4. O Projeto (Parte II)

1758 Palavras
O resto do período passou como uma névoa espessa. Eu não conseguia focar em nada — nem nas vozes, nem nas aulas, nem nas pessoas que me cercavam. Era como se o mundo tivesse perdido nitidez desde que Theo foi chamado outra vez para a diretoria. Maria percebeu. Ela sempre percebia. — Você só olha pro nada, Livi. — disse ela enquanto descíamos as escadas. — Isso não é só curiosidade. É outra coisa. — Eu só quero entender. — E se não gostar da resposta? Não respondi. Porque era exatamente essa a pergunta que vinha me atormentando desde que Theo quase falou na quadra. Saímos do prédio principal e seguimos pelo pátio. A aula de reforço ainda demoraria, mas eu precisava de alguns minutos para respirar. Passei perto do mural de avisos e ouvi duas professoras conversando — não com fofoca, mas com a preocupação de quem sabe mais do que deveria. — Ele está diferente essa semana. — uma delas comentou. — Muito. Parece preocupado. — respondeu a outra. — A coordenadora disse que chamou porque houve uma reclamação formal. — Sobre o quê? — Algo envolvendo outro aluno… e aquela menina da sala dele. Senti meu corpo travar. Maria segurou meu braço imediatamente. — Não escuta isso. — disse, em voz baixa. — Isso é conversa de professor. Sempre soa pior do que é. Mas meu coração já estava batendo rápido demais. Reclamação formal. Envolvendo “outro aluno”… E eu. Antes que pudesse assimilar, um grupo de meninos passou por nós, rindo. — É o Navarro de novo. — Tá colecionando idas pra diretoria. — Dessa vez não vai escapar. — Aposto que é por causa dela. Meu estômago afundou. Maria ficou tensa. — Esses idiotas não sabem de nada. Mas eu sabia que não era tão simples. Nada naquilo era simples. Caminhamos até a área externa, onde os alunos esperavam para a aula de reforço. Sentei no banco de cimento, tentando manter a calma. Maria sentou ao meu lado. — Você devia esperar ele falar antes de tirar conclusões. — Não tô tirando. — Tá sim. — disse ela. — Eu te conheço. Eu respirei fundo, tentando encontrar ordem no caos. — Maria… e se for algo sério? — perguntei. — E se não for? — ela rebateu. — E se for só drama de escola? Mas eu sabia. Era maior do que isso. O jeito que Theo falou. O jeito que ele me olhou. O jeito que ele hesitou. Outra notificação apareceu no meu celular. Abri rápido demais. Não era Theo. Era o grupo da sala. Alguém tinha mandado um print. Uma conversa entre dois alunos do terceiro ano. A legenda: “O Navarro tá ferrado. A coordenadora tá falando do rolo dele com a menina da sala.” E embaixo: “Tô falando, mano. Ele se envolveu com a pessoa errada.” Meu corpo congelou. Maria pegou o celular da minha mão. — Eu odeio todo mundo dessa escola. Mas eu só conseguia encarar a tela, incapaz de piscar. “A pessoa errada.” “Envolveu.” Era tentador acreditar que era só exagero, só distorção, só fofoca. Mas o peso da manhã inteira não deixava. — Eu preciso falar com ele. — murmurei. — Agora? — perguntou Maria. — Sim. Antes que isso aumente. Levantei. Dei dois passos. O celular vibrou. Theo. “Ainda tá aí?” Meu coração saltou no peito. Respondi: “Sim.” A resposta veio rápido. “Tô saindo da diretoria. Me espera perto da sala de artes.” Me virei para Maria. Ela assentiu, séria. — Vai. Olhou nos meus olhos. — Mas fica esperta. Ele parece… diferente hoje. Ela tinha razão. Eu já tinha sentido isso antes dela dizer. Theo não estava apenas estranho. Ele estava no limite. E eu, de alguma forma, estava ligada a isso. Fui em direção ao corredor onde ficava a sala de artes. A cada passo, o ar parecia mais pesado. O ruído dos alunos diminuía. O eco dos meus passos aumentava. Até que parei diante da porta. O corredor estava quase vazio. O sol fraco entrava pela janela, iluminando a poeira suspensa no ar. Eu respirei fundo. E então ouvi passos. Theo virou o corredor. E pela primeira vez naquele dia, eu tive certeza absoluta de uma coisa: Ele estava quebrado. Não no sentido perigoso. Mas no sentido humano. No sentido real. No sentido de alguém que estava segurando demais sozinho — e que ia finalmente romper. Ele parou diante de mim. Os olhos profundos, cansados, tensos. E disse a frase que mudou completamente o tom do capítulo: — Antes de eu te contar, você precisa saber… não foi só um boato. Foi alguém. E esse alguém tem motivo pra querer que você pense o pior de mim. Meu corpo gelou. — Quem? — perguntei, a voz quase falhando. Theo olhou pro chão. Depois pra mim. E, com a voz baixa, quase um sussurro, ele respondeu: — Alguém que fez isso antes. Antes que eu pudesse entender, processar, reagir — a porta da sala ao lado se abriu com força. Alguém saiu apressado, chamando pelo nome dele. E a verdade que estava na ponta da língua engoliu o ar e desapareceu de novo. Ele fechou os olhos, frustrado. E sussurrou apenas: — Eu