2. O Boato (Parte II)..

2065 Palavras
​O restante da manhã se desenrolou em um torpor estranho, como se eu estivesse assistindo à minha própria vida através de um vidro embaçado. Ao meu redor, as pessoas se moviam, falavam, riam e digitavam freneticamente, mas o som chegava até mim abafado, distante. Meu corpo obedecia à rotina, mas minha mente permanecia ancorada naquele corredor, congelada no instante exato em que Theo segurou o celular e engoliu o caos em silêncio. ​Só que o silêncio de Theo Navarro nunca era vazio. Era um prelúdio. E a escola inteira, acostumada aos sinais de tempestade, percebeu isso rápido demais. ​O segundo intervalo estava prestes a começar quando um som distinto veio da quadra coberta. Não era a cacofonia habitual de jogos ou gritos de torcida. Era algo mais contido, uma vibração de baixa frequência, feita de vozes tensas e passos estancados. ​Maria me puxou pelo braço, os olhos alertas. ​"Vem. Acho que é sobre o que rolou mais cedo." ​Meu instinto foi recuar. Eu m*l tinha forças para me manter vertical, quem dirá enfrentar mais um capítulo daquele drama. Mas meus pés, traidores, seguiram o som. ​Quando nos aproximamos das grades da quadra, o cenário já estava montado. ​Theo estava lá. Parado no centro, a postura é enganosamente relaxada, mas com o foco de um predador. Ele não estava gritando. Ele estava conversando com três garotos do terceiro ano — os mesmos que haviam postado o vídeo do estacionamento com aquela legenda sórdida. ​Não era uma briga física. Ainda não. Mas o ar ao redor deles estava tão denso que parecia inflamável. ​Fiquei oculta atrás de uma pilastra de concreto, observando, sentindo o coração bater na garganta. ​"Ele tá maluco?" Maria sussurrou, incrédula. "Esses idiotas vivem procurando confusão." ​Mas Theo não parecia nem remotamente intimidado. ​"Vou falar uma vez só" a voz dele chegou até mim, não pelo volume, mas pela clareza cortante. "Apaguem o que postaram." ​Os garotos riram. Uma risada f**a, carregada de deboche e falsa bravura. ​"Que isso, Navarro? Ficou sensível agora?" um deles provocou, estufando o peito. ​"O vídeo nem mostra nada demais", outro completou, com um sorriso malicioso. "Só você e a princesinha entrando no carro." ​O apelido irônico fez meu rosto queimar. Senti a vergonha escalar pelo pescoço, quente e sufocante. Eu queria gritar, correr, desaparecer da face da terra. ​Mas Theo nem piscou. Ele cruzou os braços, os bíceps tensionando sob o tecido da camisa. ​"Apaguem." ​"E se a gente não quiser?" o terceiro desafiou, dando um passo agressivo à frente. ​Theo inclinou a cabeça levemente para o lado. A expressão dele era de uma calma terrível. ​"Eu não estou pedindo", ele disse. ​Houve um silêncio breve — o tipo de vácuo que antecede o impacto de uma colisão. ​Os meninos trocaram olhares rápidos. Um deles recuperou a arrogância e sorriu. ​"Relaxa, cara. Não fizemos nada demais." Ele esticou a mão para dar um tapinha condescendente no ombro de Theo. "A garota até parece ter gostado da aten..." ​A frase morreu na garganta dele. ​Theo interceptou a mão do garoto no ar. Não foi um movimento brusco. Não houve um estalo de ossos ou um empurrão violento. Ele apenas segurou o pulso dele. E travou. ​O garoto tentou puxar o braço de volta, mas não conseguiu. Theo sustentou o olhar dele, invadindo o espaço pessoal com uma autoridade assustadora. ​"As pessoas costumam confundir silêncio com fraqueza" Theo disse, a voz baixando uma oitava, tornando-se perigosamente suave. "Eu não tenho dificuldade com nenhum dos dois. Mas eu tenho um problema sério com covardia." ​O grupo congelou. O sorriso do garoto desapareceu, substituído por uma palidez súbita. ​Theo soltou o pulso dele devagar, como se o contato o enojasse, mas não desviou os olhos. ​"Apaguem. Agora." Ele fez uma pausa, varrendo os outros dois com o olhar. "E parem de falar dela." ​Estava tudo dito. Sem gritos. Sem o espetáculo de uma briga