capítulo 2 Nilo

1599 Palavras
🔥🩸 CAPÍTULO 2 — BAILE VERMELHO, LEI NA LAJE Narrado por Nilo Tavares Noite de sábado. Coroado aceso. E eu… no alto. O baile já tava no quinto batidão quando subi pra laje. De lá de cima, dava pra ver tudo. Cada viela, cada beco, cada movimento. Favela pulsando igual coração de mula na fuga. Mas aqui ninguém corre. Porque aqui… tem dono. E o dono sou eu. Camiseta preta colada no corpo. Corrente pendurada no pescoço igual sentença. Glock na cintura, carregada. Olho firme. Passo seco. Quem me vê, abaixa o olhar. Quem desafia… não vê o próximo baile. Encostei na mureta da laje. Traguei devagar. Cigarro na boca. Copo de whisky na mão. Fumaça subindo, pensamento descendo. Aqui não é festa. É vitrine de poder. É território marcado no grave. Lá embaixo, o DJ berrava: — “É noite do Comando, porraaaa! Quem é da tropa, faz barulho!” A quebrada respondeu em coro, ensandecida: — “É NILO, CARALHOOOOO!” Eu não sorri. Não levantei a mão. Só traguei mais fundo. Porque rei que se explica… perdeu o trono. As novinha dançando em cima dos fuzil dos vapor. Os cara ostentando ouro falso e ego inflado. Cheiro de churrasquinho, erva e suor barato. Essa p***a toda parece liberdade… Mas é ilusão. Aqui ninguém é livre. Aqui todo mundo deve. E a dívida é paga com lealdade. Ou com corpo. Tinha olheiro meu espalhado em tudo que é canto. Uns no meio da pista, outros encostado nas caixas de som. Tudo treinado. Tudo no ponto. Se alguém tentasse alguma gracinha… era só um gesto meu. Firmei o olhar num moleque na grade da escola, acendendo um baseado. Novato. Tava na função de vapor há dois dias. Já queria vacilar. Assobiei curto. Nem dois segundos e um dos firmados, o Léo, já tava lá. Deu um tapa que o beck voou longe. — “Aqui não, p***a. Aqui é solo sagrado.” O moleque baixou a cabeça. Aprendeu. No meu morro, até o fumo tem limite. Ali na laje, do meu lado, só os de confiança. Os que já mataram comigo. Os que enterraram segredo e trouxeram a pá de volta limpa. Tropa fechada. — “Coroado tá pulsando bonito, hein, Nilo.” — disse o Jefão, olhando a quebrada vibrar. — “É. Mas baile demais amolece. Mantenha os olheiro ligados. Quem sorri demais… tá escondendo medo.” Ele assentiu e saiu. Cada ordem minha ecoa no osso do morro. Tiziu chegou depois, o gerente do beco do cimento. Olho vermelho de quem cheira mais do que vende. — “Nilo… a Compensa mandou sinal. Diz que tá tudo certo. Mas o radinho deles chiou estranho ontem à noite.” Eu não respondi. Só encarei. Ele suou. — “Quer que eu vá lá ver?” — “Não.” — falei, seco. — “Manda o Cauã. Se voltar com resposta torta, limpa.” — “Certo.” O baile seguia. Mas o clima mudava ao meu redor. Era sempre assim. Onde eu passo, o ar pesa. Uma novinha lá embaixo tentou cruzar o olhar comigo. Tava dançando em cima de um caixote, empinada, sorriso no canto da boca. Fingiu coragem. Mas eu vi o medo escorrer pelos olhos. Não olhei de volta. Não dou palco pra plateia. Eu sou o espetáculo. E espetáculo não pisca. Desci da laje devagar. Passo por passo. O baile fervia, mas minha sombra gelava o chão. Fui pro camarote. Área isolada. Três degraus acima da pista. Vista privilegiada do caos. Cercado por corda vermelha e dois firmados na porta. Ali só entra quem tem nome... ou quem carrega sangue da cúpula. Sentei no sofá de couro gasto. Copo cheio na mesa. Trinquei o maxilar. Alguma coisa tava pra acontecer. Eu sentia. Na quebrada, o povo dançava como se nada. Mas ali dentro… a temperatura caiu uns dez graus. No radinho, a voz do Cauã: — “Confirma visual. Carro preto subindo a viela. Vidro fechado. Placa limpa. É ele.” Me levantei na hora. Apaguei o cigarro na própria mão. Puta que pariu. Era ele. Terk. O homem por trás da tropa. O nome que ninguém diz alto. O Dono da Firma. Quando esse cara aparece… não é visita. É juízo final. O carro parou na frente do portão da base. Dois do lado de fora. Um abre a porta. E lá vem ele: Calça jeans escura, camisa social preta, corrente com crucifixo de prata pendurado. Dois seguranças atrás. Cada um com a cara mais fria que a outra. Quando o povo viu, a pista parou. Baile virou igreja. Os DJ desligaram o som no susto. Um