Assim que saí da coordenação, senti o ar mais frio no corredor.
Não era medo.
Era uma tensão que escorria por dentro, como se tudo que Theo vinha tentando evitar estivesse se encaixando rápido demais.
Maria andava ao meu lado, preocupada.
— Vai falar com ele agora? — ela perguntou.
Assenti.
— Se eu esperar mais, isso vai crescer do jeito errado.
— Você tá tremendo.
— Eu sei.
Caminhei até a área externa da escola, onde os alunos costumavam ficar depois das aulas.
A maioria já tinha ido embora.
O pátio estava quase vazio.
Theo estava sentado no degrau perto da quadra nova, com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça baixa.
Quando levantou o olhar e me viu, ficou imediatamente em pé.
Não disse nada.
Mas o jeito como ele me olhou dizia tudo:
Ele sabia que algo tinha mudado.
Me aproximei devagar.
— Precisamos conversar — falei.
Theo respirou fundo, como se aquela frase confirmasse algo que ele já temia.
— A coordenadora falou com você? — ele perguntou.
— Falou.
Ele passou a mão no cabelo, claramente nervoso.
— E?
— E ela disse que a denúncia não é clara.
Parei por um segundo, sentindo minhas próprias palavras me atingirem.
— Mas disse também que… segue o mesmo padrão de antes.
Theo fechou os olhos com força por um instante.
Como quem ouve exatamente o que não queria ouvir.
— Eu sabia. — ele disse, quase num sussurro. — Sabia que isso ia acontecer.
— Theo, olha pra mim.
Ele levantou o rosto.
Eu continuei:
— Ela disse que alguém está fazendo isso.
Pausa.
— Que alguém tem interesse em te prejudicar.
Outra pausa.
— E em afastar quem se aproxima de você.
Theo ficou imóvel.
O silêncio dele doeu.
— E também disse que isso não é sobre agora — falei, a voz mais firme.
— É sobre algo que já aconteceu.
Os olhos dele perderam um pouco da dureza.
Ficaram mais… humanos.
Mais frágeis.
— Eu queria te poupar disso. — ele disse.
— Mas não pode. — respondi. — Não depois de tudo que aconteceu hoje.
Theo respirou fundo, devagar, como se estivesse prestes a entrar em território que ele evitou por muito tempo.
— Lívia… você sabe mais do que eu esperava que soubesse.
— Não sei tudo. — respondi. — Mas sei que tem alguém usando o meu nome, o seu, e a história da Júlia.
Pausa.
— E eu preciso entender o que aconteceu com ela.
Theo desviou o olhar por um segundo.
E quando voltou, tinha um brilho de culpa que eu nunca tinha visto tão forte.
— Tudo começou com um projeto. — ele disse.
Meu coração apertou.
— Vocês dois trabalharam juntos? — perguntei.
Ele assentiu devagar.
— Foi igual agora. A escola sorteou duplas. Eu cai com ela.
Passou a mão no rosto, cansado.
— E, no começo, foi normal. Só trabalho. Só aula. Só o que qualquer dupla faria.
Eu ouvi cada palavra com o corpo inteiro.
— Mas? — incentivei.
Theo hesitou.
Sempre hesitava antes da verdade.
— Só que alguém começou a espalhar coisas sobre mim e ela.
Pausa.
— Coisas que não eram verdade.
Outra pausa.
— Da noite pro dia, ela virou alvo.
Senti um arrepio de reconhecimento.
Um espelhamento.
— Igual agora. — murmurei.
Theo fechou os olhos.
— Igual agora.
O silêncio ficou pesado.
— A Júlia… acreditou nos boatos? — perguntei.
— No começo, não.
A voz dele ficou mais baixa.
— Mas depois de tanta pressão… é difícil não acreditar em nada.
Pausa curta.
— Ela achou que eu era alguém que eu não era.
Senti o estômago revirar.
— E você, Theo?
Parei.
— Você gostava dela?
Ele ergueu o olhar rapidamente, como se eu tivesse tocado na parte mais sensível da história.
— Eu… me importava.
Pausa.
— Mas não do jeito que as pessoas disseram.
Respirou fundo.
— Eu só queria ajudar. E isso foi usado contra ela.
O impacto da frase atingiu meu peito.
— Usado como? — perguntei.
Theo passou a mão pelos cabelos, tentando encontrar ordem na própria fala.
— Fizeram parecer que eu… tinha culpa no que ela sentia.
Pausa dolorosa.
— E ela acreditou.
Outra pausa.
— E isso destruiu tudo.
Meu coração apertou.
— Theo… você não era responsável pelo que ela sentia. — falei, a voz fraca, mas sincera.