de bar. A força dele residia justamente no controle absoluto que ele tinha sobre a própria violência. Ele era um vulcão que escolhia não entrar em erupção, e isso era muito mais aterrorizante do que a lava. ​O primeiro garoto puxou o celular do bolso, as mãos trêmulas. Depois o segundo. E, por fim, o líder. ​Os vídeos sumiram. Os comentários foram deletados. A humilhação digital foi apagada, pixel por pixel. ​Theo esperou até o último segundo. Só então ele relaxou a postura. ​E saiu andando. ​Ele não olhou para trás. Não procurou pela plateia. Não buscou meus olhos para receber um agradecimento silencioso. Ele não fez aquilo para posar de herói. Não fez para alimentar o ego. ​Ele fez porque quis. E essa constatação foi mais desconcertante do que qualquer outra coisa que eu tivesse sentido naquele dia. ​Maria me olhou, os olhos arregalados, a boca entreaberta. ​"Eu... eu nunca vi ele assim." ​Eu também não. ​Theo contornou a lateral da quadra e desapareceu no corredor vazio, deixando para trás três garotos humilhados e uma escola inteira que, agora, tinha duas lendas para contar: a versão suja que inventaram, e a versão implacável que ele acabara de impor. ​Mas, pela primeira vez, senti que existia uma terceira versão. A minha. Aquela que ninguém perguntou. Aquela que ninguém conhecia. Uma versão que começava a crescer dentro de mim como uma raiz teimosa em solo árido. ​Theo não era o vilão que diziam. Mas também não era seguro. Ele era um enigma que se aproximava de mim por todos os lados, cercando minhas defesas. ​E, mesmo com medo, eu não conseguia negar a verdade pulsante no meu peito: Eu queria entender. Eu precisava entender. ​O resto do intervalo passou como um borrão febril. Os boatos não cessaram, apenas mutaram. O tom agressivo deu lugar a uma curiosidade cautelosa. As pessoas falavam mais baixo, olhavam com mais receio. Era como se todos tentassem decifrar por que Theo Navarro, o intocável, havia se importado tanto. ​A verdade é que nem eu sabia a resposta. ​Quando voltei para a sala de aula, o efeito cascata já era visível. ​"Ele fez os caras apagarem tudo." "Ele brigou por ela?" "Será que estão juntos mesmo?" "Ou ele só protege as meninas que... você sabe." "Faz tempo que não vejo o Navarro desse jeito." ​Cada sussurro me acertava como um soco amortecido. Eu queria encolher, voltar a ser invisível, ser apenas mais um rosto na multidão. Mas essa opção tinha sido revogada. Agora eu era uma história. E histórias, quando caem na boca do povo, deixam de pertencer aos seus donos. ​Maria me observava com cautela, como se temesse que eu fosse me estilhaçar ali mesmo. ​"Não deixa isso entrar, Livi" ela murmurou, segurando minha mão. "Eles só querem entretenimento." ​"É difícil" confessei, a voz fraca. ​Ela não insistiu. Sabia que não havia consolo fácil. ​Sentei na minha carteira, tentando organizar o material com dedos que não paravam de tremer. Um arrepio frio percorreu minha espinha, e não era por causa do ar-condicionado. ​Um movimento na porta capturou a atenção de todos. Theo entrou. ​A sala mergulhou em um silêncio imediato — pesado, carregado de expectativa e de interpretações erradas. ​Ele não olhou para mim. Passou direto, caminhando até sua carteira no fundo, movendo-se com aquela letargia calculada de quem sabe que é o centro das atenções, mas não se importa. ​Mas eu sabia. Eu sentia na pele que ele tinha mapeado minha posição na sala antes mesmo de cruzar o batente. ​O professor entrou logo em seguida, e a atenção da turma se dispersou. Ou fingiu se dispersar. ​Durante a aula, forcei meus olhos a focarem no caderno. Tentei anotar, tentei raciocinar, tentei parecer normal. Mas era inútil. A presença dele, algumas fileiras atrás, parecia alterar a gravidade da sala. ​Em um momento de distração, virei a cabeça. ​Theo estava olhando para a janela. Mas ele não via a paisagem lá fora. O olhar dele estava perdido, focado em algo interno, escuro