhor Hugo Hëinz, Kira é propriedade da BioCom. Como pretendemos trazê-la para cá e colocá-la sob nossa jurisdição? — questiona o Sr. Erich Stahl.
— Não se preocupe com isso, Sr. Stahl — respondo com tranquilidade. — Estou cuidando disso pessoalmente. Vou designá-la como minha guarda pessoal e, em seguida, farei uma viagem para a "Europa". Durante essa viagem, vamos forjar um atentado. Ambos — eu e Kira — seremos dados como mortos.
Faço uma breve pausa, deixando que a tensão se acumule no ar.
— Ninguém, até agora, sabe das verdadeiras habilidades de Kira.
O sorriso se alarga em meu rosto, alimentado pela antecipação do que está por vir. Seu verdadeiro potencial ainda está dormente, e isso é o que mais me empolga.
Mas hoje, vou dar uma amostra do que Kira é realmente capaz de fazer.
As luzes da sala se apagam parcialmente, e um slide começa a ser exibido no telão. A imagem é impressionante, quase surreal. Parece uma fotografia, mas está altamente aprimorada digitalmente. Mostra uma mulher envolta em uma estrutura grotesca e fascinante — dela emergem vários tentáculos enormes, alguns terminando em ferrões imensos, outros com pontas afiadas como lanças. A pele visivelmente espessa e rígida parece funcionar como uma armadura natural.
Um burburinho se espalha pela sala. Antes que as suposições tomem conta, começo a explicar:
— O que estão vendo... é Kira — digo, com a confiança de quem está prestes a redefinir a percepção de todos ali. — Ela está utilizando uma armadura de queratina, produzida pelo próprio corpo. Os tentáculos também fazem parte desse sistema orgânico. Nada disso é metálico ou artificial. Tudo que veem é tecido vivo, moldado por ela mesma.
Faço uma breve pausa, deixando que o impacto da revelação se instale.
— O Projeto do Dr. Solomov na verdade foi uma desculpa para experimentação, o clã da Rosa nëgra já sabia sobre Kira e Alessandro desde os anos de 1929. E o Dr. Solomov teve acesso ao primeiro experimento feito em 1802.
— O primeiro projeto foi desenvolvido pelo Dr. Alexander Nursall I. Registros sobre os tais parasitas. Mas mesmo nesses registros, não tem nada sobre sua origem.
É curioso, que o Dr. Alexander Nursall I, teve um filho saudável após mais de 160 anos e o batizou de Alexander Nursall II e é o "tataravô" de Alessandro Andrioli, mas eles são a cara de um, focinho do outro. Todos ficam em silêncio analisando o ponto levantado por mim. Após um momento de reflexão continuo a apresentação — Após análises mais aprofundadas, descobrimos que o parasita em simbiose com Kira não apenas é responsável por sua regeneração, mas também por uma gama de habilidades complexas. Seu nome original era outro — um trocadilho sombrio, inspirado em uma antiga divindade associada ao caos, à escuridão e à destruição.
Passo para o próximo slide, onde o nome do projeto aparece em letras brancas sobre um fundo escuro:
A.P.O.T.H.I.S. – Adaptive Parasite for Organic Transmutation and Hybridized Intelligence Symbiosis
(Parasita Adaptativo para Transmutação Orgânica e Simbiose de Inteligência Hibridizada)
— Mas eu prefiro o nome atual. Afinal, Kira não representa apenas destruição. Ela reforma, reconstrói... transmite sua dádiva a outros, transformando-os em algo novo. Kira é, na verdade, uma entidade de criação, de vida e de transformação.
O silêncio que se segue é reverente, quase cerimonial. Então, abaixo o tom e falo com uma pitada de tristeza:
— É uma pena que a antiga organização, os Rosas Negras, tenham visto Kira e Alessandro como ameaças e os eliminado naquela época.
Minha voz carrega a frustração de quem sabe que o mundo perdeu algo importante.
— O mais intrigante, no entanto, é que Alessandro jamais manifestou qualquer alteração. Já Kira assim que entrou na puberdade, despertou.
— Sr. Hëinz, então... será que estamos mesmo diante do Alessandro original? E se não for? No caso de Kira, temos acesso aos dados, sabemos o que foi feito para trazê-la de volta. Mas quanto ao espécime masculino... seu retorno nunca foi confirmado — argumenta um dos membros, com um tom de cautela.
— Meu caro — respondo com firmeza —, Kira o identificou. Ela jurou lealdade a ele. E Kira só é leal a uma única pessoa: ao Sr. Alessandro. Nós atestamos isso nas duas outras vezes em que ela despertou.
O slide prossegue até sua conclusão, exibindo uma sequência de imagens de confrontos. Em cada uma delas, Kira assume uma forma diferente: um lobo colossal, em outra, exibe asas de morcego mantendo a estrutura corporal humanoide, e em uma terceira, aparece com feições híbridas entre peixe e mulher — uma criatura aquática e predadora, ao mesmo tempo bela e aterrorizante.
O silêncio é quebrado por um comentário sutil.
— Agora sabemos de onde surgiram certos mitos hein, Sr. Hëinz — comenta a Dra. Helena Brandt, com um leve sarcasmo e um humor contido, quase respeitoso diante do que acabara de presenciar.
