JAYME
Era quase meia-noite.
Três batidas secas ecoaram na porta, seguidas de uma voz impaciente:
— Ô, vizinho! Dá pra controlar esse bebê, pelo amor de Deus? Tem gente querendo dormir aqui!
Respirei fundo, já esperando o pior. Caminhei até a porta, exausto, e quando abri...
A gente não disse uma palavra.
Ficamos ali, só nos encarando. Ela, baixinha, cabelo preso de qualquer jeito, de pijama da Barbie — sim, um pijama da Barbie — e um robe jogado por cima, braços cruzados e uma cara de poucos amigos.
Mas, no instante em que os olhos dela desviaram dos meus e focaram no Arthur... tudo mudou.
Ela viu meu filho, jogado no tapete da sala, se debatendo, o rostinho todo vermelho, suado, apertando as mãos, chutando o ar, gritando desesperado. Aquela cena que me dilacerava por dentro, que me fazia querer ser mágico, médico, qualquer coisa que resolvesse.
Sem dizer absolutamente nada... ela entrou.
Atravessou a sala, se agachou perto dele e começou a fazer um chiado ritmado com a boca, um “shhh... shhh... shhh...” constante, ao mesmo tempo que balançava suavemente o corpinho dele, pressionando uma almofada contra ele, gerando aquele peso que ele precisava pra se sentir seguro.
Fiquei... absolutamente imóvel. Só olhando, completamente impressionado.
Ela passou a mão delicadamente nas costas dele, abaixando o tom de voz até virar um sussurro:
— Assim... olha pra mim... respira... tá tudo bem, tá? Tá tudo bem... tá seguro... — A voz dela era calma, suave, quase hipnótica.
E, inacreditavelmente... Arthur foi se acalmando. O choro virou soluço. O corpo foi relaxando aos poucos.
— Tá olhando o quê? — Ela arqueou a sobrancelha, lançando aquele olhar afiado. — Vai ficar aí plantado ou vai me dizer o que tá acontecendo?
Eu pisquei, completamente perdido, tropeçando nas próprias palavras.
— Eu... é... eu não sei. Na verdade, eu... — passei a mão no rosto, sem saber nem por onde começar.
Ela soltou um suspiro, ajeitando Arthur no colo.
— Tá, respira aí, paizão. Primeiro... deixa eu me apresentar, né? Porque bater na porta dos outros pra brigar e depois se enfiar na casa deles sem ser convidada não é exatamente coisa que minha mãe me ensinou. — Limpou as mãos na calça do pijama e estendeu uma pra mim. — Lucy. Moro no 202, aqui embaixo. A vizinha que, provavelmente, você tá achando uma chata agora.
Fiquei uns segundos encarando a mão dela, meio em choque, meio pensando: “Ela limpou a mão... depois de pegar meu filho?!”
Apertei, meio desconfiado. — Jayme... eu sou... o pai do Arthur. — E sim, gaguejei. Porque minha cabeça tava uma bagunça total.
Ela sorriu, ajeitando uma mecha de cabelo atrás da orelha. — E você... é o Arthur. — olhou pra ele com ternura. — Deu trabalho hoje, hein, garotinho?
Me abaixei devagar, sentei no chão ao lado dela, esfreguei as mãos no rosto, tentando achar forças pra não desmontar de vez.
— Me desculpa pelo... — fiz um gesto vago no ar, apontando pro teto, pro prédio todo, — pelo barulho. Eu juro que... eu tô tentando.
Ela soltou um meio sorriso. — Olha... eu subi pronta pra te xingar, viu? Pra soltar os cachorros mesmo. — Olhou pro Arthur, que agora apertava uma almofada no rosto, se balançando de leve. — Mas... quando eu vi... percebi que não é só um bebê chorando. Tem mais coisa aí, né?
Assenti, respirando fundo, passando a mão no cabelo.
— É... ele... tá em avaliação. A psicóloga acha que pode ser TEA... autismo. — A garganta travou, mas continuei. — E às vezes ele tem essas crises... e eu não sei... eu simplesmente não sei o que fazer.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos. Só olhando pro Arthur, passando a mão nas costinhas dele, que agora só fazia aquele som baixinho, meio que resmungando, mas bem mais calmo.
— Bom... eu não sou especialista, não. Mas, sei lá... talvez eu possa ajudar de vez em quando. Nem que seja pra fazer um shhh... — Ela sorriu, e foi impossível não notar que aquele sorriso dela era... diferente. Leve. — Pelo menos até você descobrir como acalmar ele de vez.
Pisquei. Olhei pra ela como quem não acredita. — Sério?
— Sério. — Deu de ombros, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. — Mas, olha... da próxima vez, tenta resolver isso antes de me obrigar a subir de pijama da Barbie pra salvar a situação, combinado?
E, cara... eu ri. Um riso leve, solto, meio desacreditado. Fazia tempo que eu não ria assim. Tempo demais.
— Combinado. — sorri de volta, meio sem jeito, mas sincero.
E foi nesse exato momento que eu percebi: ela não só entrou na minha casa... ela tinha acabado de entrar na minha vida.
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Ela me olhou, meio desconfiada, meio curiosa... e então soltou, tentando parecer casual, mas dava pra ver que a curiosidade tava gritando:
— E... a mãe dele? Por que ela não ajuda nesses momentos?
