1. A Carona (Parte III)..

2088 Palavras
​A aula se arrastava como melado frio, cada segundo pingando lentamente no relógio da parede. Minha mente, no entanto, vagava longe dali. As palavras do professor chegavam até mim estilhaçadas, sons desconexos que eu não conseguia — e, honestamente, nem tentava — montar. ​O que dominava meus sentidos não era a física ou a história, mas a eletricidade estática no ar. Mesmo sem olhar, eu sentia o peso daquele olhar queimando a pele sensível da minha nuca. Era físico. Era denso. ​Theo nem se dava ao trabalho de disfarçar. Ele me dissecava com os olhos, uma análise silenciosa e intensa, como se tentasse ler nas minhas costas o quanto os boatos tinham me ferido. ​E tinham. Deus, como tinham. Mas eu preferia engolir vidro a deixar que ele, ou qualquer outra pessoa, percebesse a rachadura na minha armadura. ​Quando o sinal finalmente tocou, o som foi um alívio estridente. O caos se instalou: cadeiras arrastadas, zíperes fechando, vozes se elevando. Maria me esperava no batente da porta, uma âncora segura naquele mar revolto, mas antes que eu pudesse alcançá-la, o ar ao meu redor ficou tóxico. ​Duas garotas do "esquadrão da fofoca" — celulares como extensões das mãos e sorrisos afiados como navalhas — passaram roçando por mim. Não foi um sussurro discreto; foi uma performance. ​"Óbvio que ela aceitou a carona" uma disse, a voz pingando veneno doce. ​"O tipo dele sempre precisa de um brinquedo novo" a outra respondeu, rindo pelo nariz. "Tão ingênua..." ​Senti o sangue drenar do meu rosto e voltar de uma vez só, fervendo. Minhas orelhas queimaram. Não era vergonha. Era uma raiva pura, líquida, que me deu vontade de gritar. Respirei fundo, o ar tremendo nos meus pulmões, forçando as palavras a ficarem presas na garganta. ​Maria segurou meu braço, um toque firme e solidário. ​"Deixa pra lá, Livi" ela murmurou, os olhos fuzilando as costas das garotas. "Gente vazia faz barulho. É só isso." ​Assenti, rígida. Mas a verdade é que aquelas palavras não eram apenas barulho; eram pequenas lâminas cavando um espaço dentro de mim, mexendo em inseguranças que eu mantinha trancadas a sete chaves. ​Saímos para o corredor, e foi ali, na virada da esquina, que o mundo parou. ​Bati de frente com uma parede sólida e quente. Theo. ​Ele estava encostado nos armários de metal, os braços cruzados sobre o peito largo, a expressão ilegível. Não havia o sorriso torto e arrogante que ele costumava usar como escudo. Havia apenas uma urgência sombria. ​"Preciso falar com você", ele disse. A voz dele vibrou no ar entre nós, baixa e rouca. ​Maria ergueu as sobrancelhas, o corpo teso em defesa. ​"Agora não" disparei, tentando contorná-lo. O cheiro dele — uma mistura perturbadora de sabonete limpo e algo amadeirado — invadiu minhas narinas sem permissão. ​Ele deu um passo lateral, bloqueando meu caminho com uma fluidez irritante. ​"Lívia, é importante." ​"Nada que você diga vai mudar o lixo que estão falando por aí." ​Theo trincou o maxilar. Vi um músculo saltar em sua bochecha. ​"Não estou aqui pra me explicar. Estou aqui porque..." ​"Porque o quê?" O corte foi brusco, minha paciência estilhaçada. "Porque você é o motivo disso tudo? Porque, pra escola inteira, eu sou só mais um troféu na estante do Theo Navarro?" ​A máscara dele caiu. Por uma fração de segundo, vi um choque genuíno em seus olhos escuros. Uma dor rápida, crua, que ele tentou esconder piscando, mas eu vi. ​"Não fala assim" ele pediu. A voz saiu quase num sussurro, carregada de uma seriedade que me desarmou. ​Aquilo me irritou ainda mais. Eu não queria que ele fosse humano. Eu queria que ele fosse o vilão. Era mais fácil odiar o vilão. ​"Olha, eu não quero que ninguém pense nada sobre nós" continuei, a voz falhando levemente. "Porque não existe 'nós'. Nunca existiu." ​Fiz menção de passar, mas Theo ergueu a mão. Não tocou em mim, apenas pairou no ar, um