Eva
A segunda vez que Daren entrou na ONG foi diferente da primeira.
Da primeira vez, ele chegou como quem testa terreno. Da segunda, ele chegou como quem já se sente dono.
O portão nem teve tempo de ranger — já estava aberto. O som de suas botas pesadas no piso de cimento riscado da ONG fez tudo parar de novo: conversas, sorrisos, o tempo. Parecia que até o sol se escondia quando ele passava.
Eu estava ajoelhada ao lado de uma criança, limpando um corte profundo na perna. A mãe dela, uma mulher magra e com marcas nos braços, observava com olhos assustados. A presença dele fez a mão dela tremer. E isso me irritou.
— Daren. De novo? — minha voz saiu firme. Mais do que eu esperava.
Ele não respondeu. Só me encarou, aquele olhar de rei imutável. O tipo de olhar que tenta fazer os outros abaixarem a cabeça sem precisar dizer uma palavra.
Mas eu não abaixei.
Terminei de cuidar do corte e ajudei a menina a se levantar. A mãe agradeceu baixinho e saiu, quase se encolhendo ao passar por ele.
— Você tá espantando as pessoas — disparei, me levantando e limpando as mãos com um pano já sujo de sangue e sabão.
— E você tá tentando consertar um mundo que nunca quis ser consertado — ele rebateu, encostando-se à parede como se fosse parte da estrutura.
— Essa ONG não é sua. Essas pessoas não são suas. Aqui é um espaço neutro.
— Neutro? — Ele deu uma risada curta. — No Jacarezinho não existe isso. Ou você tá comigo, ou tá em risco. A neutralidade só existe em livro de faculdade.
— Não preciso da sua proteção.
— Mas vai ter. Porque você ainda não percebeu o que significa andar nesse território.
— Significa que eu sou corajosa, não burra.
Ele estreitou os olhos.
— Você se acha corajosa porque encara bandido nos olhos?
— Não — dei um passo à frente, os olhos grudados nos dele. — Eu me acho corajosa porque, mesmo sabendo quem você é, eu continuo aqui, tentando mudar alguma coisa. Enquanto você só mantém tudo no caos pra continuar no trono.
A tensão entre nós era tão espessa que podia ser cortada com uma faca.
E, mesmo assim, ele sorriu. Como se estivesse se divertindo com meu confronto. Como se, naquele jogo de poder, meu desafio fosse um convite.
— Você é braba — ele disse, sem ironia.
— E você é invasivo. Se quiser continuar se aproximando, vai ter que bater na porta como qualquer ser humano.
— Isso é um aviso?
— É um limite.
Ele não respondeu. Só me olhou por mais um instante, longo demais, profundo demais. Depois virou as costas e saiu.
Mas antes de sumir na rua, ele falou:
— No dia em que entender que o limite entre certo e errado aqui é só uma linha queimada no concreto, a gente conversa de novo.
E foi embora.
Minhas pernas começaram a tremer quando ele já não estava mais ali.
Não era medo. Não exatamente. Era a sensação de ter encarado um furacão e ainda estar inteira. Mas sabendo que ele voltaria. Furacões sempre voltam.
***
Naquela tarde, enquanto reorganizava os materiais da ONG, ouvi gritos do lado de fora. Corri até o portão e vi uma mulher — Sandra, uma das moradoras — sendo empurrada contra a parede por um homem de olhos fundos e barba malfeita. Um dos "soldados menores", como os meninos chamam. Um daqueles que se alimentam da força dos outros.
A filha de Sandra, uma menininha de uns cinco anos, chorava agarrada ao vestido da mãe.
— Você acha que pode me ignorar? Hein, v***a? — ele gritou, puxando o braço dela.
Meus pés se moveram antes que eu pensasse.
— Larga ela agora! — minha voz cortou o ar, mais alta do que eu achava que seria capaz.
O homem virou, surpreso. Me encarou com um riso torto.
— Ih, a doutorazinha se metendo onde não deve.
— Eu disse pra largar — repeti, aproximando-me. — Tá ouvindo a criança chorar? Isso aqui não é tribunal de rua, nem zona de guerra. É uma família. Solta.
— Tá se achando demais, hein? Vai querer bater de frente com a quebrada?
— Não. Mas você vai sair daqui agora — disse, firme, mesmo com o coração socando minhas costelas.
Ele me olhou como se estivesse considerando me derrubar ali mesmo.
Mas então... tudo mudou.
A voz veio seca, gelada, cortante:
— Solta ela. Agora.
Era Daren.
Do nada. Surgido da sombra como um fantasma que protege e assusta.
O homem congelou. Ficou branco. Soltou Sandra de imediato.
— Eu… eu só tava…
— Tava o c*****o. Tá falando alto com mulher e fazendo criança chorar por quê? Quer mostrar poder? Vai mostrar lá no inferno — Daren disse, andando devagar até ele.
O som de seus passos ecoava na rua.
— Daren, foi m*l, eu...
O soco veio seco. Um, dois, três. O cara caiu no chão, gemendo.
Daren se abaixou, agarrou o colarinho dele e sussurrou algo que não ouvi. Mas o tom era letal.
Depois, se levantou, limpou a mão na própria camisa e olhou pra mim.
— Isso aqui não é pra você, Eva.
— E se eu não estiver aqui, quem vai estar? — perguntei, ainda tremendo.
Ele não respondeu. Só me olhou de um jeito que doeu. Como se dissesse: "você vai se machucar tentando consertar um lugar que sobrevive da dor."
Sandra me agradeceu com olhos cheios de lágrimas. A filha dela me abraçou. Aquilo doeu mais que o susto.
Mas o que ficou naquela noite foi o olhar de Daren.
O olhar de um homem que mata, que sangra, que lidera…
Mas que, por alguma razão, parecia começar a me ouvir.
Naquela noite, em casa, sonhei com a linha que ele falou.
A linha entre certo e errado. Entre guerra e paz. Entre nós dois.
E tive a impressão de que eu estava pisando exatamente em cima dela.
A pergunta era: quanto tempo até ela quebrar?