1. A Carona (Parte III)

1697 Palavras
A aula seguiu arrastada, mas minha mente não estava ali. Cada palavra que o professor dizia chegava fragmentada, como se fosse outra língua. As vozes na sala pareciam mais altas, mais próximas, mesmo quando ninguém falava comigo diretamente. Era estranho como o silêncio podia ser tão barulhento. Em determinado momento, senti um olhar queimando minha nuca. Não precisei virar. Sabia de quem era. Theo não tentava disfarçar. Ele me observava como se tentasse decifrar se eu estava bem, ou se os rumores tinham me atingido mais do que eu mostrava. E tinham. Claro que tinham. Mas eu nunca deixaria ele ver isso. O sinal tocou. As pessoas começaram a se levantar, empurrando cadeiras, guardando material. Maria me esperou na porta, mas antes que eu chegasse até ela, algo aconteceu. Duas garotas do grupo de fofoca — sempre com celulares nas mãos e olhos afiados — passaram por mim cochichando alto o bastante para eu ouvir. — Óbvio que ela aceitou a carona. — O tipo dele sempre encontra alguém novo. — Ingênua demais. Senti meu rosto queimar. Não de vergonha. De raiva. Respirei fundo, engolindo cada palavra antes que elas escapassem do jeito errado. Maria segurou meu braço, solidária. — Deixa pra lá, Livi. Esse povo não tem nada pra fazer. Assenti, mas a verdade era que aquilo estava cavando algo dentro de mim. Algo que eu não queria mexer. Seguimos para o corredor, e foi ali que o clima mudou completamente. Quando virei a esquina, bati de frente — quase literalmente — com Theo. Ele estava encostado no armário, braços cruzados, expressão séria. Não o tipo de seriedade arrogante que ele usava às vezes. Era outra coisa. Uma espécie de alerta. — Preciso falar com você — disse, sem rodeios. Maria ergueu as sobrancelhas, surpresa. — Agora não — respondi, passando ao lado dele. Ele deu um passo para acompanhar meu movimento. — Lívia, é importante. — Nada que você diga vai mudar o que estão falando. Theo apertou a mandíbula, respirando fundo. — Não estou aqui pra me explicar. Estou aqui porque— — Porque o quê? — interrompi. — Porque você é a razão disso tudo? Porque todo mundo acha que eu sou só mais uma historinha sua? A expressão dele mudou. Um choque sutil nos olhos. Um ferimento rápido que ele tentou esconder, mas não conseguiu. — Não fala assim — murmurou. A voz dele… Baixa. Séria. Quase triste. E isso só me irritou mais. — Olha, eu não quero que ninguém pense nada sobre nós. Porque não existe “nós”. Nunca existiu. Eu pretendia passar por ele, mas Theo ergueu a mão — não para me impedir, mas para me pedir calma. — Eu sei que você não quer isso. Nem eu. Ele respirou fundo, lutando com as próprias palavras. — Mas você sabe que não fiz nada pra te desrespeitar. Nada. Os corredores pareciam ter encolhido. Gente passando. Olhares curiosos. Murmuros que soavam como chuva fina. Maria observava tudo em silêncio, desconfortável. O que me incomodava não era a proximidade dele. Era a forma como ele falava. Sem máscara. Sem ironia. Direto demais. Verdadeiro demais. E eu não sabia lidar com gente que falava assim comigo. — A gente m*l se conhece — sussurrei. — Não tenho obrigação nenhuma de te defender. Theo concordou com um aceno lento. — Eu não quero que você me defenda. Só não quero que pense o pior de mim sem saber nada. — Como se fizesse diferença. Ele franziu o cenho. E foi naquele instante, naquele microsegundo em que meu nome estava prestes a sair da boca dele, que algo inesperado aconteceu. Um grupo de meninos atrás de nós riu alto demais. Um deles gritou: — Ei, Navarro! Já conseguiu o prêmio da vez? A risada ecoou. Maria prendeu a respiração. Eu travei. Theo fechou os olhos por um momento, como se estivesse segurando um impulso. Quando os abriu, havia outra coisa ali. Uma sombra silenciosa. Algo preso entre raiva e exaustão. Ele deu um passo à frente. Chegou perto o suficiente para que apenas eu ouvisse. — Desculpa. A palavra saiu firme. Sem orgulho. Sem performance. Um pedido real. — Isso não devia estar acontecendo com você — completou. Eu fiquei sem resposta. Não por falta de palavras — mas porque nada que eu dissesse seria suficiente para lidar com o peso que aquela frase carregava. Ele se afastou um passo, como se entendesse que eu precisava de espaço. — Só me dá um tempo. A voz dele era baixa, mas intensa. — Pra te provar que não sou o que dizem. E aí ele virou as costas e foi embora. Sem esperar resposta. Sem olhar pra trás. Mas eu fiquei ali. Parada. Com o coração batendo rápido e a mente tentando desesperadamente reorganizar tudo o que tinha acontecido em menos de cinco minutos. Maria tocou meu ombro. — Livi… você tá bem? Pisquei, voltando ao mundo. — Não sei. E era verdade. Pela primeira vez desde que Theo cruzou meu caminho, eu realmente não sabia. ******* Depois