Dois dias haviam se passado desde de a palestra de Gabriel, e Aurora não via nem sinal de fumaça da parte dele. Obviamente aquilo era o esperado, se ele não a procurou quando era só uma pessoa comum e desocupada no passado, por que a procuraria agora?
No entanto, aquilo a atormentava, passava muito tempo pensando no encontro dos dois, na maldita indignação infundada dele ao ouvi-la dizer que a abandonou. E quando não estava pensando em Gabriel e no passado, estava sonhando com Gabriel, com uma versão adolescente e feliz dos dois.
– Você anda tão dispersa ultimamente – Helen estalou os dedos em sua frente, Aurora meneou a cabeça, focando o olhar no copo enorme de café sobre a mesa.
Ainda era quarta-feira, precisava de muita cafeína para aguentar uma manhã inteira de aulas e seu turno da noite na boate. Também precisava parar de pensar que sua próxima folga só ocorreria na próxima segunda-feira, ou em como era um caos trabalhar na boate com uma colega de trabalho a menos.
– Aurora...
– Eu estou bem, Helen – para contradizer a própria frase, bebeu uma quantidade enorme de café em grandes goladas, como a boa viciada que era – Só preciso de mais um desses.
– Nem pensar – Helen tomou o copo de sua mão – Isso aqui tem meio litro, e você já bebeu dois só hoje – quando Aurora revirou os olhos para o tom de exasperação, a amiga completou: – E ainda são sete horas da manhã!
– Ah, qual o problema? – ela tomou o copo de volta, acenando com ele para o atendente da cafeteria do campos – Carros precisam de combustível, eu preciso de café.
– O problema é que café demais faz m*l – Helen serrou os olhos negros em sua direção – Você vai acabar tendo insônia, ou gastrite, ou...
– Sua amiga tem razão – uma voz grave interrompeu a lista interminável de problemas advindos do café. Aurora congelou no lugar, enquanto Helen arregalava os olhos e ajeitava uma mecha do cabelo ruivo atrás da orelha.
– Ai meu Deus – a ruiva murmurou abismada. Aurora ergueu o olhar até Gabriel no momento em que ele se sentou na cadeira vazia do lado direito da mesa.
– Ótimo – murmurou m*l humorada. Ele sorriu.
– Não vai me apresentar a sua amiga? – naquele momento Aurora teve certeza de como odiava o tonzinho sarcástico que o novo Gabriel tinha. Mais uma coisa para a interminável lista de “coisas detestáveis na pior versão do Big G”.
– Como se ela não soubesse quem você é – revirou os olhos, impaciente, sem deixar de notar como a presença de Gabriel já chamava atenção das poucas pessoas ao redor, mesmo que ele ignorasse completamente esse fato.
– Você conhece ele? – Helen sequer disfarçava, até mesmo estava corada enquanto os olhos brilhavam sobre o homem. Aurora respirou fundo, desviou o olhar da amiga animada e ignorou a pergunta.
– O que você quer aqui, Gabriel? – esperou o atendente depositar o copo de café em sua frente antes de continuar: – Hum? Veio chamar atenção? Dar uma de bem feitor? Arrecadar fãs?
– Nossa, Amorinha, você não era assim – ele inclinou o corpo em sua direção, o olhar varrendo cada parte de seu rosto, o perfume caro e cítrico invadindo seu nariz. Ele precisava mesmo cheirar tão bem? Ou ter esse jeitinho alinhado-sexy de playboy? Nossa, Aurora daria tudo para ter o velho Big G de volta, com as bermudas folgadas, as camisas de super-herói e as espinhas no rosto. Olhar para ele era muito menos desagradável que olhar para essa versão atual, com as roupas sociais caras e a pele mais perfeita que a sua, fora o sorrisinho convencido que a fazia querer ranger os dentes – Por que tanta mágoa nesse seu coraçãozinho, hum?
– Quer saber, vai se f***r – ela pegou o copo sobre a mesa antes de levantar – Ao contrário de você, eu não tenho a vida ganha, não tenho tempo para perder – desviou o olhar da carinha debochada dele e encarou a amiga – Você vem ou vai ficar aqui?
Helen olhava entre os dois com uma expressão assustada, como se fosse crime insultar o senhor riquinho.
