- KIRA E XIAOMEI: A DANÇA

1753 Palavras
Ponto de vista de Kira O restaurante escolhido por Xiaomei tem vista para as luzes pulsantes de Manaus, como um coração cibernético batendo no caos noturno. O ambiente é de penumbra quente, com velas elétricas em cúpulas de vidro, projetando sombras que dançam sob as mesas. O som abafado e ritmado de “Locomotive Breath” preenche o ar — o dedilhar da guitarra e o sopro agressivo da flauta parecem acompanhar o fluxo dos pensamentos como uma locomotiva sem freios. Estamos sentadas em um canto reservado. Xiaomei chama atenção como sempre: o sobretudo de couro nëgro aberto, revelando apenas um top colado ao corpo e uma calcinha de renda escura. As luzes âmbar acariciam sua pele branca como porcelana. Ela cruza as pernas devagar, o olhar fixo em mim, como se estivesse tentando decifrar um enigma. — Cem mil eurodólares — ela comenta com um sorriso enviesado — e nem pareceu que você precisou se esforçar. — Foi um lembrete — respondo, a voz baixa, controlada — do que sou capaz. E do que posso me tornar. A batida da música acelera no fundo. É como se o mundo estivesse em sincronia com o que acontece entre nós. Há tensão no ar, mas é fria. Calculada. Do tipo que antecede uma negociação ou uma guerra. — Me ensine. — falo direto. Ela ergue uma sobrancelha, intrigada. — Ensinar o quê? — Como conquistar as pessoas. Como manipulá-las. Como obter tudo sem pedir. Sem implorar. Xiaomei ri, suave, como quem saboreia uma surpresa. — Isso vindo de você? Kira... você já é uma arma, uma tempestade engarrafada. E quer aprender charme? — Não lembro quem fui. Mas tenho a impressão de que já fui alguém que sabia e entendia o jogo. Ela se inclina, os olhos faiscando com desejo e inteligência. A música atinge o refrão, e o ritmo parece fazer vibrar o ar entre nós. — Você não quer aprender a manipular, Kira... você quer se lembrar? Meus olhos permanecem fixos nos dela. Gélidos. Implacáveis. — Provavelmente. Ela sorri. Um sorriso perigoso, cheio de promessas. — A primeira lição: o olhar. Nunca peça... com os lábios. Faça com que eles sintam com os olhos que não têm escolha. Seu rosto se aproxima do meu, e por um segundo, o mundo inteiro parece silenciar, exceto pela flauta cortante de Ian Anderson. — E a segunda? — pergunto, sem piscar. — Faça-os pensar que estão no controle. E, quando perceberem que não estão... já será tarde demais. Depois de mais um gole de vinho caro, Xiaomei se recosta, os olhos estreitos e famintos. — Essa música... — diz, enquanto “Locomotive Breath” dá lugar a um jazz suave e sensual — me dá vontade de dançar. Mas aqui não é lugar pra isso. Vem comigo. Tenho uma cobertura... e um som melhor. Ela não pergunta. Ela comanda. Mas eu noto. Por trás da voz firme, existe algo pulsando. Uma necessidade. Um desejo não dito. — Certo — digo sem hesitar, me erguendo com calma. Não é por interesse. É por curiosidade. O tipo de curiosidade que uma predadora tem ao estudar a presa que se oferece por vontade própria. Chegamos ao edifício, luxuoso, blindado, discreto. Subimos em silêncio. Ao entrar, ela acende algumas luzes suaves, programadas para deixarem o ambiente num tom âmbar envolvente. O piso reflete as luzes de Manaus como um lago escuro e infinito. Ela vai até o centro da sala, tira o sobretudo devagar, como se aquilo fosse um ritual antigo e íntimo. Fica apenas com o top colado ao peito e a calcinha de renda. Um novo som preenche o espaço — uma batida envolvente, profunda, feita para ser sentida no estômago. Começa a dançar. Não é só uma dança. É uma encenação. Eu permaneço sentada. Imóvel. Observando. A respiração dela se intensifica conforme se move com mais fluidez. Ela gira, exibe, seduz — mas não por prazer próprio. É um espetáculo para mim. Cada gesto, cada dobra de seu corpo, é feito para provocar uma reação. E ela espera por isso. Anseia. Mas eu não sou uma mulher fácil de ler. Ela para e se aproxima. Suada, ofegante, olhos baixos. — E então? — pergunta num tom baixo, entre desafio e súplica. — Estou conseguindo te ensinar? Cruzo as pernas devagar, mantendo o olhar fixo no dela. Meu tom é suave, mas cortante. — Você está me ensinando... o que as pessoas são capazes de fazer por um pouco de atenção. Ou por ilusão de poder. Ela sorri, sem esconder o rubor. A respiração ainda acelerada. — E você, Kira? O que é capaz de fazer por controle absoluto? — Qualquer coisa. — respondo, fria como aço. — Inclusive te usar. Ela treme. De excitação? De medo? Não importa. O que importa é que ela sabe que está jogando com algo maior que ela mesma, mas ela está amando isso. Ela desaparece por um instante, indo até um cômodo ao lado. Volta com uma bandeja de vidro, onde repousam duas taças e uma garrafa de licor ambarado, denso, caríssimo. Serve as taças em silêncio. Seu corpo ainda brilha sob a luz suave, o top agora quase transparente pela dança intensa. Ela entrega uma taça a mim, sem encostar em minhas mãos. — Manipular