que Theo se afastou, senti o corredor inteiro voltar a se mover ao meu redor. As vozes voltaram, os passos, os risos. Mas era como se eu estivesse dentro de um vidro — vendo tudo, ouvindo tudo, mas distante de qualquer coisa real. Maria ainda me observava, esperando alguma reação que fizesse sentido. — Quer ir pra biblioteca? — ela perguntou. Assenti, porque a alternativa era ficar parada ali, tentando decifrar a sensação que Theo tinha deixado atrás. A biblioteca estava quase vazia. O cheiro de papel, o silêncio pesado, as mesas limpas — tudo ali parecia mais fácil de controlar. Mas minha mente não. Sentei na mesa do canto. Maria abriu o caderno, mas não escreveu nada. — Por que você não me contou que ele ia te levar? — ela perguntou. Demorei a responder. — Porque nem eu sabia. Só aconteceu. — E como foi? O jeito como ela perguntou não era de fofoca. Era de preocupação real. E isso me obrigou a dizer a verdade, mesmo que eu não tivesse certeza dela. — Estranho. — Estranho como? Desviei os olhos. Eu odiava ter que colocar sentimentos em palavras. — Ele não é o que parece. Maria ergueu as sobrancelhas. — Como assim? Fechei o caderno. Fiquei alguns segundos olhando a capa azul, sentindo uma irritação crescente comigo mesma — porque eu não devia estar pensando nele assim. — Não sei explicar. — admiti. — Ele fala como se… como se soubesse coisas sobre mim. Maria ficou em silêncio. Um silêncio que dizia tudo: que ela estava preocupada comigo, não com Theo. — Livi, toma cuidado. — disse. — Tem gente que sabe falar bonito. Não quer dizer que sente bonito. A frase me atingiu com força. — Eu sei disso. — respondi, mesmo sem sentir a mesma certeza. Maria segurou minha mão por um instante. — Só lembra do que eu disse: as pessoas inventam histórias porque precisam de algo pra comentar. — Mas isso não define você. Concordei com a cabeça, mas a verdade era que algo dentro de mim já tinha sido afetado. A aula seguinte passou arrastada. Depois outra. E outra. E em todas elas, havia uma presença constante — mesmo quando invisível. Theo. Ele não se aproximou mais. Não tentou chamar minha atenção. Não me encarou como antes. Mas eu sentia. A sensação de que algo tinha sido aberto entre nós, mesmo que eu não tivesse dado permissão. Quando o último sinal tocou, o pátio inteiro se transformou em um mar de vozes e mochilas. Maria me acompanhou até o portão. Nos despedimos ali, com um abraço rápido e uma promessa silenciosa de que conversaríamos depois. Eu segui andando pela calçada. O sol já descia, tingindo o céu com tons de dourado e cinza. O vento frio batia contra meu rosto, tentando clarear meus pensamentos — mas não conseguia. Quando virei a esquina da minha rua, escutei o som de um motor se aproximando. Meu corpo congelou. O carro preto. Estacionando devagar. Do mesmo jeito que ontem. Da mesma forma marcada. Como se me seguisse com os olhos antes mesmo de chegar. Theo abaixou o vidro. — Pode falar um segundo? Meu primeiro impulso foi dizer não. O segundo foi correr. Mas fiquei parada. Porque, no fundo, eu precisava ouvir. — O que você quer? — perguntei, sem me aproximar. Ele respirou fundo, como se estivesse carregando um peso que eu não entendia. — Só vim pedir pra você não acreditar em nada do que falaram hoje. — Talvez eu não precise acreditar. Eu só ouvi. Theo assentiu, aceitando a resposta como se tivesse esperado por ela. — Eu sei que você não gosta de conflitos. Sei que odeia estar no centro de qualquer coisa. A voz dele estava mais baixa agora, quase vulnerável. — Por isso estou aqui. Porque eu coloquei você no meio de algo que não tem nada a ver com você. Meu coração apertou, apesar da raiva. — E por que eu deveria acreditar que não tem? Theo encostou o braço na janela aberta. — Porque eu nunca faria você passar por isso de propósito. As palavras pairaram no ar. Fortes demais. Diretas demais. — Você vai entender. — continuou. — Só preciso que… que não se afaste ainda. Eu travei. "Ainda." Essa palavra acertou um ponto que eu não sabia que existia. — Não prometo nada — respondi. Theo sorriu de leve. Triste. Quase dolorido. — Eu não pedi uma promessa. Ele fechou o vidro devagar e arrancou com calma. O carro foi desaparecendo na curva, deixando para trás apenas o cheiro leve de gasolina e uma estranha pressão no meu peito. Fiquei ali parada por alguns segundos, tentando me recompor. Mas a sensação era clara, incisiva, inevitável: A carona de ontem não tinha sido um acaso. Tinha sido o início. E eu já não conseguia fingir que não percebia isso. O problema é que, quando algo começa assim, nunca termina do jeito que a gente espera. E, pela primeira vez, senti que minha vida estava prestes a sair do lugar — com força. E que o nome disso era Theo Navarro.
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