Iago
O beco era um buraco do inferno, estreito pra c*****o, parecia que as paredes iam se fechando mais a cada segundo pra me engolir vivo. Tudo cravejado de bala, reboco comido e cápsula espalhada no chão.
Encostei as costas na parede, respirando fundo e suando frio. O rádio chiava preso no colete — só dava pra ouvir grito de menor desesperado, pedindo reforço, falando que tinha perdido posição.
Olhei pro Renan. Ele entendeu sem eu precisar abrir a boca. Tava estampado na nossa cara: fudeu.
Ficar ali era morrer. Correr era pior. A gente tava cercado.
Segurei o fuzil firme, a mão suada escorregando no cano. O coração batendo alto, parecia tambor dentro do peito. Pensei rápido. Só dava pra tentar um bagulho.
Puxei uma granada do colete e o Renan arregalou o olho.
— Que p***a tu vai fazer, c*****o? — disse me encarando.
— Vou jogar essa p***a e nós dois vai correr. — respondi curto.
— Isso é suicídio, Iagin! — ele balançou a cabeça.
— Tem ideia melhor, p***a? — a respiração saía quente. Eu sentia o sangue pulsando até na gengiva. O peito batendo a milhão.
É f**a quando tu fica cara a cara com a morte e precisa pensar rápido. O tempo fica lento e tua vida começa a passar em câmera lenta na tua cara.
Renan olhou pra mim, mordeu o lábio e assentiu.
— Então vamo, p***a.
Puxei o pino e gritei:
— CORRE, p***a!
Joguei a granada na saida do beco e saí rasgando no impulso, com o fuzil na mão. O estrondo veio segundos depois — a explosão fez o chão tremer, poeira subindo, visão toda tomada.
Mandei rajada no escuro, só pelo instinto. O som das balas ricocheteando era tipo tambor de guerra. Corria e atirava, nem via p***a nenhuma, só clarão e o vulto do Renan do meu lado.
— RENAN!
Nenhuma resposta.
Corri mais uns metros, cego na fumaça, o coração batendo no talo. Quando parei pra respirar, percebi… o barulho dos meus passos era o único.
— RENAN! — berrei de novo, virando pra trás.
Nada. Só o eco das rajadas longe.
Voltei tropeçando, o chão cheio de casco. Foi aí que vi ele.
Caído, meio de lado, o sangue abrindo poça no chão.
— c*****o… não, não, não, não, não... — corri, ajoelhei do lado, puxei ele pela roupa. — Vamo, Renan! Levanta, p***a!
Peguei o braço dele, tentei botar por cima do meu ombro, mas o corpo tava mole, pesando pra c*****o. Ele ainda respirava, mas os olhos piscavam devagar, tipo quem ta com muito sono.
— Sai daqui, Iaguinho… — ele murmurou, a voz sumindo. — Já era pra mim, filhão.
— Cala a boca, p***a! — sacudi ele com raiva e medo. — Tu não vai morrer, c*****o, eu vou te levar pra UPA, pra p***a que for!
Ele tossiu, o sangue descendo pela boca.
— Não dá tempo... — ele respirou fundo. — Eu já tô indo.
— Para de falar merda, c*****o! — pressionei a mão no ferimento, tentando estancar. Mas nem adiantava ele tava todo furado e o sangue jorrava nos meus dedos. — Segura essa p***a! Segura, Renan!
Ele riu fraquinho, um riso cansado, com o olhar já distante.
— Iaguinho... — a voz dele saiu num sopro. — Quando tua mãe tava grávida de tu, eu fiquei feliz pra c*****o. O cuzão do teu pai falava que não podia ter filho, que a p***a dele era rala... — ele deu um risinho, e eu ri junto, chorando. — Ainda bem que aquela merda não era rala p***a nenhuma. — o olhar dele pesou. — Porque eu tive o privilégio de correr contigo nessa p***a. Tu é como um filho pra mim. Te amo, garoto. Tu é p**a.
