A manhã se arrastou com uma lentidão torturante, como se o tempo tivesse se solidificado ao meu redor.
A aula acontecia diante dos meus olhos — professores gesticulavam, gizes riscavam o quadro, canetas anotavam em cadernos — mas eu não absorvia nada. As vozes eram apenas ruído branco, um pano de fundo irrelevante para a única coisa que gritava na minha mente.
A mensagem.
E a promessa silenciosa que Theo havia feito no pátio.
O motivo. A verdade. A confissão.
Tentei empurrar esses pensamentos para longe, mas eles retornavam como uma maré insistente. Era como estar diante de uma porta entreaberta num quarto escuro: o instinto gritava para fechar e trancar, mas a curiosidade — perigosa e sedutora — me impelia a empurrá-la.
Quando o sinal do intervalo tocou, meu celular vibrou em sincronia, um espasmo no meu bolso.
Encarei a tela com um frio na barriga que beirava a náusea.
Duas mensagens de Maria.
“Ele está estranho hoje.”
“Fica atenta.”
Atenta a quê?
Aos sinais dele? Ao perigo? A mim mesma e à bagunça que eu estava prestes a me tornar?
Guardei o aparelho sem responder. A inquietação havia deixado de ser mental para se tornar física, alojando-se em músculos que eu nem sabia que podiam doer de tensão.
Na saída da sala, o corredor estava elétrico.
Havia um burburinho diferente, vozes baixas trocando informações com aquele entusiasmo mórbido que precede os escândalos.
"Vocês viram o status dele?"
"Finalmente ele postou alguma coisa."
"Bem na hora..."
"Então era isso mesmo que a gente pensava..."
Meu peito comprimiu.
Saquei o celular novamente. O ícone do aplicativo de mensagens pulsava com um alerta no canto da tela.
Theo tinha postado um status.
Ele, que nunca postava nada. Ele, que vivia nas sombras digitais.
Hesitei antes de clicar.
Sentia que aquele conteúdo tinha o poder de alterar a gravidade do meu dia, e eu não sabia se estava pronta para perder o chão.
Mas eu abri.
Era uma foto simples. Um céu cinza, pesado, carregado de nuvens de chuva.
E uma frase curta, em fonte branca, cortante:
“Nem toda verdade espera.”
Senti meu coração falhar uma batida, tropeçando no próprio ritmo.
A foto, para qualquer outra pessoa, era apenas uma paisagem melancólica.
Mas para mim, era um grito.
Era um aviso.
Um pedido.
Uma contagem regressiva.
Ao meu redor, as pessoas analisavam, conectavam pontos imaginários, inventavam conclusões para alimentar a fofoca.
Mas aquela frase parecia ter sido escrita com a tinta invisível endereçada apenas a mim.
Respirei fundo, tentando conter o impacto sísmico daquelas quatro palavras.
Maria surgiu no corredor, cortando a multidão até chegar a mim. O rosto dela estava tenso.
"Você viu?" ela perguntou, a voz baixa.
Assenti, incapaz de falar. "Vi."
Ela mordeu o lábio, os olhos varrendo o corredor como se procurasse ameaças.
"Livi... eu não gosto disso."
"Disso o quê?"
"De como ele fala com você. Ou melhor, de como ele fala para você." Ela fez uma pausa curta, significativa. "Como se ele estivesse esperando algo de você. Cobrando, quase."
Desviei o olhar para a janela, onde o céu real imitava a foto de Theo.
"Ele só quer explicar."
"Explicar o quê, Lívia?"
Fiquei em silêncio.
Porque essa era a pergunta que eu não tinha coragem de formular nem para mim mesma.
Maria suspirou, derrotada pela minha teimosia.
"Livi, seja lá o que for... se prepare."
Assenti devagar.
Porque, no fundo, eu sabia.
Eu já estava me preparando desde ontem, desde o momento em que ele parou o carro, destravou as portas e me disse para não ter medo.
Desde esta manhã, quando ele afirmou, com aquela intensidade assustadora, que eu precisava ouvir a verdade da boca dele.
Algo grande estava vindo em minha direção.
Não era uma onda pequena de boatos colegiais.
Não era sobre caronas ou fofocas de corredor.
Era sobre ele.
E sobre mim.
E sobre um fio invisível, mas indestrutível, que havia se tecido entre nós sem permissão, sem lógica e sem aviso prévio.
Um fio que estava sendo recolhido, puxando-nos inexoravelmente para o mesmo ponto geográfico.
A quadra antiga.
O palco onde a verdade seria despida.
Chequei o horário.
Faltavam horas para o fim da última aula.
Horas demais para suportar.
E, paradoxalmente, tempo de menos para criar coragem.
Uma parte de mim, a racional, queria fugir.
Mas a outra, a mais profunda — aquela parte que eu tentava silenciar — ansiava por ir.
Queria ouvir.
Queria entender.
Queria, desesperadamente, saber qual era o segredo que Theo Navarro carregava nos ombros largos.
As horas seguintes se comportaram de maneira elástica e c***l.
O tempo parecia zombar de mim, esticando-se nos momentos de silêncio e correndo quando eu tentava pensar.
Cada aula era uma espera agoniante.