O nó que subiu na minha garganta foi instantâneo. Minha boca até se abriu, mas... nada saiu. Nenhuma palavra. Só movimentei os lábios, sem voz, sem força.
Mas ela entendeu. Ela viu nos meus olhos. Não precisava dizer.
“Ela morreu.”
O silêncio que ficou depois disso parecia pesar toneladas. Vi na hora o quanto ela se encolheu, como se tivesse levado um soco. A cara dela ficou vermelha, ela desviou o olhar, desconfortável, provavelmente se sentindo a maior i****a do planeta por ter subido aqui pronta pra me esculachar sem saber de nada.
Mas eu não julguei. Ninguém sabe, ninguém imagina. E também... ninguém pergunta.
Olhei pro Arthur, que agora começava a se acalmar, respirando mais devagar. Aos poucos, ele foi relaxando... até bocejar e, do nada, simplesmente deitar no colo dela e dormir.
Assim, como se ela fosse... sei lá... casa. Refúgio.
E naquele momento, olhando os dois ali no meu tapete, meu peito apertou. De um jeito estranho, diferente. Algo que eu não sabia nomear, mas tava ali. Presente.
Arthur... era tudo pra mim. E ver ele finalmente calmo... nos braços de uma desconhecida... me desmontou por dentro.
Ela alisou o cabelinho dele, afastando os fiozinhos loiros que estavam grudados na testa suada. E, antes que eu falasse qualquer coisa, ela simplesmente se levantou com ele no colo.
— Eu... eu pego ele. — Falei, estendendo os braços, meio sem jeito.
— Não. — respondeu na lata, puxando o Arthur mais pra ela. — Deixa, eu levo.
Fiquei ali, parado, encarando ela. Parte de mim quis discutir, mas... desisti. Percebi que seria perda de tempo. Ela já tinha decidido.
Suspirei, balancei a cabeça e só falei:
— Vem... te mostro o quarto dele.
Fui guiando ela até lá. E, quando ela entrou, vi seus olhos passearem por tudo. Cada detalhe. O tema safari, os bichinhos, os quadrinhos... aquele quartinho é meu maior orgulho. Meu e... dela.
Ela olhou pra parede de frente pro berço. E, claro, viu a foto. Aquela foto.
A mulher loira, minha esposa, sorrindo, segurando a barriga de grávida. O tipo de foto que eterniza um amor... ou uma saudade que nunca vai embora.
Vi ela engolindo seco. Mas não falou nada.
Ela ajeitou o Arthur no berço, cobriu ele com a fraldinha de pano que sempre deixo lá, e ficou alguns segundos só observando ele, como se quisesse ter certeza de que ele tava bem, confortável, seguro.
Liguei a babá eletrônica, ajeitei o ar-condicionado, chequei tudo... e voltei pra sala. Ela veio atrás, andando devagar.
— Aquela da foto... é a mãe dele? — perguntou, meio sem jeito, mas perguntou.
Assenti. Sem abrir a boca. Não tinha forças.
Mas ela não parou. Jogou outra, na lata:
— Ela... morreu no parto?
Parei, respirei fundo, fechei os olhos por uns segundos. A garganta queimou.
— Não... — falei, encarando o nada. — Ela... sumiu no mar. Tem alguns meses. Nunca encontraram o corpo.
Falei tentando parecer firme, mas a verdade é que... parte de mim se recusa a aceitar.
Parte de mim ainda espera uma ligação.
Um milagre.
Qualquer coisa.
Ela não respondeu. E eu agradeci, em silêncio, por ela não ter dito aquelas coisas que as pessoas normalmente dizem. Tipo "sinto muito", ou "você precisa aceitar"... ou qualquer frase feita que nunca ajuda.
Quebrando aquele clima pesado, soltei, meio no automático:
— Quer um café?
Ela me olhou como se eu tivesse falado a coisa mais absurda do mundo.
— Café? — arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços. — Tá querendo me deixar acordada até amanhã? Tá doido? Se for chá de camomila, suco de maracujá... ou, sei lá, um Rivotril, eu aceito.
Não consegui segurar. Ri. De verdade. Pela segunda vez naquela noite. E fazia tanto tempo que eu não ria assim... sem esforço, sem forçar.
Fui até a cozinha, peguei a chaleira, preparei o chá, joguei o sachê na xícara e empurrei o açucareiro na direção dela.
E aí, sem o menor pudor, ela aponta:
— Me dá três daqueles sequilhos ali, Jayme.
Balancei a cabeça, rindo, e empurrei o pote.
A gente ficou ali. Trocando umas palavras soltas. Coisas bobas. Mas que, de algum jeito, foram preenchendo aquele vazio enorme que existe aqui dentro desde que... desde que ela se foi.
Terminei meu café, ela acabou o chá, pegou o último sequilho e se levantou.
— Bom... acho que agora dá pra tentar dormir, né? Sem bebê em crise e sem vizinha surtada batendo na porta.
Acompanhei ela até a porta. E, antes que ela saísse, falei, de coração:
— Obrigado, Lucy. De verdade.
Ela só levantou a mão, piscando:
— Relaxa. Somos vizinhos agora. E... bem... acho que você acabou de ganhar uma babá meio doida, mas com um coração bem grande.
Fiquei olhando ela ir embora, cruzando o corredor.
E foi aí que me dei conta.
Que, talvez... só talvez... aquela noite tinha mudado tudo.
Pra mim. Pro Arthur. E, quem sabe... pra ela também.