Capítulo 37

1856 Palavras
Iago O beco era um buraco do inferno, estreito pra c*****o, parecia que as paredes iam se fechando mais a cada segundo pra me engolir vivo. Tudo cravejado de bala, reboco comido e cápsula espalhada no chão. Encostei as costas na parede, respirando fundo e suando frio. O rádio chiava preso no colete — só dava pra ouvir grito de menor desesperado, pedindo reforço, falando que tinha perdido posição. Olhei pro Renan. Ele entendeu sem eu precisar abrir a boca. Tava estampado na nossa cara: fudeu. Ficar ali era morrer. Correr era pior. A gente tava cercado. Segurei o fuzil firme, a mão suada escorregando no cano. O coração batendo alto, parecia tambor dentro do peito. Pensei rápido. Só dava pra tentar um bagulho. Puxei uma granada do colete e o Renan arregalou o olho. — Que p***a tu vai fazer, c*****o? — disse me encarando. — Vou jogar essa p***a e nós dois vai correr. — respondi curto. — Isso é suicídio, Iagin! — ele balançou a cabeça. — Tem ideia melhor, p***a? — a respiração saía quente. Eu sentia o sangue pulsando até na gengiva. O peito batendo a milhão. É f**a quando tu fica cara a cara com a morte e precisa pensar rápido. O tempo fica lento e tua vida começa a passar em câmera lenta na tua cara. Renan olhou pra mim, mordeu o lábio e assentiu. — Então vamo, p***a. Puxei o pino e gritei: — CORRE, p***a! Joguei a granada na saida do beco e saí rasgando no impulso, com o fuzil na mão. O estrondo veio segundos depois — a explosão fez o chão tremer, poeira subindo, visão toda tomada. Mandei rajada no escuro, só pelo instinto. O som das balas ricocheteando era tipo tambor de guerra. Corria e atirava, nem via p***a nenhuma, só clarão e o vulto do Renan do meu lado. — RENAN! Nenhuma resposta. Corri mais uns metros, cego na fumaça, o coração batendo no talo. Quando parei pra respirar, percebi… o barulho dos meus passos era o único. — RENAN! — berrei de novo, virando pra trás. Nada. Só o eco das rajadas longe. Voltei tropeçando, o chão cheio de casco. Foi aí que vi ele. Caído, meio de lado, o sangue abrindo poça no chão. — c*****o… não, não, não, não, não... — corri, ajoelhei do lado, puxei ele pela roupa. — Vamo, Renan! Levanta, p***a! Peguei o braço dele, tentei botar por cima do meu ombro, mas o corpo tava mole, pesando pra c*****o. Ele ainda respirava, mas os olhos piscavam devagar, tipo quem ta com muito sono. — Sai daqui, Iaguinho… — ele murmurou, a voz sumindo. — Já era pra mim, filhão. — Cala a boca, p***a! — sacudi ele com raiva e medo. — Tu não vai morrer, c*****o, eu vou te levar pra UPA, pra p***a que for! Ele tossiu, o sangue descendo pela boca. — Não dá tempo... — ele respirou fundo. — Eu já tô indo. — Para de falar merda, c*****o! — pressionei a mão no ferimento, tentando estancar. Mas nem adiantava ele tava todo furado e o sangue jorrava nos meus dedos. — Segura essa p***a! Segura, Renan! Ele riu fraquinho, um riso cansado, com o olhar já distante. — Iaguinho... — a voz dele saiu num sopro. — Quando tua mãe tava grávida de tu, eu fiquei feliz pra c*****o. O cuzão do teu pai falava que não podia ter filho, que a p***a dele era rala... — ele deu um risinho, e eu ri junto, chorando. — Ainda bem que aquela merda não era rala p***a nenhuma. — o olhar dele pesou. — Porque eu tive o privilégio de correr contigo nessa p***a. Tu é como um filho pra mim. Te amo, garoto. Tu é p**a. — Cala a boca, Renan... — minha voz quebrou. — Não fala isso, p***a. Vêm.. Ele segurou meu braço fraco. — Tu nasceu pra essa merda, moleque. E ouve o que eu tô te dizendo: tu é melhor que ele. Sangue de leão, coração de gelo. Nunca aceite abaixar a cabeça pra ninguém, me ouviu? — Tu vai ficar bem. — eu insisti, tremendo. — Eu não vou ficar, c*****o — ele riu de leve novamente, um riso que me doía. — E tá tudo bem... só faz um bagulho pra mim. — Fala. — as lágrimas desciam sem controle. — Fala pra tua tia Tatiany... que eu sempre amei aquela filha da p**a. Que eu fui um merda por deixar ela ir embora. Que ela é e sempre vai ser a mulher da minha vida. Engoli seco. — Tá bom, eu falo, porra... mas agora vamo sair daqui. — tentei erguer ele, puxando o corpo pesado. — Fala pro Terror... — ele tossiu sangue. — Que ele foi o irmão que a vida me deu. Que eu devo tudo a ele. Que agora eu e a dona Sônia tamo de olho nele. — Tu mesmo vai falar isso pra ele, c*****o! — puxei ele de novo, mas ele se soltou. — Não dá mais... — ele respirou fundo. — Mete o pé, Iago. Luta pelo o que tu acredita e se algum dia tu amar alguém de verdade... não deixa essa pessoa escapar. A minha garganta secou e encostei a testa no peito dele, chorando que nem uma criança. — Me perdoa, irmão. — Não se culpa, não. — piscou devagar. — Eu escolhi morrer assim. O olhar dele foi apagando. O peito subindo devagar até parar. — Renan... — chamei baixo. — Olha pra mim, p***a. O corpo dele relaxou nos meus braços. Fiquei ali ajoelhado, o sangue dele nas minhas mãos, a testa colada no ombro dele. — Tu não pode fazer isso comigo, irmão... — minha voz saía falhada, quebrada. O