— Cala a boca, Renan... — minha voz quebrou. — Não fala isso, p***a. Vêm..
Ele segurou meu braço fraco.
— Tu nasceu pra essa merda, moleque. E ouve o que eu tô te dizendo: tu é melhor que ele. Sangue de leão, coração de gelo. Nunca aceite abaixar a cabeça pra ninguém, me ouviu?
— Tu vai ficar bem. — eu insisti, tremendo.
— Eu não vou ficar, c*****o — ele riu de leve novamente, um riso que me doía. — E tá tudo bem... só faz um bagulho pra mim.
— Fala. — as lágrimas desciam sem controle.
— Fala pra tua tia Tatiany... que eu sempre amei aquela filha da p**a. Que eu fui um merda por deixar ela ir embora. Que ela é e sempre vai ser a mulher da minha vida.
Engoli seco.
— Tá bom, eu falo, porra... mas agora vamo sair daqui. — tentei erguer ele, puxando o corpo pesado.
— Fala pro Terror... — ele tossiu sangue. — Que ele foi o irmão que a vida me deu. Que eu devo tudo a ele. Que agora eu e a dona Sônia tamo de olho nele.
— Tu mesmo vai falar isso pra ele, c*****o! — puxei ele de novo, mas ele se soltou.
— Não dá mais... — ele respirou fundo. — Mete o pé, Iago. Luta pelo o que tu acredita e se algum dia tu amar alguém de verdade... não deixa essa pessoa escapar.
A minha garganta secou e encostei a testa no peito dele, chorando que nem uma criança.
— Me perdoa, irmão.
— Não se culpa, não. — piscou devagar. — Eu escolhi morrer assim.
O olhar dele foi apagando. O peito subindo devagar até parar.
— Renan... — chamei baixo. — Olha pra mim, p***a.
O corpo dele relaxou nos meus braços.
Fiquei ali ajoelhado, o sangue dele nas minhas mãos, a testa colada no ombro dele.
— Tu não pode fazer isso comigo, irmão... — minha voz saía falhada, quebrada.
O rádio ainda chiava e o som dos passos se aproximava.
Levantei devagar, corpo em transe, mente vazia.
Olhei pros fuzis no chão. Peguei. Podia sair atirando e morrer ali. Ou podia fazer o que ele me pediu.
Passei a mão no rosto, limpando lágrima e sangue tudo junto.
— Eu não vou te deixar, irmão... — falei baixo, encarando seu corpo estendido no chão. — Nem morto.
Tirei colete, radinho e joguei tudo na varanda de uma casa. Fiquei só com a roupa do corpo.
Me ajoelhei novamente perto do corpo do Renan ouvindo os passos cada vez mais perto.
— PERDEU, PERDEU, FILHO DA p**a! DEITA NO CHÃO!
Levantei as mãos devagar, botei atrás da cabeça. O olho preso no Renan estirado no chão.
A garganta ardia, mas eu não piscava.
— EU DISSE DEITA, p***a!
E eu pensei: Também te amo, irmão.
Maria Clara
Passei horas dentro daquele carro, olhando pro nada, respirando fundo e tentando juntar coragem pra sair.
Quando finalmente abri a porta, um arrepio me atingiu. Fechei a porta do carro devagar, apoiando a mão no vidro, e fiquei parada por um instante só pra disfarçar as lágrimas que teimaram em aparecer.
Humberto se aproximou.
— Vamos lá — disse, tocando meu ombro com calma.
Limpei o rosto no reflexo da janela e assenti. As pernas meio bambas, o coração apertado.
Fomos andando devagar. Mas o som de varias viaturas me fizeram parar, instintivamente. Olhei pro lado.
Eram muitas.
O azul das luzes piscando se misturava com o barulho dos motores. Só conseguia pensar que devia ser alguém importante devido a quantidade de polícias.