Sem paciência para aquilo, Aurora jogou uma nota de dez na mesa e se afastou, porque insultar o riquinho podia não ser crime, mas com certeza bater nele seria, e faltava muito pouco para perder o bom senso e desmanchar aquela carinha de deboche na base da p*****a.
Ficou grata quando a catraca liberou sua passagem de primeira e pôde ir para a segurança da sala de aula vazia, onde os pensamentos sobre Gabriel teriam chance de atormenta-la um pouco mais.
***
Aurora estava no meio do expediente noturno na boate, limpando o balcão pela milésima vez, já que as pessoas tinham uma grande dificuldade de manter os copos nos suportes, quando a voz de Gabriel preencheu seus ouvidos, abafada pela música alta. Ela ergueu o olhar, torcendo para estar enganada, mas era mesmo Gabriel parado em sua frente, usando uma blusa social preta com mangas arregaçadas e com os dois botões de cima abertos, deixando à vista a ponta de uma tatuagem que sumia por dentro do tecido. O cabelo, ao contrário das outras duas vezes em que o vira, estava bagunçado, os fios negros e lisos em um emaranhado perfeito. Era como se Gabriel fosse um ator que passou horas sendo arrumado para se parecer a imagem perfeita de um cara gostoso que acabou de sair do serviço e precisa de uma dose de bebida para relaxar.
– Oi, Amorinha – ele apoiou os cotovelos no balcão, fazendo Aurora parar de observa-lo e focar o olhar em seu rosto, onde um sorrisinho convencido já pairava.
– Por que você está aqui? – parou na frente dele, despejando as palavras entredentes após ter certeza de que seu supervisor não estava por perto, a última coisa de que precisava era levar uma bronca no serviço, já bastava seu supervisor ter uma obsessão pelo lema “O cliente tem sempre razão”, Aurora perdera as contas de quantas vezes ouviu sermões por não dar razão às coisas absurdas que alguns frequentadores da boate tinham a audácia de propor ou falar.
– Eu sou só um cara cansado tentando relaxar em uma boate após um longo dia de trabalho – Gabriel sorriu, dentes brancos perfeitamente retos. Será que havia algo nele que não fosse fisicamente perfeito? – Não vai perguntar como pode me servir?
– Não. Vou perguntar quando você virou um b****a assim – ela deu às costas. Naqueles momentos em que necessitava que o balcão estivesse lotado, os malditos frequentadores não vinham encher sua paciência com pedidos alcoólicos.
– Talvez tenha sido um pouquinho depois de você ter virado uma – o tom de voz repentinamente frio a fez virar de volta para olha-lo.
– O que isso quer dizer?
– Eu quero um uísque.
Aurora o encarou confusa e Gabriel sustentou seu olhar até que ela desistiu e foi servir a bebida, aproveitando que o lugar permanecia vazio para se apoiar no balcão após deslizar o copo para ele.
– Você sabia que eu ia estar aqui ou isso foi mesmo uma coincidência?
– Eu sabia – ele deu um gole na bebida, os olhos ainda nos dela.
– Como? – Gabriel deu de ombros.
– Sua amiga me contou, aliás, muito simpática ela.
– Vou m***r a Helen – Aurora revirou os olhos. Ele sorriu.
– Você ainda tem todas as manias do passado?
A menção ao passado a fez assumir novamente posição defensiva.
– O que você quer aqui, Gabriel? – ele deu de ombros novamente, dessa vez um pouco menos descontraído que antes.
– Tenho uma proposta para te fazer.
Gabriel
Gabriel observou enquanto Aurora assimilava suas palavras. Depois de dez anos sem vê-la, era muito difícil não se distrair notando cada pequena mudança que ocorreu com a garota. Aurora sempre fora linda aos olhos de Gabriel, mesmo na adolescência, quando usava aparelho, cabelo sempre preso em um coque, roupas folgadas e se recusava a passar maquiagem para cobrir as espinhas. Ela era linda porque... Era ela. A garota que sempre estava ao seu lado, que não o julgava, que era diferente... Ou ao menos se fez diferente até o dia em que deixou todo aquele teatrinho para trás e mostrou como era só mais uma como qualquer outra.