Cada sinal sonoro, um aviso de que o momento se aproximava.
E quanto mais perto do encontro chegávamos, mais meu corpo reagia à revelação iminente.
Mãos geladas.
Taquicardia constante.
Pensamentos fragmentados, indo e vindo como estática de rádio.
A cada vibração do celular, meu estômago despencava.
No final da penúltima aula, a notificação veio.
Theo.
Outra mensagem.
“Ainda quer me ouvir?”
Não havia arrogância naquelas palavras.
Nem exigência.
Havia apenas dúvida.
E dúvida não combinava com a imagem que eu tinha dele. Theo era certeza. Era silêncio impenetrável.
Aquela mensagem cheirava a medo.
Digitei: “Sim.”
Apaguei. Parecia seco demais.
Digitei: “Eu prometi.”
Apaguei. Parecia uma obrigação, não uma escolha.
Meus dedos pairaram sobre o teclado. Respirei fundo e digitei a verdade nua:
“Quero.”
Enviei antes que pudesse me arrepender.
Segundos depois, a resposta dele brilhou na tela:
“Bom.”
Apenas isso.
Simples.
Mas eu pude sentir o peso daquele "bom". Soava como um suspiro de alívio do outro lado da linha.
E saber que ele estava aliviado por eu aceitar ouvi-lo mexeu comigo mais do que eu deveria permitir.
A última aula foi um borrão indistinto.
Eu era um corpo presente numa sala onde minha mente não estava. As vozes ao redor pareciam vir debaixo d'água.
Em alguns momentos, senti um peso na nuca. A sensação física de ser observada.
Quando virei o rosto discretamente, encontrei Theo.
Ele estava olhando para mim, do fundo da sala.
Não era um olhar casual.
Era fixo. Atento. Quase tátil.
Ele não desviou imediatamente quando nossos olhos se cruzaram.
Ele sustentou o contato por um segundo a mais — o suficiente para que eu entendesse a mensagem muda.
Ele estava preocupado.
Ele estava ansioso.
E isso era perigoso demais para ser ignorado.
Quando o último sinal finalmente rasgou o ar, meu corpo inteiro reagiu com um choque elétrico.
Era a hora. Não havia mais como adiar.
Maria se aproximou da minha carteira antes mesmo que eu guardasse o material.
"Você tá pálida, Livi."
"Não tô", menti, a voz fraca.
"Tá sim" ela insistiu, cruzando os braços. "Quer que eu vá junto? Posso ficar esperando lá fora."
Balancei a cabeça negativamente.
"Ele pediu pra ser só eu."
Maria mordeu o lábio, o desconforto evidente em cada traço do rosto.
"E você vai... assim? Sozinha?"
"Eu tenho que ir."
Ela soltou o ar pesadamente.
"Tá. Mas fica com o celular na mão. Qualquer coisa, me chama. Sério."
Assenti.
Mas a verdade era outra.
A conversa que eu estava prestes a ter não exigia medidas de segurança física.
Exigia coragem emocional.
Era sobre uma verdade que só ele podia me entregar.
Saí da sala e tomei o rumo do corredor lateral, contrariando o fluxo de alunos que ia para a saída.
A quadra antiga ficava nos fundos do terreno, uma área esquecida onde o colégio estocava carteiras quebradas e memórias antigas. Era o refúgio de quem queria invisibilidade.
Enquanto meus passos ecoavam no corredor vazio, o celular vibrou.
Theo.
“Tô indo pra lá.”
Respondi caminhando:
“Já estou chegando.”
Meu coração batia tão rápido e forte contra as costelas que parecia querer chegar ao destino antes de mim.
Quando dobrei a esquina do corredor que dava acesso à entrada da quadra, algo no chão chamou minha atenção.
Perto da parede descascada, havia um papel dobrado.
Solitário. Intencional.
Olhei em volta. O corredor estava deserto.
Abaixei e peguei o papel.
Abri com dedos trêmulos.
Era um bilhete.
A letra era rápida, inclinada, urgente.
“Se você soubesse desde o início, teria me evitado.”
Meu peito apertou, o ar faltando nos pulmões.
Virei o papel. Havia mais uma frase no verso:
“Mas eu não queria que você fizesse isso.”
Reconheci a caligrafia.
Era dele.
Por um instante, fiquei paralisada ali, sentindo o mundo se estreitar até caber naquele pedaço de papel.
Cada palavra tinha peso. Cada letra carregava uma confissão.
Ele estava com medo.
Medo de perder algo que nem tinha começado.
Medo de afastar alguém que ele nem ao menos tinha conquistado.
E aquela vulnerabilidade escancarada provocou uma rachadura profunda nas minhas defesas.
Dobrei o bilhete com cuidado e o apertei na palma da mão, como um talismã.
Voltei a andar.
A porta da quadra antiga estava logo ali.
A poucos metros.
E eu sabia, com uma certeza assustadora:
O que ele diria lá dentro não era sobre a escola, nem sobre reputação, nem sobre boatos idiotas.
Era sobre ele.
Era sobre mim.
E era sobre algo que, por mais que eu tentasse negar com todas as minhas forças, já havia criado raízes profundas entre nós.