A chuva fina caía sobre o pátio de pedra, formando poças que refletiam a luz amarelada das janelas da mansão Cavalcante.O céu, pesado e sem estrelas, parecia esconder um presságio.
Era quase meia-noite quando Amélie, terminando de limpar o saguão, ouviu o som distante de cascos de cavalo e o ranger do portão principal.
Curiosa e com um mau pressentimento ela foi até a entrada.Logo, viu a carruagem parar diante da escadaria.
O cocheiro desceu apressado, ajudando alguém a sair.O coração dela disparou ao reconhecer a silhueta: Estefano.
Ele mancava, o rosto parcialmente coberto por sangue seco e a camisa rasgada.Mesmo ferido, mantinha a postura altiva, mas havia um cansaço sombrio em seus olhos.
— Senhor Cavalcante! — exclamou o cocheiro. — Devia chamar o médico!
— Não — respondeu ele com firmeza. — Ninguém deve saber que voltei esta noite.
Amélie, escondida atrás de uma coluna, hesitou por um instante.Mas ao vê-lo tropeçar no último degrau, correu até ele sem pensar.
— Senhor Estefano!— chamou, a voz tomada pelo susto. — O que aconteceu?
Ele a olhou, surpreso, quase atordoado.
— Amélie… o que está fazendo acordada a essa hora?
— Eu poderia perguntar o mesmo — respondeu, apoiando-o pelo braço. — Venha, sente-se antes que caia.
Ela o conduziu até uma cadeira próxima ao saguão, ajudando-o a se sentar.O cheiro de sangue misturava-se ao da chuva e da terra molhada.Estefano tentou sorrir, mas o rosto se contraiu de dor.
— Não é nada — murmurou. — Apenas… um desentendimento.
— Um desentendimento que deixou o senhor sangrando? — Amélie respondeu, firme, buscando um pano limpo.
Ele observou-a enquanto ela molhava o tecido e se ajoelhava diante dele.Cada gesto dela era leve, cuidadoso as mãos trêmulas, mas decididas.Amélie limpou o sangue de sua testa, o olhar concentrado, enquanto gotas da chuva escorriam de seus cabelos curtos.
— Quem fez isso com o Senhor ?— perguntou, sem erguer os olhos.
— Homens que deviam me respeitar — respondeu, amargo. — Parece que ser um Cavalcante não impõe tanto medo quanto deveria.
Amélie suspirou.
— Talvez o medo não seja o que o senhor precise impor.
Ele arqueou uma sobrancelha, intrigado.
— E o que eu deveria impor, então senhorita?
Ela levantou o olhar.Por um instante, esqueceu-se de onde estava, de quem ele era.
— Respeito. O verdadeiro não se compra, nem se obriga… se conquista.
Estefano a observou em silêncio.Aquela moça a mesma que ele vira chegar à mansão, assustada e frágil agora falava com uma firmeza que o desarmava.
— Você mudou — disse ele, quase num sussurro. — Está diferente.
Amélie desviou o olhar, voltando a limpar o ferimento.
— Três meses nessa casa mudariam qualquer pessoa senhor.
Ele riu, um som rouco e curto.
— Ainda consegue ironizar. Achei que Francesca tivesse apagado isso de você.
— A senhora Francesca não pode apagar o que eu sou — respondeu, com calma. — Só me lembrar, todos os dias, do que não devo ser.
O silêncio entre eles se alongou.Do lado de fora, o vento batia nas janelas, e o fogo da lareira lançava sombras trêmulas nas paredes.Amélie terminou de limpar o ferimento e se levantou, segurando o pano manchado de sangue.
— Precisa descansar — disse ela, tentando disfarçar a preocupação.
— Amélie… — ele pegou em sua mão, antes que ela se afastasse.
Ela parou, virando-se devagar.
Os olhos de Estefano estavam fixos nos dela com uma sinceridade rara.
— Obrigado — murmurou. — Por cuidar de mim… mesmo quando tem todos os motivos pra me odiar.
Amélie hesitou, depois respondeu suavemente:
— Eu nunca o odiaria Estefano.
E, sem dizer mais nada, curvou-se levemente e desapareceu pelo corredor, deixando-o sozinho ferido, exausto e verdadeiramente vulnerável.
Estefano olhou para suas mãos agora já limpas do sangue e pensou, amargo:
“Ela sangra por mim em silêncio… e eu nem posso defendê-la à luz do dia.”