e complexo. Ele estava pensando. E o que quer que fosse, pesava sobre ele. ​Senti um aperto estranho no peito — uma mistura de culpa e inquietação. Será que ele fez aquilo por mim? Por responsabilidade moral? Por vergonha? Ou por algo que eu ainda não tinha coragem de nomear? ​Meu coração disparou. ​Como se sentisse o peso do meu olhar, Theo virou o rosto lentamente. Os olhos dele encontraram os meus. ​Foi rápido. Apenas um segundo. Mas foi o suficiente para desestabilizar meu eixo. ​Ele desviou primeiro. E isso, mais do que qualquer palavra, me abalou. Pela primeira vez desde que nossos caminhos se cruzaram, Theo pareceu... vulnerável. Inseguro. ​E eu não tinha ideia do que fazer com essa informação. ​Quando o sinal tocou, anunciando o fim da tortura, o professor m*l teve tempo de encerrar a frase. A turma explodiu em movimento e conversas altas. ​Maria guardava os livros quando sussurrou: ​"Vai falar com ele?" ​"Não." A resposta saiu automática, defensiva. ​Maria me encarou, uma sobrancelha arqueada. ​"Por quê?" ​Fechei meu caderno com força excessiva. ​"Porque eu não sei o que dizer. E porque..." Parei. A verdade ficou presa na garganta. ​Maria completou por mim, suavemente: ​"Porque você está com medo." ​O olhar dela não carregava julgamento, apenas uma compreensão que doía. ​"Não dele" murmurei, embora soubesse que era uma meia-verdade. "De mim." ​Ela não respondeu. Não precisava. O silêncio entre nós confirmou tudo. ​Saímos da sala juntas, navegando pela correnteza de alunos. Os corredores estavam mais calmos, como se a tempestade tivesse passado, deixando apenas a umidade no ar. ​Chegamos ao portão principal. Maria avistou o namorado e se despediu com um aceno rápido, me deixando sozinha por alguns segundos na calçada. ​Respirei fundo, sentindo o ar da tarde limpar meus pulmões. ​E então, ouvi. ​"Lívia." ​Virei antes que meu cérebro pudesse me impedir. ​Theo estava a alguns passos de distância. Mãos nos bolsos, o uniforme desalinhado, o cabelo caindo sobre a testa. A expressão dele era séria. Não a seriedade arrogante de antes. Mas uma seriedade crua, quase dolorosa. ​"A gente precisa conversar" ele disse. ​Precisar. A palavra teve um peso físico. ​Balancei a cabeça, recuando meio passo. ​"Agora não." ​Ele fez menção de se aproximar, mas parou, respeitando a barreira invisível entre nós. ​"Eu não quero que você pense que...", ele começou, depois parou, frustrado. Respirou fundo e recomeçou, olhando nos meus olhos. "Eu não deixo ninguém falar assim de mim. É verdade. Mas hoje... hoje eu fiz isso por você." ​Meu coração falhou uma batida, tropeçando no próprio ritmo. ​Ele continuou, a voz rouca: ​"Você não merece carregar um boato que não é seu." ​Engoli seco, sentindo um nó na garganta. ​"Nem você" respondi, num sussurro. ​Theo sorriu. Um sorriso triste, quebrado, que não chegou aos olhos. ​"Talvez eu mereça, sim" ele disse, com uma honestidade brutal. "Mas você não." ​A sinceridade dele cortou o ar como uma lâmina. "Theo..." comecei, sem saber o que viria depois. ​Mas ele deu um passo para trás. Respeito. Distância. Autocontrole. ​"Quando você souber o motivo de tudo isso, vai entender" ele disse, a voz baixa, quase um segredo. "E eu... eu só espero que não seja tarde demais." ​E antes que eu pudesse perguntar "tarde demais para quê?" ele já tinha virado as costas, desaparecendo entre os alunos que deixavam o pátio, levando consigo as respostas que eu desesperadamente queria — e temia — ouvir. ​Fiquei ali, imóvel, sentindo o vento frio bater no meu rosto aquecido. ​A escola inteira tinha criado uma ficção sobre nós. Mas a sensação que me dominava era muito mais real e assustadora: ​Theo sabia de algo. Algo fundamental. Algo que mudaria as regras do jogo. ​E o pior — ou talvez o mais perigoso — é que eu já queria saber qual era essa verdade. Mesmo sabendo que ela poderia me destruir.
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