Ele riu — um riso curto, sem humor.
— Experimenta ouvir isso mil vezes no corredor.
Os olhos dele ficaram mais sombrios.
— Experimenta ver uma pessoa quebrar por causa de algo que você não fez… mas que todos dizem que fez.
Senti o peito doer.
E então ele disse a frase que pareceu arrancar ar do espaço ao redor:
— Eu ainda carrego a culpa da Júlia.
Pausa.
— E agora colocaram você no lugar dela.
Minha respiração travou.
— Eu não vou deixar isso acontecer com você também. — ele acrescentou, com uma convicção que me arrepiou inteira.
Fiquei em silêncio por alguns segundos.
Era muita coisa.
Era profundo demais.
Era doloroso demais.
— Theo… — murmurei — por que não me contou isso antes?
Ele olhou para mim com uma sinceridade impossível de ignorar.
— Porque eu tive medo.
Pausa.
— Medo de você reagir como ela.
— Medo de você achar que eu sou um problema.
— Medo de você se afastar antes de eu poder explicar.
Meu peito apertou com uma força que eu não esperava.
— Eu não vou me afastar. — falei.
Theo piscou, como se aquela frase tivesse quebrado algo dentro dele — uma barreira, uma resistência, um medo.
— Você promete? — ele perguntou, quase num sussurro.
Eu não precisava pensar.
— Prometo.
O corpo dele pareceu relaxar pela primeira vez no dia.
Mas apenas um pouco.
Porque ainda havia algo grande demais pendurado entre nós.
— Theo… — perguntei — o que aconteceu com a Júlia no final?
Ele abriu a boca.
Ia responder.
Mas alguém apareceu na porta da quadra:
— Navarro! Precisam de você de novo na coordenação!
Theo fechou os olhos, como se estivesse prendendo um grito.
Virou para mim.
— Eu te conto hoje.
Pausa.
— Eu juro, Lívia, prometo.
E correu.
Fiquei ali, no meio do pátio vazio, sentindo o peso de tudo vibrando no ar.
Agora, pela primeira vez…
eu sabia:
A história da Júlia não era só sobre o passado.
Era sobre mim.
E sobre algo ou alguém que não queria que essa história se repetisse — ou talvez quisesse exatamente isso.
******
Depois que Theo correu de novo para a coordenação, o pátio voltou a ficar silencioso.
Eu permaneci ali por alguns segundos, tentando acalmar a respiração, mas parecia que meu corpo inteiro estava em alerta — o tipo de alerta que surge quando algo está perto de explodir.
Maria veio até mim devagar, como se não quisesse me assustar ainda mais.
— Ele não terminou, né? — ela perguntou.
— Não.
Respirei fundo.
— Mas ele já começou.
Maria sentou ao meu lado no banco de cimento.
— Livi… isso tá ficando pesado demais.
— Eu sei.
— E você vai continuar?
Eu olhei para as próprias mãos.
— Já tô dentro disso.
Pausa.
— Agora eu preciso entender até o fim.
Antes que ela pudesse responder, meu celular vibrou.
Uma notificação nova.
Grupo da sala.
Abri rápido demais.
Alguém enviou uma foto.
Um print, na verdade.
Do perfil anônimo que espalhava fofocas.
Mas dessa vez não era sobre mim.
Nem sobre Theo.
Era sobre o autor das denúncias.
E isso mudou tudo.
A imagem mostrava o início de uma lista, provavelmente capturada sem intenção — ou com toda intenção do mundo:
“Denúncia registrada por: J. Duarte.”
Meu corpo gelou.
Maria arregalou os olhos.
— Livi… isso parece um nome. Uma inicial com sobrenome.
Eu toquei a tela, como se pudesse puxar mais detalhes dali.
— Duarte… — murmurei. — Não conheço ninguém com esse nome.
Maria ficou em silêncio por alguns segundos, até franzir o cenho.
— Conhece sim.
Olhei pra ela.
— Quem?
Ela hesitou antes de falar, o que só aumentou o impacto.
— A Júlia.
Senti minha respiração falhar.
— Não… — falei, tentando negar no reflexo. — A Júlia não tá mais na escola.
— Mas o sobrenome dela é Duarte.
O mundo ficou estático por um instante.
Quase como se o ar tivesse parado.
— Livi… — Maria disse, devagar — isso pode ser alguém usando o nome dela. Ou alguém da família.
Pausa.
— Mas o que não dá pra ignorar é que a denúncia tem a mesma assinatura registrada no caso dela.
Meu estômago afundou.
— Isso faz sentido com tudo — ela continuou.