alguém não começa com palavras — diz, sentando-se ao meu lado. — Começa com o ambiente. Com o controle dos sentidos. Sons, luz, cheiro, gosto... toque. — Ela roça os dedos levemente em minha coxa. — E se você domina todos eles, você domina a mente. Eu a encaro. Não recuo. Não reajo. Apenas analiso. — E o que você quer dominar, Xiaomei? Ela sorri, sutil, inclinando o corpo. — Você. Há um momento de silêncio. Longo. Tenso. Ela o preenche com o olhar, esperando qualquer faísca. Mas eu sou silêncio. Sou o vazio que absorve tudo. — Você não pode me ter — digo, por fim, com uma calma cirúrgica. — Mas pode me servir. Pode me mostrar como os outros se deixam levar. Ela engole em seco. Talvez tenha entendido. Talvez tenha gostado ainda mais. — Então assista. — sussurra, se levantando. — Porque aprender envolve observar, e depois, dominar. Ela caminha até o centro da sala novamente, mas dessa vez muda a música para algo mais tribal, hipnótico, com batidas ritmadas e graves. Seus movimentos agora são mais sensuais, mais ritmados, controlados milimetricamente. É uma dança de domínio, não de prazer. Ela está encenando o que quer ensinar. Eu a observo, fria como sempre. Mas por dentro, algo pulsa. Não é desejo. É poder. É o gosto de ver uma mulher poderosa se desmontando, voluntariamente, só para estar à minha altura. Só para ser notada. Quando ela termina, ofegante, se aproxima mais uma vez e se ajoelha entre minhas pernas. — Diga... o que quer aprender primeiro? Aperto a taça de cristal, encostando-a nos lábios antes de responder. — Quero que me ensine a criar necessidade. Aquela que faz alguém implorar por mim sem que eu diga uma palavra. Ela sorri. Um sorriso entregue. Perigoso. Quase apaixonado. — Então você vai destruir o mundo, Kira. — Não. — respondo com um leve erguer de sobrancelha. — Eu vou reconstruí-lo… do meu jeito. Xiaomei se levanta devagar. Seus joelhos deslizam sobre o chão com a leveza de um felino. Ela estende a mão para mim, e eu a encaro — sem sorrir, sem hesitar — e a aceito. Ela me guia até o centro da sala. As luzes baixas, âmbar, tingem tudo com um ar de mistério e desejo contido. A música muda para algo ainda mais arrastado, de batidas graves e ondulantes, com instrumentos de sopro em notas graves que criam um clima de torpor. Algo entre o ritual e o sagrado profano. — Você se move como uma lâmina — ela diz, parando atrás de mim. Suas mãos tocam de leve meus ombros. — Precisa aprender a se mover como o veneno. Invisível. Letal. E irresistível. Suas mãos descem pelos meus braços, guiando-os. — O Aikido¹ é contenção, fluidez e resposta. A dança que vou te ensinar é provocação, condução e domínio. Ela pressiona seu corpo contra o meu. Consigo sentir o calor que emana dela, e como seus movimentos são quase imperceptíveis — um roçar de quadris, um deslizar dos ombros, uma oscilação da coluna. — Sinta a batida. Não pense em atacar. Pense em prometer. Prometer algo que nunca será dado. É assim que se controla. Ela me gira, devagar. Meus pés, treinados para a precisão em combate, hesitam. Tento encontrar o ponto de equilíbrio, mas não há combate ali. Não há inimigo. Apenas ritmo. Instinto. Jogo. — Você está tentando controlar o movimento — ela diz com um sussurro, os lábios quase tocando minha orelha. — Mas às vezes, Kira, o controle está em parecer que não há controle algum. Ela posiciona minhas mãos em sua cintura, depois se move, e me obriga a acompanhá-la. A seguir. Cada passo exige que eu quebre padrões enraizados em mim desde sempre. Meus quadris se soltam aos poucos. Meus ombros deixam de ser soldados e viram véus. — Melhor... — ela sussurra. — Mais livre. E mais perigosa. Seus olhos brilham quando eu finalmente acompanho a batida com naturalidade. Sua mão desliza pela minha cintura, pressionando de leve. — Agora, use seu olhar. Um toque é fraco se o olhar não domina antes. Você é predadora. Mostre isso. Eu obedeço. Fixando meus olhos nos dela. Frio. Penetrante. Calculado. Ela engasga um sorriso. — Isso... isso é Kira. A mulher que pode mätar sem se mover... mas que agora vai aprender a dominar sem precisar mätar. Ela gira ao meu redor, e agora eu sou o centro. Cada movimento dela é uma aula. Cada respiração é uma promessa não dita. Ela está me ensinando a dançar, mas mais do que isso — está me ensinando a caçar corações com a mesma frieza com que perfuro gargantas. E eu aprendo rápido. Quando a música termina, ela está mais ofegante do que eu. — Você vai ser um monstro muito mais perigoso do que já é — ela diz, sorrindo, os lábios ainda próximos demais. Eu apenas olho de volta, com o mesmo silêncio de sempre. — Você me deseja, Xiaomei? Ela hesita. É só um segundo. Mas suficiente. — Eu te admiro, Kira. — Mentira. — respondo, firme. — Você quer ser possuída por algo que jamais poderá controlar. Ela sorri, rendida. — E você... está começando a aprender como fazer isso.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR