— Se teu pai parou de pagar, ele fez foi certo! — Manu respondeu, a voz embargada, enxugando as lágrimas com a mão trêmula. — Chega, Alicia. Chega de viver pendurada nas nossas costas. Tá na hora de tu aprender a andar com as tuas próprias pernas.
Enquanto as duas continuavam a discutir, a voz delas foi crescendo até virar apenas gritos.
Em poucos segundos, o pessoal que tava lá dentro começou a sair pra ver o que tava acontecendo.
Fiquei meio de canto, sem saber se intervia ou se apenas observava. Quieta.
A garota de repente, virou-se pra mim, me apontando o dedo com a expressão cheia de raiva.
— E tu? — falou com estupidez. — Tá fazendo o quê com as minhas roupas?
Gelei. Olhando pra mim mesma, pro vestido... e congelei. Abri a boca pra responder mas a Manu foi mais rápida. Gesticulou com a mão pra mim e se colocou na minha frente como um escudo.
— Aqui não tem nada teu, ouviu? — a voz dela saiu alta, cheia de fúria. — Tudo que era teu, tua tia já te entregou. O que tá aqui dentro é meu, fui eu que comprei!
A garota bufou, avançando um passo. A luz amarelada do poste pegou em cheio o rosto dela, e foi nesse instante que nossos olhos se cruzaram de verdade.
Eu parei e ela também.
O olhar dela mudou na hora. Primeiro confuso, depois assustado. E então piscou, como quem tentasse entender se tá vendo certo mesmo.
— Pera aí… — sussurrei, o coração batendo forte. — Eu te conheço.
O rosto dela, de perto, era o mesmo. A mesma menina das fotos com o Humberto. A mesma que eu já tinha visto pessoalmente.
A namorada dele.
— Você… você é a namorada do Humberto, não é? — soltei alto, dando um passo pra frente e ela recuou dois.
O rosto dela foi perdeu a cor na hora.
— O quê? — ela forçou um riso nervoso, tentando disfarçar. — Além de ladra, é maluca também? Tá me confundindo, garota. Nem sei quem é esse aí.
— Sabe sim. — avancei mais um passo, meu coração batendo acelerado. — Eu já te vi antes. Naquela vez mesmo que a gente saiu pra comemorar o aniversário do Beto. Você tava lá. Eu conversei com você. Só que, naquela noite, você usou outro nome.
A Manu virou pra mim, confusa, o olhar correndo de uma pra outra.
Mas eu continuei, falando.
— Tô lembrando que você me disse que a tua mãe era médica. — falei, em tom de constatação, cada palavra encaixando como uma peça no quebra-cabeça.
O Terror foi o primeiro a aparecer, o olhar fixo, daqueles que bastam pra calar qualquer um. Logo atrás dele veio o Iago, andando devagar, apoiado pelos meninos.
A Mel, a Any e a Agatha já estavam aqui fora, paradas perto do RD, observando a cena com atenção.
O Terror olhou de mim e pra Alicia, o maxilar travado.
— Quem é Humberto? — ele perguntou.
Foi então que o Iago respondeu, sem hesitar, o olhar preso nela.
— O PM.
A Manu piscou devagar, como se precisasse de um segundo pra processar aquela informação, e levou a mão ao peito.
— O quê? — a voz dela saiu baixinha.
A Alicia começou a dar alguns passos pra trás, o rosto pálido, o corpo trêmulo.
— Vocês tão acreditando nessa garota? — ela gritou, apontando pra mim. — Essa menina apareceu ontem aqui! Vocês nem sabem quem ela é direito e já colocaram ela dentro de casa. Ainda deram minhas roupas pra ela... e agora tão acreditando nessas mentiras? — tentou rir, mas o riso saiu fraco e morreu rápido quando viu o olhar do Terror endurecer ainda mais.
— Cala a p***a da boca, Alicia. — a Manu respondeu, a voz carregada de decepção.
— É mentira, mãe! — a Alicia começou a chorar de soluçar. — Eu nem conheço esse cara que ela tá falando, mãe! Eu nunca ia me meter com polícia, você sabe disso. Nunca! — os olhos dela rodavam, buscando apoio, mas ninguém dizia nada. — Mãe, acredita em mim, por favor!
Ela chorava como se cada palavra dita contra ela fosse uma injustiça. E, por um segundo, eu quase acreditei — se eu não tivesse visto e falado com ela eu ia duvidar da minha própria sanidade.
Mas por tudo que é mais sagrado… eu tenho certeza de que era ela.
Ela que estava com o Humberto.
O Terror ficou calado por alguns segundos, só observando ela se desmanchar em lágrimas.
As mãos unidas num gesto de quem implorava enquanto tentava encostar na Manu — que recuava, visivelmente enojada.
— Tu namorou com polícia? — o Terror falava de uma forma tão fria que causava medo.
— Não, pai! Eu juro que não! — ela soluçava.
— Namorou sim. — intrometi falando alto, antes que ela abrisse a boca de novo. — Eu sei que o senhor não gosta de mim, mas o que tô falando é verdade. Ela se envolveu com o Humberto, só que ela usava outro nome.
Os olhos do Terror deixaram o rosto dela e vieram direto pra mim. Sustentei o olhar nele, porque eu tinha certeza do que eu tava falando.
— Mostra o celular, Alicia. — o Iago falou alto.
Ela negou com a cabeça, o olhar nervoso, fugindo pra trás como se procurasse uma saída. Mas não tinha. Os mesmos caras que mais cedo jogaram piadinhas pra mim agora cercavam ela por todos os lados.
— Iago… confia em mim, irmão. — a voz dela tremia. — Tô te dando a minha palavra.
A Manu enxugou as lágrimas com o dorso da mão, soltando uma risada curta, sem humor.
— Que palavra, Alicia? — o tom dela partia o peito. Ela tava muito arrasada — Tu nunca teve palavra garota.
A Alicia tremia dos pés à cabeça.
O Terror, que até então só observava, respirou fundo e colocou as mãos no bolso. Eu juro, se o Iago era frio, aquele homem era mil vezes pior.
— Passa o celular. — ele ordenou, estendendo a mão pra Alicia.
Só que ela não se moveu.
Ele deu dois passos largos, mas antes que chegasse perto, a Manu se colocou na frente dele, o braço esticado como um muro.
Ele a encarou, sem entender. Mas ela só olhava pra filha, como se nada mais existisse ali.
As lágrimas escorriam sem parar pelo rosto dela, sem freio, doloridas, e eu senti o meu peito afundar de tristeza por ver ela assim.
— Me dá teu cinto. — disse pro Terror, mais sem tirar os olhos da Alicia.
As mãos dela tremiam, o rosto já vermelho, e o olhar... cego.”
Terror demorou um segundo, tirou o cinto e entregou sem dizer nada.
A Alicia até tentou correr, mas os caras a seguraram e jogaram seu corpo pra frente.
— Eu tenho uma dívida contigo, Alicia… mas tá na hora da gente acertar as nossas contas. — a voz da Manu, era quase irreconhecível de tanta mágoa que tinha nela.
O primeiro estalo soou alto. Depois outro. E mais outro.
As cintadas desciam sem piedade, cada uma mais forte que a anterior. A menina gritava, chorava, implorava pra parar. E a Manu... a Manu chorava junto com ela, mas não parava.
Foi uma das cenas mais fortes que eu já vi na vida.
O cinto estalava no ar e voltava manchado de sangue.
Ela batia sem mirar, sem pensar, sem se conter. Suas falas eram cheias de raiva e decepção.
A Alicia gritava, se encolhendo no chão, o corpo todo riscado e os olhos apavorados.
— PARA, MÃE! — ela berrava, mas a Manu não ouvia.
Era como se estivesse fora de si.
O cinto escapou da mão dela e foi parar no meio da rua, mas mesmo assim ela não parou.
Partiu pra cima da filha, os punhos fechados, o rosto molhado de lágrimas.
A Alicia tentava se proteger, cobrindo a cabeça, gemendo, chorando e a Manu chorava também, como se cada tapa doesse mais nela do que na própria menina.
Quando parou, ela olhou pras próprias mãos, vermelhas, como se só ali tivesse percebido o que fez
A respiração estava entrecortada, e o olhar… indecifrável.
— Levanta, c*****o. Me encara. Pelo menos uma vez na tua vida, me encara de frente.
A Alicia levantou o rosto devagar.
Os olhos estavam inchados, a boca rasgada, o sangue escorrendo pelo queixo.
Totalmente deformada, achei que ela fosse pedir perdão.
Mas não, ela soltou uma risada alta.
— Quer saber de uma coisa? — ela cuspiu pro lado, limpando a boca com o dorso da mão e soltando um riso curto. — Que se dane todo mundo aqui. Eu quero mais é distância dessa família de merda.
A Manu franziu o rosto, vendo como a filha ainda tinha coragem de falar todas aquelas barbáries.
A Alicia então olhou em volta, passando os olhos por cada um de nós e foi se levantando com dificuldade.