O cheiro de terra molhada sempre chega antes da chuva. Aqui na roça, a gente aprende a reconhecer as coisas pelo cheiro, pelo som, pela forma que o vento muda. Nem precisa de previsão do tempo. O céu muda de cor, o silêncio se ajeita diferente, e a gente sente no corpo que algo vem.
Hoje, por exemplo, acordei com o cheiro forte da terra e aquele vento grosso que entra pela fresta da janela antes mesmo do g**o cantar. Me levantei antes de todo mundo. Ainda tava escuro, mas já dava pra ver o contorno do morro atrás do pasto. Peguei a blusa jogada na cadeira, amarrei o cabelo e fui pra cozinha em silêncio, tentando não acordar os pequenos.
Minha mãe costuma dizer que eu nasci com alma de velha. Que criança acorda cedo assim, sem reclamar? Mas a verdade é que eu nunca consegui dormir muito. Sempre fui inquieta.
Coloquei a água no fogo e comecei a fazer o café. Enquanto o cheiro ia tomando conta da casa, escutei um pigarro vindo do quarto. Era o Dudu, meu irmão do meio, sempre o primeiro a acordar depois de mim. Descalço, cabelo desgrenhado e olhos ainda fechados, entrou na cozinha feito zumbi.
— Tem café? — ele murmurou, se arrastando até a mesa.
— Tem, mas só se você for tirar leite comigo. — respondi, fingindo seriedade.
Ele bufou e sentou no banco de madeira. Eu ri. Sabia que ele não ia.
Aos poucos, a casa foi ganhando vida. Os irmãos mais novos acordaram, minha mãe saiu do quarto ainda com a voz rouca e o avental amarrotado, e meu pai já tava lá fora, mexendo no trator como se não fosse sábado.
Sábado não muda nada por aqui. Não tem shopping, não tem festa, não tem sossego. Tem serviço. Sempre.
Depois do café, amarrei as botas, prendi o cabelo de novo e fui pra lida. O gado precisava de ração, o galinheiro tava um caos, e o pasto do lado de cima tava com cerca caída desde ontem. O sol m*l tinha dado as caras e eu já tava com barro até a canela.
Enquanto jogava ração pros porcos, meu pensamento voava. Pensava na vida dos outros. Nas meninas da cidade que eu seguia no i********:. Roupas bonitas, maquiagem, salão, fotos com legenda em inglês. Elas pareciam viver num mundo paralelo. E eu aqui, com bosta de vaca na barra da calça e a pele ardendo do sol.
Mas tinha também um pedaço meu que gostava disso. Da simplicidade. Do silêncio. Do mato. De ouvir só os bichos e o vento. Eu me sentia livre aqui mesmo sem nunca ter ido a lugar nenhum.
Quando voltei pra casa perto do meio-dia, meus irmãos tavam jogando baralho na varanda, e minha mãe lavando roupa no tanque com o rádio ligado alto demais. A música era daquelas antigas, sertanejo arrastado que ela adorava.
— Já deu de serviço por hoje, Daniela? — ela perguntou, sem tirar os olhos da espuma.
— Já, por enquanto. Se chover, tem que ver a horta depois.
Entrei, lavei as mãos, peguei o celular velho carregando em cima do freezer e sentei na rede. Tinha sinal, coisa rara, e algumas mensagens de grupo da família. Nenhuma novidade.
Abri a galeria, olhei umas fotos antigas, depois fui pro w******p de novo. Nada. Uma notificação de status de uma amiga da escola que tinha se mudado pra BH. Estava linda. No espelho, com roupa nova, aquele filtro que deixa a pele perfeita.
Suspirei. A gente nem se falava mais, mas eu via tudo que ela postava. Às vezes me perguntava se alguém via os meus. Meus stories eram só mato, café e bicho.
Levantei quando minha mãe gritou que o almoço tava pronto. Arroz, feijão, frango cozido e couve da horta. Comida simples. Boa. Comemos todos juntos, na mesa apertada, com o ventilador de teto girando preguiçoso e o rádio ainda tocando modão.
No meio da tarde, sentei de novo na rede. Meus irmãos foram brincar no pasto. Eu fiquei ali, sozinha, olhando pro céu começando a fechar de novo. A mão mexia no celular sem pensar, os dedos deslizavam de um lado pro outro, abrindo e fechando aplicativos como se algo fosse aparecer do nada.
A verdade é que eu queria que aparecesse.
Alguma coisa. Alguém. Qualquer sinal de que existia vida fora daqui.
Não que eu estivesse infeliz. Mas eu tava parada. E às vezes, estar parada machuca mais do que estar sofrendo. Porque você olha pro lado e sente que tá todo mundo indo, fazendo, vivendo. E você ali. Esperando. Por nada.
Fechei os olhos. O vento mudou de novo. E com ele, veio a sensação de que a chuva estava mais perto do que a gente pensava…