pedido mudo de trégua. ​"Eu sei que você não quer isso. Nem eu." Ele soltou o ar pesadamente, passando a mão pelos cabelos. "Mas você sabe que eu não fiz nada pra te desrespeitar. Nada." ​O corredor parecia ter encolhido. Os olhares curiosos queimavam minha pele. O murmúrio das conversas ao redor soava como o zumbido de mil abelhas, mas o silêncio entre mim e Theo era o centro do furacão. ​O que me assustava não era a proximidade física. Era a nudez das palavras dele. Sem ironia. Sem jogos. Direto demais. Verdadeiro demais. ​"A gente m*l se conhece" sussurrei, incapaz de sustentar o olhar dele. "Não tenho obrigação nenhuma de te defender." ​Theo assentiu lentamente, os olhos fixos nos meus. ​"Eu não quero que você me defenda, Lívia. Só não quero que pense o pior de mim sem nem me dar uma chance." ​"Como se fizesse diferença." ​Ele franziu o cenho, abrindo a boca para rebater, mas o momento foi brutalmente assassinado. ​Um grupo de garotos passou atrás de nós. A risada deles foi alta, grosseira, ecoando no metal dos armários. ​"Ei, Navarro!" um deles gritou, batendo no ombro de outro. "Já garantiu o prêmio da vez?" A gargalhada coletiva foi um t**a na cara. Maria prendeu a respiração ao meu lado. Eu congelei, sentindo o frio subir pela espinha. ​Theo fechou os olhos. Vi suas mãos se fecharem em punhos, os nós dos dedos ficando brancos. Ele parecia estar segurando uma explosão, contendo uma violência que eu não sabia que existia nele. ​Quando ele abriu os olhos novamente, a tristeza tinha dado lugar a uma sombra perigosa. Mas então, ele olhou para mim. E a raiva se transformou em exaustão. ​Ele deu um passo à frente, invadindo meu espaço pessoal, perto o suficiente para que seu hálito quente tocasse meu rosto. ​"Desculpa." ​A palavra foi firme. Não havia orgulho ferido ali, nem performance para a plateia. Era um pedido real. ​"Isso não devia estar acontecendo com você" ele completou, a voz áspera. ​Fiquei muda. O peso daquela frase, da p******o implícita nela, me deixou sem ar. ​Ele recuou um passo, respeitando um limite que ele mesmo tinha cruzado. ​"Só me dá um tempo" ele pediu, intenso. "Pra te provar que eu não sou o que dizem." ​E, sem esperar minha permissão ou recusa, ele virou as costas e se afastou. Não olhou para trás. ​Fiquei ali, parada no meio do corredor movimentado, com o coração batendo descompassado contra as costelas, tentando organizar o caos que ele tinha deixado em menos de cinco minutos. ​Maria tocou meu ombro, hesitante. ​"Livi... você tá bem?" ​Pisquei, forçando minha mente a voltar para o presente. ​"Não sei." ​E era a mais pura verdade. Pela primeira vez desde que Theo Navarro cruzou meu caminho, eu estava completamente perdida. ​Depois que a figura dele desapareceu na multidão, senti o corredor voltar a girar. As vozes, os passos, a vida normal... tudo voltou, mas eu me sentia separada por uma parede de vidro. Via tudo, mas nada me tocava. ​"Quer ir pra biblioteca?" Maria perguntou, lendo minha necessidade de fuga. ​Assenti. A alternativa era desmoronar ali mesmo. ​A biblioteca estava silenciosa, cheirando a poeira e papel antigo. O ambiente controlado ajudava, mas minha cabeça continuava um labirinto. Sentei na mesa do fundo, a mais isolada. Maria abriu o caderno, mas a caneta ficou parada no ar. ​"Por que você não me contou que ele ia te levar ontem?" ​A pergunta não tinha julgamento, apenas curiosidade preocupada. Demorei a responder, traçando as ranhuras da madeira da mesa com o dedo. ​"Porque nem eu sabia. Só... aconteceu." ​"E como foi?" ​Levantei os olhos. O olhar de Maria exigia a verdade. ​"Estranho." ​"Estranho tipo r**m?" ​Desviei o olhar para as estantes. "Ele não é o que parece, Maria." ​Ela franziu a testa. "Como assim?" ​Fechei meu caderno com um baque s***o, irritada comigo mesma por estar pensando tanto nele. Por estar sentindo tanto. ​"Não sei explicar" admiti, a voz