Ele ainda não acreditava que ela teve a coragem de dizer que ele a abandonara, depois de tudo o que ela fez no passado, como podia dizer algo assim? Se havia alguém abandonado naquela história era ele. Mas Gabriel não tinha tempo para pensar no passado, sua vida era ocupada demais e naquele momento tudo o que importava era persuadir Aurora a aceitar sua proposta.
Ele só rezava para que restasse ao menos um pouco da sua Aurora do passado, porque era só nela que ele confiava o bastante para propor algo assim.
– Que proposta? – ela o olhava de um jeito desconfiado, com as sobrancelhas franzidas. Aliás, aquele olhar era exatamente igual ao que ele recordava e era difícil se concentrar no que tinha de dizer quando ela expressava uma das manias antigas, a nostalgia daqueles gestos quase o deixavam fora de órbita.
– Nós podemos conversar em outro lugar? – virou o resto do uísque de uma vez só, odiava o fato de ter de pedir algo a Aurora depois do que aconteceu no passado, seu orgulho ainda era forte demais para aceitar aquilo.
– Não sei se você notou, mas eu estou trabalhando. Então, não podemos – ele sorriu, apenas porque sabia o quanto aquele sorriso parecia irrita-la.
– Tudo bem, eu posso esperar – ergueu o copo – Que tal me servir outra dose?
A verdade é que Gabriel estava em uma situação sem saída e por ironia do destino, Aurora era a única mulher em quem ele conseguira pensar quando seus assessores e todas as outras pessoas que cuidavam da imagem da empresa relataram o novo problema que precisavam enfrentar. Eles precisariam adotar medidas drásticas para adquirir uma associação essencial para a empresa, e o plano dessa medida drástica teria de envolver uma mulher em quem Gabriel conseguisse depositar plena confiança.
Talvez grande parte de Aurora ter surgido como primeira alternativa para o plano se devesse ao fato de ele estar falando com ela no momento em que recebeu a ligação da assessora, no entanto, depois de desligar a chamada e voltar ao estacionamento em busca de Aurora, que já havia sumido, ele teve muito tempo para pensar em outra alternativa... e não achou ninguém. Todas as “mulheres da sua vida” eram temporárias e, na maior parte dos casos, interesseiras. Ele não podia confiar um plano sigiloso à nenhuma delas, mas com Aurora... Mesmo que ela o tenha rejeitado da forma mais dolorosa no passado e se provado ser mais uma garota ligada demais às aparências, Aurora jamais falhara quando se tratara de confiança, ela sempre soube de cada uma de suas inseguranças e de seus segredos e nunca o traíra em relação a eles. Além disso, Gabriel seria hipócrita se não admitisse o quanto queria uma desculpa para passar mais tempo com ela, para descobrir todas as coisas que mudaram na garota ao longo dos anos, para mostrar a ela que agora ele fazia parte do grupo dos fisicamente bonitos, que agora era ele quem podia rejeita-la, mesmo achando esse pensamento e essa nova sensação de superioridade ridículos.
Às duas da manhã o supervisor de Aurora a liberou para ir embora, àquela altura Gabriel já havia desistido das bebidas alcoólicas e se enchido de água e refrigerantes. Precisava estar sóbrio para falar sobre a proposta e explicar tudo.
– Então, qual a proposta? – o tom de deboche e a pose defensiva da garota o fizeram rir, o que só contribuiu para a irritação no olhar dela. Aurora era alta, e agora seu corpo era quase uma tentação com todas as curvas nos lugares certos, os cabelos cacheados estavam soltos, e os olhos castanhos pareciam prestes a perfurar sua pele, mas ainda assim, Gabriel não conseguia evitar de sorrir ao vê-la irritadinha daquela forma – Gabriel, eu não tenho tempo para suas idiotices, se não tem mesmo algo para me dizer, eu vou embora – ela sequer esperou resposta antes de virar e começar a se afastar, por um instante Gabriel apenas observou os reflexos da iluminação contra os cabelos dela, a luz da lua iluminando a pele n***a e perfeita dela... Então ele balançou a cabeça, se repreendendo e respirou fundo, tomando coragem para dizer as palavras a seguir:
– Quero que você seja minha noiva.
Foi o bastante para fazer Aurora paralisar no lugar.