Em Movimento

922 Palavras
A orquestra atacava mais uma valsa, dessas que soam como se o tempo tivesse parado em outro século. O salão estava em seu auge, rodopiando em seda, cristais e perfumes importados. Eu havia acabado de devolver a delegada Eliza Ferraz ao seu isolamento voluntário depois da dança — uma dança que, convenhamos, foi muito mais um duelo silencioso do que qualquer coisa romântica. Eu a tinha sentido perto demais, senti aquele choque elétrico quando puxei o corpo dela de volta no passo ousado. Ela me olhou como se tivesse se esquecido, por um segundo, que era a minha inimiga. Mas apenas por um segundo. Depois, se afastou como se eu fosse apenas mais uma sujeira para limpar do sapato. E, claro, eu fiquei ali, com o copo de uísque na mão, observando-a desaparecer entre os convidados, com aquele ar carrancudo de quem não dança por prazer, mas por estratégia. — Bom… — uma voz conhecida soou às minhas costas. — Eu não sabia que você tinha talento pra dançar com a lei. Virei devagar, já sabendo quem era. Kian estava ali, rindo como sempre, impecável como sempre. A gravata alinhada, os sapatos brilhando. Malhado, alto, aquele porte de quem nunca é esquecido num ambiente cheio. E, claro, o sorriso debochado. — Não começa — eu disse, servindo mais uísque no meu copo. — Não começa? Eu vi com meus próprios olhos. O grande Gabrian Varella, rei do submundo, rodopiando no salão com uma policial. Isso vai render piada por meses. Revirei os olhos. — Ela é uma delegada federal, não uma policial qualquer. E não foi um rodopio, foi apenas uma demonstração de boas maneiras. Kian arqueou a sobrancelha. — Boas maneiras? Jogar a mulher contra o chão num passe de dança é o seu conceito de boas maneiras? Eu ri, um riso baixo, carregado de malícia. — E você falando isso? Logo você… que estava ali, no meio da pista, dançando com uma mulher qualquer, tentando fingir que não é quem é. Ele se engasgou de leve com o champanhe que segurava. — Desculpa? — Ah, vamos, Kian… — eu disse, dando um tapinha no ombro dele. — Você já é assumido. Não precisa voltar pro armário só porque a festa é cheia de conservadores hipócritas. Ele arregalou os olhos e depois caiu na gargalhada, tão alta que algumas pessoas chegaram a olhar. — Você é impossível. — Eu sei. — sorri. — Mas ainda sou melhor dançarino que você. Ele levantou o dedo, apontando para mim, como quem jura vingança, mas não conseguiu parar de rir. A gente tinha esse tipo de amizade. Eu podia debochar do fato de ele ser gay, ele podia debochar da minha mania de controlar tudo — e nada nunca passava do limite. Era justamente isso que nos fazia funcionar. Enquanto isso, o salão continuava pulsando. A safira de cem quilates — minha pequena armadilha — já estava em exibição, brilhando sob a vitrine de cristal reforçado. O colecionador, meu laranja bem pago, estava encantando a plateia com histórias falsas sobre a joia, fingindo ser o legítimo dono. Alguns convidados faziam fila para vê-la de perto, outros para perguntar sobre a possível compra. Eu observava de longe, com a calma de quem sabia que cada passo já estava calculado. A safira tinha uma história suja, um rastro perigoso, e eu sabia exatamente quem iria farejá-lo: a delegada Ferraz. E, como se o universo tivesse se aliado à minha mente criminosa, quando ergui os olhos através do salão, lá estava ela. Eliza Ferraz. Parada a alguns metros, em meio a políticos, empresários e artistas, mas de corpo e alma completamente deslocada daquele ambiente. Vestia um vestido preto sóbrio, cabelo preso em coque impecável, maquiagem quase invisível. Não sorria, não conversava, não bebia. Apenas observava. E, naquele momento, me observava. Nossos olhares se cruzaram como lâminas. O dela, frio, duro, sério. O meu, provocador, carregado de riso contido. Ela não desviou. Ficou ali, me encarando como se pudesse me matar com o olhar. E, claro, eu ri. Kian percebeu. — O que foi? — Nada — respondi, ainda olhando para ela. — Apenas a faísca mais interessante que essa festa já me ofereceu. Ele seguiu meu olhar e arregalou os olhos. — Ah, não… não me diga que você tá interessado nela. — Interessa mais do que essas joias falsas de milionários desesperados por status. — Gabrian, pelo amor de Deus… — Kian bufou. — Ela é uma delegada. Você é… você. — Justamente. — sorri, dando um gole no uísque. — O impossível sempre foi meu terreno favorito. Enquanto Kian resmungava qualquer coisa sobre eu ser louco, a festa continuava seu curso. A música subia, os pares rodopiavam, as taças tilintavam. O colecionador mostrava a safira para um grupo de magnatas americanos, e eu já podia ver a transação tomando forma. Dinheiro iria mudar de mãos naquela noite. E, junto com ele, a isca perfeita para Eliza Ferraz. Mas, no meio de toda aquela engrenagem social perfeitamente ajustada, havia algo mais. Havia o olhar dela. Sempre nele. Sempre voltando para mim, mesmo que apenas por segundos. Como se ela quisesse me odiar, mas não conseguisse parar de me estudar. E isso, para mim, era música. Eu era o maestro daquele salão, e cada nota tocada pela orquestra era apenas mais uma peça da minha sinfonia criminosa. E, no centro dela, estava Eliza Ferraz. A mulher que dizia me odiar. A mulher que podia me derrubar. A mulher que, eu sabia, já estava presa na minha rede.
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