O comentário da Dra. Brandt paira no ar por alguns segundos, antes que outro mëmbro da cúpula, o Conselheiro Dietrich von Raab, se incline levemente para frente na cadeira.
— Com todo respeito, Sr. Hëinz... — começa, sua voz pausada e carregada de cautela. — Se Kira é de fato a mesma entidade observada ao longo dos séculos, se sua lealdade é sempre voltada ao mesmo homem então não estamos apenas diante de uma arma ou de um projeto biológico. Estamos falando de deuses sob a terra. Imortais, transformadores e criadores.
Ele respira fundo, os olhos varrendo a sala como se buscasse apoio em outros olhares.
— E se Alessandro não for apenas como Kira, mas superior? Se ele for, de fato, o Alfa — o original, a matriz? Sabemos agora que ele é mais do que Kira, pelos registros dos projetos anteriores, provou-se que ele pode controlá-la e a todos que ela eventualmente transformar.
O murmúrio cresce, desta vez mais tenso, mais alarmado.
— Isso explicaria por que ele ainda não manifestou nenhum poder de forma consciente — completa a Dra. Brandt, agora mais séria. — Ele não precisa. Ele já é o centro gravitacional de tudo. Kira despertou por causa dele. Todos os sinais apontam para isso.
— Exato — concorda Erich Stahl. — E se Alessandro decidir não cooperar? Estamos colocando toda a nossa estrutura sob o risco de uma vontade que não podemos dobrar.
Então Viktor Halberd, o Diretor de Segurança Estratégica, ergue a voz, incisiva:
— Isso nos leva ao verdadeiro dilema:
Como vamos controlar Alessandro?
Sabemos que Kira só é leal a ele. Sabemos que ele é o Alfa — o ponto de origem. O controle não é nosso. É dele.
O silêncio se instala.
Eu me levanto devagar. O sorriso que trago não é de arrogância, mas de convicção e cálculo.
— Justamente por isso, senhores devemos estar com ele. Não contra ele.
Alessandro não é um inimigo — é um novo eixo. Um novo pilar.
Faço uma pausa, encarando cada um à mesa.
— Controlar? Não. Essa não será a abordagem. O que precisamos é de influência. De proximidade. E de tempo. Kira o protegerá com a própria vida, então iremos os separar, ela não tem suas memórias, vamos nos aproveitar disso.
— Isso nos transforma em cúmplices, não mestres — comenta von Raab, sombrio.
— Talvez seja isso que o futuro exige — respondo, firme. — Pois se tentarmos colocar correntes sobre um deus seremos esmagados. Mas se oferecermos um trono... talvez ele aceite sentar-se.
As luzes da sala se acendem lentamente, anunciando o fim da apresentação. Mas ninguém se move. O que antes era um plano, agora parece o prenúncio de uma nova era — e ninguém tem certeza se será uma era de ouro ou de fim.
O silêncio na sala é denso. Volto a falar, minha voz firme e calculada — cada palavra escolhida com precisão.
— Como eu dizia, o plano original será mantido. Iremos para a Europa, e lá, na viagem de ida minha morte e a de Kira serão forjadas.
Dou um passo à frente, apoiando ambas as mãos na mesa. Meus olhos vasculham os rostos diante de mim.
— O atentado será convincente, com vítimas reais e rastros cuidadosamente plantados. Para a BioCom, Hugo Hëinz estará morto e Kira também. Ela desaparecerá dos radares, e pela primeira vez, estará verdadeiramente sob nossa jurisdição.
A Dra. Brandt franze o cenho, intrigada.
— E quanto à BioCom? Eles têm meios para rastrear até partículas genéticas.
— Já cuidamos disso — respondo com um sorriso contido. — Cultivamos DNA sintético, envelhecido e deteriorado de forma convincente. Os corpos carbonizados que encontrarão não levantarão suspeitas. Seremos luto e estatística. Nada mais.
Erich Stahl me encara.
— E Alessandro? Como ele vai reagir a isso?
Faço uma breve pausa. Esse é o ponto mais delicado.
— Alessandro não pode saber nada sobre si mesmo e sobre Kira. Ainda não. Ele é mais importante: é o Alfa da espécie. Se ele e Kira ficarem juntos, os efeitos podem se tornar... imprevisíveis.
Dou ênfase à palavra, deixando que o peso da ameaça silenciosa paire no ar.
— Juntos, eles seriam uma força incontrolável. Kira o reconheceu instintivamente. Seria uma questão de tempo, até ele despertar e eles dois serem uma força dominante novamente.
Caminho lentamente pela sala, olhando cada um nos olhos.
— Por isso, manteremos os dois separados. Kira sob minha pröteção direta, como minha guarda pessoal. Legalmente morta. Oculta. Alessandro será monitorado à distância. Ele vai acreditar que Kira está morta.
Faço uma pausa e olho para o slide que exibe as formas monstruosas de Kira em combate: o lobo, o híbrido alado, a criatura anfíbia. A sala permanece em silêncio.
— Estamos lidando com mais do que simples mutações. Isso é evolução. Kira é o ponto de ignição. Alessandro, o catalisador. E nós somos aqueles que manterão a centelha sob controle.
Cruzo os braços atrás das costas.
— Não vamos cometer o erro dos Rosas Negras. Eles tentaram separá-los tarde demais. Nós não vamos esperar.