2. O Boato (Parte III)

1524 Palavras
O caminho até minha casa parecia mais longo. Cada passo vinha acompanhado de novas dúvidas que se acumulavam como poeira nos cantos da mente. O que Theo quis dizer com “quando você souber o motivo de tudo isso…”? O que eu não sabia? E, principalmente, por que importava tanto pra ele que eu soubesse? Passei a mão pelo rosto, frustrada comigo mesma. Era ridículo que, em tão pouco tempo, ele já tivesse mais espaço na minha cabeça do que qualquer outra coisa na minha vida. Cheguei em casa cansada, mas a sensação não era de exaustão física. Era outra coisa. Algo mais pesado. Como se eu estivesse carregando uma história que ainda nem conhecia. Subi para o quarto. Joguei a mochila no chão. Encarei o teto, tentando organizar o que estava fora de ordem. Meu celular vibrou. Maria. “Livi, acho que você precisa ver isso.” Demorei três segundos para responder. “O quê?” O áudio chegou em seguida. Quando dei play, senti o coração acelerar. Era a voz de duas meninas da minha sala, gravada claramente no corredor. — Ele fez tudo isso por ela. — Sério, quem ele pensa que é? — Agora ela tá achando que é especial. — Ele só tá brincando. Navarro sempre brinca. Parei o áudio na metade. Meu coração batia rápido demais. A garganta apertou. Maria mandou outra mensagem. “Elas postaram isso no grupo fechado delas. Uma amiga minha mandou. Não era pra vazar.” Olhei para a tela, sentindo um incômodo quente subir pela minha coluna. Então era isso que pensavam de mim agora. De nós. Ou… da ideia de nós. E esse era o problema. Nem existia um “nós”. Mas a escola inteira agia como se tivesse o direito de definir o que isso significava. Joguei o celular na cama com mais força do que deveria. A frustração, a raiva, o medo — tudo se misturava. Eu queria que parasse. Queria silêncio. Normalidade. Só isso. Mas o dia não tinha terminado. ********* No fim da tarde, Maria veio na porta da minha casa com o rosto preocupado. — Preciso te falar uma coisa — ela disse. — A direção chamou o grupo dos meninos lá. Os que postaram os stories. Meu corpo ficou rígido. — Por quê? — Não sei se foi por causa do vídeo… ou por causa dele. Theo. O nome pesava agora de um jeito diferente. — A coordenadora viu o que estava rolando. Disseram que pode dar advertência. Fechei os olhos. Não queria complicações para ninguém. Muito menos para ele. — Isso não devia ter ido tão longe — murmurei. — Mas foi — Maria rebateu. — A escola viu. Eles viram. E Theo viu. Ela respirou fundo antes de continuar. — Você percebeu que ele se envolveu demais, né? Olhei para o chão. — Ele só… defendeu. — Lívia. — Maria segurou meu braço. — Ele não defendeu “porque sim”. Olha pra mim. Pausa. — Isso não é comportamento de alguém que não se importa. Essas palavras bateram em mim como um peso inesperado. Eu sabia. Claro que eu sabia. Mesmo sem admitir. O jeito dele me olhar. O jeito dele falar comigo. O jeito que segurou o celular, como se carregasse a culpa dele e a minha. Havia algo ali. Algo que eu ainda não entendia. Algo que me assustava. — Eu não quero isso — sussurrei. — O quê? Respirei fundo. — Não quero que falem da gente. Pausa longa. — Porque nem existe “a gente”. Maria me olhou com pena. — É isso que te assusta, Livi? Outra pausa. — Ou é porque existe… e você não percebeu? O silêncio dentro da minha cabeça foi tão alto que parecia um trovão. Maria apertou minha mão antes de ir embora, mas a frase dela ficou ali, reverberando. “Ou é porque existe… e você não percebeu?” Deitei na cama, encarando o teto escurecendo. Respirei fundo. Uma. Duas. Três vezes. E somente quando o celular vibrou, eu soube que a noite ainda tinha mais para entregar. Era uma mensagem. De um número que eu não tinha salvo. Mas eu sabia de quem era antes mesmo de abrir. Theo. “Amanhã, preciso te contar uma coisa.” Meu coração disparou. “Algo importante.” As mãos tremeram. “Promete que vai me ouvir?” Engoli seco. As próximas palavras vieram sozinhas: “Prometo.” E, pela primeira vez, eu percebi que não era o boato que estava crescendo. Era outra coisa. Algo que podia mudar tudo. ********** Não consegui dormir. A casa estava silenciosa, mas minha mente não. O céu lá fora