silêncio pesado caiu feito concreto. Terk parou na minha frente. A quebrada em silêncio. O baile engolido por respeito… e por medo. Ele não disse boa noite. Não cumprimentou ninguém. Só puxou uma cadeira, sentou com a postura de quem carrega sentença no bolso. Eu fiquei em pé. Do meu jeito. Sem dobrar joelho. Sem baixar o queixo. Aqui é comando. Mas eu sou coroa. Ele passou a mão pelo rosto, limpando o suor que nem escorria. — “Tô com uma cobrança pra tu resolver.” — soltou, direto. Eu esperei. Não pedi detalhe. — “A mulher era usuária. Devia em tudo. Carga, respeito, grana. Deixou o nome sujo na boca e a quebrada rindo da gente.” Puxou um envelope marrom. Deixou cair na mesa como quem larga uma bomba. — “Só sobrou uma coisa pra pagar.” Me olhou no olho. Frio. Sem emoção. — “A enteada.” Pisquei devagar. Não falei nada. — “A menina vai ser entregue aqui no Coroado. Na tua mão. E tua função é simples, Nilo: eliminar.” A palavra ficou no ar. Firme. Dura. Cortante. — “Não quero susto. Não quero sumiço. Quero execução limpa. Rápida. Sem rastro.” Eu continuei em silêncio. Olhei pro envelope. Depois pra ele. — “Tem motivo pra esse serviço cair logo no meu colo?” — “Tem.” — ele respondeu. — “Porque tu é o único que não sente. O único que obedece sem tremor. E porque ela tem cara de quem vai tentar te desarmar só com o silêncio.” Deu um sorriso torto. Mas não era piada. Era teste. — “Tá achando que eu vou hesitar por causa de uma garota?” Ele deu de ombros. — “Se eu achasse isso, não te entregava ela. Mas toda torre cai de onde menos espera, Nilo.” Pegou o copo da mesa. Bebeu. — “Ela chega daqui a uma semana. Pega. Mata. Esquece. Fim.” — “Nome dela?” — perguntei. — “Amara.” Falou como quem cospe. Como quem já apagou da lista de gente viva. Abri o envelope. A foto era recente. Rosto limpo, mas o olhar… o olhar era sujo de dor, cheio de orgulho, carregado de ódio contido. Terk encostou no encosto da cadeira e cruzou os braços. A tensão no ar parecia ter perna, porque ninguém mais se mexia no camarote. Ele me olhou com aquele sorrisinho de canto. Ar de quem guarda veneno na língua. — “A pirralha é bonita, viu. Tem cara de santa, mas olho de quem sabe onde enfiar o pecado.” Deu uma risadinha suja. Deboche puro. — “Se eu fosse mais novo… talvez eu fizesse outra proposta.” Eu não ri. Nem balancei a cabeça. Só encarei. — “Não curto esse tipo.” A resposta veio seca. Crua. Ele arqueou a sobrancelha. — “Não gosta de novinha?” — “Não gosto de trampo com enfeite. Se é pra matar, que seja só isso. Sem flor no caixão.” Aquele sorriso dele murchou um pouco. Mas a língua ainda queria testar. — “Pena. Porque a pirralha tem presença. Tem corpo de mulher, mas alma de bicho ferido. Daqueles que morde quando tu estica a mão.” Puxei o envelope de novo. Olhei a foto por mais um segundo. Boca cerrada. Olhar que fura. Orgulho no osso, sim. Mas também desafio escondido na íris. — “Quanto tu pagou nela?” Terk se levantou devagar, como se a pergunta tivesse surpreendido. — “Uns dois mil e umas promessas quebradas.” — “Barato pra quem vale tanta encrenca.” Ele soltou um “hm” baixo. — “Tu tá achando que ela vale?” — “Tô achando que tem cobra que vem enrolada em fita. Mas continua cobra. E cobra… morde.” Ele deu dois passos até mim. Ficou perto. — “É por isso que eu joguei no teu colo. Tu sabe arrancar dente de víbora sem tremer o pulso.” Eu levantei o olhar. — “Então relaxa. Quando ela chegar… ela vai ver que no Coroado não tem espaço pra veneno calado.” Terk assentiu. Mas no fundo dos olhos dele… tinha aquela p***a de certeza que me irrita. A certeza de que, dessa vez… talvez eu vacile. Ele puxou o próprio cigarro. Acendeu. — “Uma semana, Nilo. A garota sobe o morro como dívida. Mas se tu falhar… ela desce como fraqueza. E fraqueza… o Comando elimina junto.” Deu a última tragada. Jogou o cigarro no chão e pisou. — “Até lá… faz o que tu sabe. Mata antes que te amoleça.” E saiu. Deixou o cheiro do fumo… e o gosto do futuro fedendo a pólvora adiantada. Fiquei ali. Sozinho. Com o envelope queimando no bolso. E o nome dela martelando feito tambor no juízo: > Amara.
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