pequena. "Ele fala como se... como se soubesse coisas sobre mim. Como se me enxergasse de verdade." ​O silêncio de Maria foi pesado. ​"Livi, toma cuidado" ela disse, a voz suave, mas firme. "Tem gente que sabe falar bonito. Não quer dizer que sente bonito." ​A frase me atingiu como um soco no estômago. ​"Eu sei disso" respondi rápido demais. Mas a certeza que eu deveria ter não estava lá. ​Maria segurou minha mão sobre a mesa. ​"Só lembra do que eu disse: as pessoas inventam histórias porque a vida delas é chata. Mas isso não define você." ​Concordei com a cabeça. Mas, lá no fundo, eu sabia que algo já tinha mudado. Aquelas histórias podiam não me definir, mas a presença dele estava começando a me redefinir. ​As aulas seguintes foram um borrão. Em cada silêncio, em cada intervalo, havia uma presença fantasma. Theo. ​Ele não se aproximou mais. Não tentou chamar minha atenção. Mas eu sentia a gravidade dele. A sensação de que uma porta tinha sido aberta entre nós, uma porta que eu não sabia como fechar. ​Quando o último sinal tocou, o pátio virou um caos de mochilas e liberdade. Me despedi de Maria no portão com um abraço rápido e segui meu caminho. ​O sol já se punha, pintando o céu de um dourado melancólico que logo viraria cinza. O vento frio batia no meu rosto, mas não esfriava meus pensamentos. ​Virei a esquina da minha rua e meu corpo travou. O som inconfundível de um motor potente, ronronando baixo, se aproximou. ​O carro preto. ​Ele deslizou até parar ao meu lado, devagar, predatório e elegante. Do mesmo jeito que ontem. ​O vidro desceu. Theo estava lá. ​"Pode falar um segundo?" ​Meu instinto gritou corre. Minha razão gritou não. Mas meus pés fincaram no chão. Porque, contra toda a lógica, eu precisava ouvir. ​"O que você quer?" perguntei, mantendo uma distância segura da calçada. ​Ele respirou fundo, as mãos apertando o volante com força. Parecia carregar o peso do mundo nos ombros. ​"Só vim pedir pra você não acreditar em nada do que falaram hoje." ​"Talvez eu não precise acreditar" rebati, defensiva. "Eu tenho ouvidos." ​Theo assentiu, como se esperasse exatamente essa reação. ​"Eu sei que você odeia conflitos, Lívia. Sei que odeia estar no centro das atenções." Sua voz baixou um tom, tornando-se perigosamente íntima. "Por isso estou aqui. Porque eu te arrastei pra dentro de uma bagunça que não tem nada a ver com quem você é." ​Meu coração falhou uma batida. Como ele sabia disso? Como ele sabia o quanto eu detestava os holofotes? ​"E por que eu deveria acreditar que você se importa?" ​Theo apoiou o braço na janela aberta, inclinando-se levemente na minha direção. ​"Porque eu nunca faria você passar por isso de propósito." ​As palavras pairaram no ar crepuscular. Fortes. Sinceras. ​"Você vai entender" ele continuou, os olhos presos nos meus. "Só preciso que... que não se afaste ainda." ​Eu travei. ​Ainda. ​Aquela palavra simples foi um gancho que me puxou para perto, atingindo um lugar em mim que eu nem sabia que estava exposto. ​"Não prometo nada" respondi, a voz tremendo levemente. ​Um sorriso surgiu nos lábios dele. Não o sorriso de galã, mas um sorriso triste, quase dolorido. ​"Eu não pedi uma promessa." ​Ele acionou o botão do vidro, que subiu suavemente, cortando nosso contato visual. O carro arrancou devagar, desaparecendo na curva da rua e deixando para trás apenas o cheiro de gasolina queimada e uma pressão insuportável no meu peito. ​Fiquei ali, parada na calçada vazia, enquanto a noite caía ao meu redor. ​A sensação era clara, incisiva e assustadora: a carona de ontem não tinha sido um acaso. Tinha sido o início. O primeiro dominó caindo. ​E o problema é que, quando algo começa com essa intensidade, nunca termina de forma simples. ​Pela primeira vez na vida, senti que o chão sob meus pés estava prestes a ceder. E o nome do terremoto era Theo Navarro.
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