juro… que vou te contar tudo. Olhou pra mim. — Hoje. E então foi levado, mais uma vez, antes de terminar. Me deixando ali. Com um medo novo. E uma certeza c***l: Alguém estava mexendo com ele. E, agora… com nós dois. Fiquei parada no corredor, observando Theo ser levado de novo antes de terminar uma frase que parecia ter peso demais para ser dita ali, em voz alta. “Alguém fez isso antes.” Essa frase ecoava dentro de mim, firme e incômoda. Eu tentava encaixar, entender, conectar com tudo que tinha acontecido, mas era como tentar montar um quebra-cabeça com peças faltando. Maria apareceu alguns minutos depois, ofegante. — O professor me deixou sair. O que aconteceu? — Ele quase falou. Minhas mãos tremiam. — Mas não conseguiu. — De novo? — ela perguntou, chocada. — Isso tá estranho demais. Eu assenti. — Ele disse que não foi só um boato, Maria. Olhei para o chão, tentando organizar meus pensamentos. — Ele disse que foi alguém. Maria franziu a testa. — Alguém… como assim alguém? — Alguém que tem motivo pra querer que eu pense o pior dele. E que já fez isso antes. Maria ficou em silêncio por alguns segundos. E foi nesse silêncio que algo dentro de mim se alterou. Não era paranoia. Não era exagero. Era lógica. — Livi — ela disse, devagar — você acha que é… alguém aqui da escola? Respirei fundo. — Ele não falou. Mas… pareceu. Maria cruzou os braços. — Isso tá ficando perigoso. Seu tom mudou, mais sério. — Não é só fofoca. Tem alguém mexendo nisso. E forte. Eu sabia. Mas saber não ajudava a entender. Só aumentava o peso que já estava difícil de carregar. ******* Voltamos para a sala para a última atividade do dia. Eu tinha a sensação constante de estar sendo observada. Não de forma explícita. Era mais sutil. Olhares rápidos. Sussurros. Silêncio repentino quando eu passava. Aquela sensação de que a escola inteira estava esperando alguma coisa acontecer. Theo ainda não tinha voltado. Quando o sinal tocou, me preparei para sair rápido. Mas assim que cheguei à porta, o professor da sala de artes me chamou. — Você é a dupla do Navarro, certo? Meu corpo travou. — Sim. — Preciso que entregue isso pra ele. Ele me deu um envelope branco, simples, com a letra da coordenadora na frente. Maria olhou para mim. — Você vai levar isso pra ele? Eu assenti. Era melhor do que esperar até o dia seguinte para falar com ele. Talvez aquilo fosse o impulso que faltava pra ele finalmente dizer tudo. Saí da sala com o envelope na mão. Foi então que ouvi. Uma voz que eu conhecia. Mas não queria ouvir naquele momento. — Você devia tomar cuidado com ele. Virei. Um garoto do terceiro ano estava parado no corredor, apoiado na parede. Não era dos amigos de Theo. Não era alguém próximo de mim. Mas era alguém que sempre observava tudo de longe. — O que você disse? — perguntei. Ele deu um sorriso que não combinava com a situação. — Navarro. Cruzei os braços, esperando. — Você não conhece ele como acha que conhece. Meu peito apertou. — Eu conheço o suficiente. — Acha mesmo? Ele deu um passo à frente. — Porque teve outra garota antes de você. Meu coração congelou. — O quê? — Outra garota que ele também “defendia”. A entonação dele era carregada de sarcasmo. — Outro boato. Outra confusão. Outro problema. Eu não respirei por alguns segundos. Ele continuou: — E sabe o que aconteceu com ela? Sumiu. Mudou de escola. Sem dizer nada pra ninguém. Minha garganta fechou. — Quem era ela? — perguntei. O garoto deu um sorriso breve, satisfeito com o impacto que causava. — Pergunta pra ele. Depois virou as costas e saiu andando pelo corredor com passos lentos, como se tivesse deixado uma bomba explodindo atrás dele. Eu fiquei ali, com o envelope na mão, e a sensação de que o chão tinha aberto sob meus pés. “Outra garota.” “Mesmo padrão.” “Mesmo começo.” “Sumiu.” Isso ecoava dentro de mim com força demais. Maria me alcançou alguns segundos depois. — Quem era aquele? O que ele falou? Eu respirei fundo, tentando organizar emoções que não eram simples. — Ele disse que… teve outra garota. Antes de mim. Maria arregalou os olhos. — Isso faz sentido com o que o Theo falou na quadra. Ela se aproximou mais, preocupada. — Livi, isso é sério. Era. Muito. Olhei para o envelope, sentindo o peso dele aumentar na minha mão. — Eu preciso falar com ele agora. E pela primeira vez desde que tudo começou, não era curiosidade. Era necessidade. Não só de entender o que estava acontecendo — mas de entender quem era Theo de verdade. Não o boato. Não o que diziam. Não o que inventavam. O real. O que ele escondia. O que estava prestes a explodir entre nós dois. A verdade dele. Porque, depois dessa pista, eu sabia: Tudo o que ele queria me dizer não era sobre o presente. Era sobre o passado. E esse passado estava mais perto de mim do que eu imaginava.
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