— A coordenadora falou que o padrão é o mesmo.
— O garoto disse que “a história se repete”.
— E o Theo…
Ela me olhou fundo.
— O Theo tá com medo exatamente disso.
Eu queria responder, mas algo chamou minha atenção de longe.
A porta da coordenação se abriu.
Theo saiu — mais pálido do que antes.
Ele andava rápido.
Tenso.
Desfocado.
E vinha direto na nossa direção.
Maria se afastou alguns passos, deixando espaço, mas não indo embora.
Theo parou na minha frente.
Ele levou alguns segundos até conseguir respirar fundo o suficiente para falar.
— Eu preciso te contar uma coisa antes que você ouça de outra pessoa. — disse, com a voz pesada.
Meu coração acelerou.
— Theo…
Mostrei o celular.
O print.
O nome.
J. Duarte.
A reação foi instantânea.
Ele empalideceu.
De verdade.
Os olhos se arregalaram só um pouco, mas o suficiente para eu perceber o impacto.
Foi como se eu tivesse tirado o chão dele.
— Onde você viu isso? — ele perguntou, a voz baixa, urgente.
— No grupo. Mandaram agora.
Pausa.
— É o mesmo nome que apareceu no caso da Júlia, não é?
Theo desviou o olhar imediatamente.
Como se estivesse processando duas dores ao mesmo tempo.
Ele fechou a mão em punho.
Depois abriu.
Depois fechou de novo.
— Livia… isso não devia ter vindo pra você assim.
Eu senti o peito apertar.
— Mas veio.
Pausa.
— E agora eu sei o nome.
— E sei que é o mesmo caso dela.
— E sei que essa pessoa tá fazendo isso de novo.
Theo passou a mão pelo cabelo com desespero.
— Isso não é simples.
— Então me explica.
Ele levantou o olhar devagar.
E o que eu vi ali não era raiva.
Não era culpa.
Era medo.
Medo por mim.
— Eu preciso te contar a verdade inteira — ele disse.
Meu coração bateu forte.
— Então conta.
Ele deu um passo para mais perto.
A voz dele veio baixa, controlada, mas quebrada:
— O nome na lista…
Pausa longa.
— Não é da Júlia.
Eu engoli seco.
— Então de quem é?
Theo hesitou por dois segundos.
Dois segundos longos demais.
— É de alguém ligado a ela.
Meu estômago virou.
— Alguém da família?
Theo assentiu, lento.
— O irmão.
Senti o ar sair do peito.
Theo continuou:
— Ele me odeia desde o dia que ela saiu da escola.
Pausa.
— E agora ele tá tentando fazer parecer que a culpa é minha de novo.
O impacto veio seco.
Forte.
Real.
— Então ele está usando meu nome também? — perguntei, surpresa pela dor que senti ao dizer isso.
Theo deu mais um passo.
— Sim.
Sua voz ficou mais baixa.
— Porque se você estiver no meio disso… ele sabe que eu vou reagir.
Pausa.
— Ele sabe que eu não consigo ficar parado enquanto alguém te machuca.
Meu peito apertou de um jeito diferente agora — quente, intenso.
— Theo… — murmurei — o irmão da Júlia está fazendo isso?
Ele assentiu, devagar.
— Ele nunca me perdoou.
Pausa profunda.
— E está tentando repetir a história.
Eu respirei fundo, tentando absorver tudo.
— O que aconteceu entre você e a Júlia… foi culpa dele? — perguntei, com cuidado.
Theo desviou o olhar.
— Não inteira.
Voltou a me encarar.
— Mas ele transformou algo pequeno… em algo que destruiu ela.
Pausa.
— E agora ele quer destruir você do mesmo jeito.
O peso da frase caiu sobre mim.
Pesou.
Entrou.
Ficou.
Theo deu meio passo para trás, como se tivesse medo da minha reação.
— Agora você sabe o que eu não queria que soubesse.
Eu fiquei ali.
Quietinha.
Sentindo a verdade chegar como onda forte.
E só consegui dizer:
— Theo… o que exatamente ele fez com ela?
O olhar dele tremeu.
Ele ia responder.
Mas um grupo de alunos passou correndo pelo corredor, chamando o nome dele:
— Navarro! Alguém postou outra coisa! Rápido!
Theo fechou os olhos.
Respirou fundo.
E disse:
— A gente precisa terminar essa conversa hoje.
Pausa.
— Antes que ele termine por nós.
E correu.
Fiquei parada, tremendo, com uma certeza devastadora:
A verdade sobre Júlia não era apenas sobre o passado.
Era uma ameaça.
Agora.
E tinha um nome:
O irmão dela.