parecia carregado demais, como se refletisse exatamente o que eu sentia — uma tempestade prestes a se formar. A mensagem de Theo estava aberta na tela do meu celular. Eu relia como quem busca algo escondido nas palavras. Algo que explicasse o que eu não conseguia entender. “Amanhã, preciso te contar uma coisa. Algo importante.” Liguei o celular, desliguei, deixei cair ao meu lado na cama, puxei de volta. Até meu corpo parecia inquieto, como se não encontrasse posição para descansar. Eu não sabia o que esperar. Não sabia se queria descobrir. A verdade é que eu tinha medo. Medo do que ele diria. Medo do que isso significaria. Medo de perceber que alguma parte de mim — pequena, silenciosa, mas teimosa — já tinha começado a se importar. E esse era o maior perigo. ****** Acordei antes do despertador. Desci as escadas com o corpo leve e pesado ao mesmo tempo, como se estivesse flutuando em um lugar incerto. Minha mãe perguntou se eu estava bem. Respondi que sim. Mentira óbvia. O caminho para a escola foi rápido demais. Quando percebi, já estava na rua principal, observando os alunos entrando pelo portão. Meu coração batia mais rápido do que eu gostaria. Maria me encontrou perto da entrada. — Dormiu? — ela perguntou. Balancei a cabeça. — Claro que não — ela disse, rindo sem humor. — Isso… tudo… é muita coisa. Assenti. — Ele te respondeu mais alguma coisa? — Não. — E você vai ouvir o que ele tem pra dizer? Respirei fundo. — Prometi que sim. Maria apertou minha mão. — Então vai. Mas lembra: você não deve nada pra ninguém. Nem pra ele. Nem pra esses babacas da escola. Assenti, mas algo dentro de mim sabia: por mais que eu não devesse nada… eu queria ouvir. Queria entender. Não por causa do boato. Por causa dele. ********* O pátio estava cheio, mas parecia que tudo se movia em câmera lenta. As vozes eram só ruído ao fundo. Foi então que vi. Theo estava do outro lado do pátio, encostado na parede externa da sala de artes. Cabeça baixa. Mãos no bolso. A postura carregada de algo que eu nunca tinha visto nele. Insegurança. Culpa. Cansaço. Quando ele levantou o olhar e me viu, endireitou a postura como se tivesse ensaiado isso a noite inteira. Os passos dele em minha direção foram lentos, deliberados, cheios de uma tensão que me atravessou. Parou perto o suficiente para eu ouvir a respiração dele sobre o barulho da escola. — Obrigado por vir — ele disse. Eu engoli seco. — O que você queria me contar? Theo olhou ao redor. Os olhares curiosos. Os comentários disfarçados. As risadas abafadas. Depois se aproximou mais um passo. — Não aqui. Meu coração acelerou. — Onde, então? Ele respirou fundo. — Em um lugar onde você possa… acreditar em mim. Essas palavras entraram em mim como algo perigoso — porque não havia soberba nelas, nem desafio. Só vulnerabilidade. — Theo… — eu disse, tentando entender. — O que você precisa me dizer? Ele passou a mão pelos cabelos, inquieto. — Algo que eu deveria ter falado antes_ deu uma pausa_ Algo que envolve você_ Outra pausa_ E o motivo de tudo isso ter começado. Meu estômago se fechou. — O motivo… dos boatos? — O motivo de tudo. — corrigiu ele, olhando direto nos meus olhos. — O motivo de eu ter parado naquele estacionamento. O motivo de eu ter te levado. O motivo de eu ter defendido você ontem. A voz dele estava firme, porém quebrada. Uma mistura impossível de segurança e medo. — Você precisa saber, Lívia. — ele disse, mais baixo. — Porque não quero que você descubra por outra pessoa. Meu coração disparou de um jeito que eu não consegui controlar. A escola inteira parecia desaparecer. Só nós dois ali. Só aquela tensão — humana, dolorosa, inevitável. — Me encontra depois da última aula. — ele pediu. — Na quadra antiga. — Por quê lá? Theo respirou fundo. — Porque é o único lugar onde eu ainda consigo dizer a verdade. E então ele virou e entrou no corredor. Sem olhar para trás. Sem esperar minha resposta. Sem me dar tempo para pensar. Eu fiquei ali, parada, com o coração batendo forte demais para um início de manhã. A verdade. Ele ia me contar a verdade. E, pela primeira vez, senti que talvez… eu não estivesse preparada para ela.
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