rádio ainda chiava e o som dos passos se aproximava. Levantei devagar, corpo em transe, mente vazia. Olhei pros fuzis no chão. Peguei. Podia sair atirando e morrer ali. Ou podia fazer o que ele me pediu. Passei a mão no rosto, limpando lágrima e sangue tudo junto. — Eu não vou te deixar, irmão... — falei baixo, encarando seu corpo estendido no chão. — Nem morto. Tirei colete, radinho e joguei tudo na varanda de uma casa. Fiquei só com a roupa do corpo. Me ajoelhei novamente perto do corpo do Renan ouvindo os passos cada vez mais perto. — PERDEU, PERDEU, FILHO DA p**a! DEITA NO CHÃO! Levantei as mãos devagar, botei atrás da cabeça. O olho preso no Renan estirado no chão. A garganta ardia, mas eu não piscava. — EU DISSE DEITA, p***a! E eu pensei: Também te amo, irmão. Maria Clara Passei horas dentro daquele carro, olhando pro nada, respirando fundo e tentando juntar coragem pra sair. Quando finalmente abri a porta, um arrepio me atingiu. Fechei a porta do carro devagar, apoiando a mão no vidro, e fiquei parada por um instante só pra disfarçar as lágrimas que teimaram em aparecer. Humberto se aproximou. — Vamos lá — disse, tocando meu ombro com calma. Limpei o rosto no reflexo da janela e assenti. As pernas meio bambas, o coração apertado. Fomos andando devagar. Mas o som de varias viaturas me fizeram parar, instintivamente. Olhei pro lado. Eram muitas. O azul das luzes piscando se misturava com o barulho dos motores. Só conseguia pensar que devia ser alguém importante devido a quantidade de polícias. — Vamos, Clara — a voz dele veio firme. Desviei o olhar e continuei subindo as escadas com o Humberto. Quando cheguei no último degrau, meus olhos foram direto pras viaturas mais uma vez. — Clara... — Humberto me chamou uma vez. — Clara. — outra. — Maria Clara — a terceira veio mais forte. Olhei pro Humberto e quando olhei novamente para o local onde os meus olhos estavam, eu o vi. Dois policiais seguravam o Iago pelos braços, algemado, escoltando ele enquanto outros vinham logo atrás. Meu corpo inteiro gelou. O rosto dele estava machucado, manchado de sangue. A roupa suja e o policial forçando a cabeça dele pra baixo. — É o Iago — falei num sussurro e desci dois degraus. A mão do Humberto agarrou meu braço, firme. Doeu. O Iago parou. Olhou pra mim. Só por um segundo. Mas o suficiente pra me tirar o ar e uma lágrima descer pelo meu rosto. E então ele foi levado pro outro lado. — IAGO! — gritei, tentando correr até ele, mas o Humberto me puxou de volta. — Ele tá machucado! — Ele é um bandido. Deve ter reagido. — respondeu, frio, sem olhar pra mim. O jeito que ele falou me causou uma sensação r**m mais que o aperto no braço. — Humberto... — Esquece esse cara, Clara. — disse, e me arrastou pra dentro da delegacia como quem puxa uma criança. Um policial o cumprimentou logo na entrada, e enquanto os dois conversavam, meus olhos varriam o salão, desesperados. Eu precisava ver o Iago. Precisava saber se ele estava bem. Tinha muito sangue na roupa dele. Me afastei devagar, fingindo interesse em outras coisas, e andei alguns passos até que o vi. Ele estava encostado num canto, cercado de policiais. Cabeça baixa. Olhos no chão. Meu peito sangrou vendo ele daquele jeito. Tava todo machucado. —Iago... — falei, quase sem voz. Ele levantou o olhar me encarando, rápido, e virou o rosto. Dois policiais o puxaram pelos braços, o levando por um corredor estreito. Antes de sumir, ele olhou pra trás pela última vez. — Maria Clara! — a voz do Humberto me arrancou do transe. — O delegado tá nos esperando. Baixei a cabeça, limpei uma lágrima teimosa e virei de volta. Fui até ele em silêncio. Subimos uma escadaria e entramos numa sala pequena. O delegado estava sentado, xícara de café na mão, me observando com curiosidade. — Humberto... — ele cumprimentou, levantando-se pra apertar sua mão. — Essa é a filha do promotor, né? — É sim, doutor. A gente veio resolver o que ficou pendente. Fiquei parada, segurando firme a alça da bolsa, tentando conter o tremor nas mãos. O delegado fez um gesto para eu sentar. — Senta, menina. Vamos conversar com calma. Sentei devagar. O barulho do relógio na parede se misturava com o da minha respiração. — Eu só preciso que você confirme algumas coisas. — ele disse, apoiando os braços sobre a mesa. — O resto a gente resolve depois. Meus pensamentos fugiram até ele. Voltei pra Angra. Lembrei da mulher das flores na calçada. Do Iago comprando uma rosa de plástico e me entregando quando ela mandou ele comprar uma rosa pra sua namorada. Lembrei do toque dele tirando o cabelo do meu rosto. Do nosso primeiro beijo. E antes que eu conseguisse conter, as palavras saíram: — É mentira! — falei alto, firme, sentindo as lágrimas descendo de novo. — O Iago nunca me sequestrou e nunca me violentou. É tudo mentira! Eu subi o morro porque eu quis. O silêncio que se fez depois pareceu infinito. Mas pelo menos eu estava feliz de dizer a verdade. Mesmo sabendo que eu pagaria por isso.
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