3. Daniela

815 Palavras
Acordo com o sol atravessando a janela, cortando meu rosto em tiras quentes. A luz invade o quarto sem pedir licença, iluminando os brinquedos jogados pelo chão, os pés pequenos da Milena encolhidos no canto da cama e a cortina fina balançando com o vento da manhã. Demoro alguns segundos pra entender onde estou. Meus olhos ardem um pouco. Dormi com a roupa de ontem, o celular ainda na mão, a tela apagada. Me sento devagar, sentindo a madeira do colchão rangendo sob o peso do corpo. Espreguiço os braços, passo a mão no rosto, e bocejo alto. A casa ainda tá em silêncio. Deve ser cedo. Estico o braço, pego o celular. A bateria tá quase no fim, mas tem uma barrinha de sinal. Isso já me anima. Sinal aqui é tipo bênção. Deslizo o dedo na tela. Uma notificação. Uma mensagem recebida às 05h17. Número desconhecido. "Tá acordado?" Franzo o cenho. Não reconheço o número. Começa com DDD de fora, não é da região. Não tá salvo na agenda, nem tem foto de perfil. Fico encarando a mensagem por alguns segundos. A primeira coisa que penso é que deve ser engano. Alguém mandou no número errado. Mas tem alguma coisa no tom... direto demais pra ser spam, curto demais pra ser casual. Olho de novo. "Tá acordado?" Sem emoji, sem nome. A curiosidade pulsa no peito, quieta, insistente. Não deveria responder. Mas eu respondo. "Quem é?" Mando e espero. A tela volta pro modo de espera, escurece. Nenhuma resposta. Ainda. Levanto e vou até o banheiro, lavo o rosto com a água fria que desce da bica e enxugo com a toalha puída pendurada no prego da parede. Escovo os dentes rápido, prendo o cabelo num coque malfeito e volto pro quarto. Os pequenos ainda dormem. Um milagre. Me sento na cama de novo. A luz do sol já se espalhou, toca o chão de cimento liso e entra pela fresta da porta. Passarinhos gritam do lado de fora, como sempre. A vida aqui não para. Mas eu paro. Fico ali. Esperando. A tela do celular pisca. Nova mensagem. "Acha que é quem? Ou tu deve e não paga muita gente?" Arqueio a sobrancelha. A resposta me pega desprevenida. É curta, provocativa. Quase debochada. Não tem nem pontuação. Levo alguns segundos pra pensar. É brincadeira de alguém? Trote? Um número antigo que voltou a funcionar? Ou é só um estranho mesmo? Minha cabeça viaja por várias possibilidades. Mas, em vez de ignorar, eu digito de volta: “Não sei. Mas se tá mandando mensagem essa hora, deve tá entediado. Provavelmente não sou quem você procura, moço.” Fico com o dedo no botão de enviar por alguns segundos antes de apertar. Uma parte de mim quer apagar. A outra acha graça da situação. Acabo mandando. A resposta não demora. "Acordei cedo. E você respondeu. E pelo sua foto de perfil, não é quem eu procuro mesmo.” Sinto um frio pequeno na barriga. Não é medo. É só... a sensação de estar sendo puxada pra alguma coisa que eu ainda não entendo. Um fio invisível, esticado entre duas pontas que nem se veem. Respiro fundo. Penso em parar por aqui. Mas meus dedos já estão se movendo sozinhos. "Também acordei cedo. Aqui o dia começa antes do sol nascer." "Onde é aqui?" Paro. Avalio. Não quero sair dando detalhes pra um estranho. Mas também não quero parecer arisca demais. Respondo com algo vago: "Interior de Minas. Sítio da família." Dessa vez, a resposta demora mais. Aproveito pra levantar, ir até a cozinha e colocar água no fogo. O som da chaleira é como um despertador pros sentidos. Enquanto o café ferve, olho pela janela. A manhã tá bonita. Céu limpo, promessas de sol o dia todo. Volto com a caneca fumegante na mão e o celular no colo. Nova notificação. "Nunca fui. Deve ser tranquilo." "É. Tranquilo até demais, às vezes." "Demais incomoda?" Essa pergunta me pega de jeito. Tem algo nela que escapa do tom brincalhão. Como se quem tá do outro lado entendesse que paz demais também cansa. Que silêncio demais pode machucar. "Às vezes sim. Parece que o mundo todo tá indo pra algum lugar... e eu tô aqui, parada." Mando. E aí percebo: falei demais. Mas já foi. Minutos se passam. O celular fica quieto. O café esfria na caneca, mas eu não me mexo. Nova mensagem. "Às vezes ficar parada é mais seguro do que correr sem saber pra onde vai." Leio. Releio. Algo naquele número estranho tá se enraizando na minha manhã, tomando espaço. Não sei quem é. Não sei o que quer. Mas sei que não consigo largar o celular agora. E não mando mais nada. Pelo menos não por enquanto. Deixo o aparelho de lado, encosto a cabeça na parede e fecho os olhos por um instante. A manhã continua lá fora. A vida também.
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