— Vamos, Clara — a voz dele veio firme.
Desviei o olhar e continuei subindo as escadas com o Humberto. Quando cheguei no último degrau, meus olhos foram direto pras viaturas mais uma vez.
— Clara... — Humberto me chamou uma vez. — Clara. — outra.
— Maria Clara — a terceira veio mais forte.
Olhei pro Humberto e quando olhei novamente para o local onde os meus olhos estavam, eu o vi.
Dois policiais seguravam o Iago pelos braços, algemado, escoltando ele enquanto outros vinham logo atrás.
Meu corpo inteiro gelou.
O rosto dele estava machucado, manchado de sangue. A roupa suja e o policial forçando a cabeça dele pra baixo.
— É o Iago — falei num sussurro e desci dois degraus.
A mão do Humberto agarrou meu braço, firme. Doeu.
O Iago parou. Olhou pra mim. Só por um segundo. Mas o suficiente pra me tirar o ar e uma lágrima descer pelo meu rosto.
E então ele foi levado pro outro lado.
— IAGO! — gritei, tentando correr até ele, mas o Humberto me puxou de volta. — Ele tá machucado!
— Ele é um bandido. Deve ter reagido. — respondeu, frio, sem olhar pra mim.
O jeito que ele falou me causou uma sensação r**m mais que o aperto no braço.
— Humberto...
— Esquece esse cara, Clara. — disse, e me arrastou pra dentro da delegacia como quem puxa uma criança.
Um policial o cumprimentou logo na entrada, e enquanto os dois conversavam, meus olhos varriam o salão, desesperados.
Eu precisava ver o Iago. Precisava saber se ele estava bem. Tinha muito sangue na roupa dele.
Me afastei devagar, fingindo interesse em outras coisas, e andei alguns passos até que o vi.
Ele estava encostado num canto, cercado de policiais. Cabeça baixa. Olhos no chão.
Meu peito sangrou vendo ele daquele jeito.
Tava todo machucado.
—Iago... — falei, quase sem voz.
Ele levantou o olhar me encarando, rápido, e virou o rosto.
Dois policiais o puxaram pelos braços, o levando por um corredor estreito. Antes de sumir, ele olhou pra trás pela última vez.
— Maria Clara! — a voz do Humberto me arrancou do transe. — O delegado tá nos esperando.
Baixei a cabeça, limpei uma lágrima teimosa e virei de volta. Fui até ele em silêncio.
Subimos uma escadaria e entramos numa sala pequena. O delegado estava sentado, xícara de café na mão, me observando com curiosidade.
— Humberto... — ele cumprimentou, levantando-se pra apertar sua mão. — Essa é a filha do promotor, né?
— É sim, doutor. A gente veio resolver o que ficou pendente.
Fiquei parada, segurando firme a alça da bolsa, tentando conter o tremor nas mãos. O delegado fez um gesto para eu sentar.
— Senta, menina. Vamos conversar com calma.
Sentei devagar.
O barulho do relógio na parede se misturava com o da minha respiração.
— Eu só preciso que você confirme algumas coisas. — ele disse, apoiando os braços sobre a mesa. — O resto a gente resolve depois.
Meus pensamentos fugiram até ele.
Voltei pra Angra.
Lembrei da mulher das flores na calçada. Do Iago comprando uma rosa de plástico e me entregando quando ela mandou ele comprar uma rosa pra sua namorada. Lembrei do toque dele tirando o cabelo do meu rosto. Do nosso primeiro beijo.
E antes que eu conseguisse conter, as palavras saíram:
— É mentira! — falei alto, firme, sentindo as lágrimas descendo de novo. — O Iago nunca me sequestrou e nunca me violentou. É tudo mentira!
Eu subi o morro porque eu quis.
O silêncio que se fez depois pareceu infinito.
Mas pelo menos eu estava feliz de dizer a verdade. Mesmo sabendo que eu pagaria por isso.