Iago
Tô a mais de meia hora encostado no alto da pedreira, fumando um balão e tentando botar a mente pra respirar, porque se não eu vou explodir. A fumaça sai devagar pelas narinas, sobe e se mistura nesse vento frio que sempre corta aqui de cima do morro, mas nem isso consegue apagar o fogo que eu sinto por dentro.
Minha cabeça não para desde ontem. Era pra ter sido o dia do meu coroa sair daquela jaula, tava tudo certo, mas do nada veio a notícia de que o alvará tinha sido revogado. Mais uma vez fuderam com nós.
Parece até piada, mas não é. Já são mais de vinte anos vivendo nesse inferno e eu não aguento mais ver minha coroa chorando por causa dessa p***a.
Cadeia não prende só o preso, prende a família inteira junto. E o que me mata é ter que conviver com esse peso que nunca sai das minhas costas.
Tá ligado?
Porque se eu não tivesse enchido o saco pra comemorar meu aniversário de sete anos naquela fazenda maldita, talvez nada disso teria acontecido. Eu que insisti, eu que cravei o pé, eu que causei aquela p***a toda.
E é f**a… porque toda vez que eu lembro, sinto um bagulho me queimando por dentro, corroendo, como se fosse um fogo que nunca apaga.
Flashback – 20 anos atrás
Era meu aniversário de sete anos e nós estávamos em Goiás. Lembro de cada detalhe como se fosse hoje: a piscina iluminada refletindo as luzes coloridas que tremiam nos balões amarrados no quintal, a mesa cheia de enfeite, o bolo de chocolate no centro com a vela de número sete acesa em cima, pronta pra eu apagar.
Minha mãe não desgrudava de mim, sorrindo e com o braço na minha cintura.
— Parabéns pra você, nessa data querida… — ela cantava alto, batendo palma, e todo mundo acompanhava na mesma animação. — Muitas felicidades, muitos anos de vida! Viva o Iago! Viva!
Do meu outro lado tava meu pai, com a Alicia no colo, e ela gargalhava sem parar, esticando as mãozinhas pra tentar pegar a chama da vela, enquanto ele ria junto, balançando o corpo no ritmo da música.
Geral sorria, mas eu tava travado, cara fechada, mão suando na beira da mesa. Nunca fui de sorrir, nem criança. Sempre fechadão, emburrado, com dificuldade de mostrar o que sentia.
Então meu pai se abaixou, ficou da minha altura, jogou o braço no meu ombro e sorriu:
— Bate essa foto aí, Cleberson.
O caseiro levantou a câmera, ajustou a lente e mandou:
— X!
Foi a primeira vez no dia inteiro que escapou um sorriso do meu rosto. Mas durou pouco.
Porque logo em seguida a polícia invadiu, e a gritaria engoliu tudo.
— PERDEU, p***a! POLÍCIA! — a voz grossa acabou com a festa, eles entraram já apontando o fuzil.
— Mão na cabeça, c*****o! — outro berrou. — Tua casa caiu, vagabundo!
— Se reagir é bala na frente dos teus filhos!
As vozes interromperam a cantoria, os sorrisos e atrapalharam até a foto. O único som que ficou foi o eco das armas sendo engatilhadas, os gritos deles e o choro desesperado da minha irmãzinha, sendo arrancada dos braços do meu pai.
Eu fiquei atrás do bolo, paralisado, vendo tudo em câmera lenta, sem entender se era real ou pesadelo.
Meu coroa foi preensado contra a parede, e um policial passava a mão nele procurando o ferro que ele nunca levava quando estava com a família. Era regra da dona Manuela e ele sempre respeitava.
Mesmo assim, botaram ele no esculacho: socos, chutes, tapas, cusparada na cara. Mesmo algemado, sem oferecer resistência a prisão e gritando que tava limpo. Mesmo ele pedindo pra deixarem minha mãe em paz, enquanto via eles puxando ela também.
— Calma, c*****o! Eu tô limpo! — ele berrava. — Aqui não tem arma c*****o! Minha mulher não tem envolvimento com nada.
Mas ninguém ouvia. Ou não queria ouvir.
Eles só perguntavam onde tava a droga, onde tava a arma. E ele respondia a mesma coisa o tempo todo.
Até que começaram a arrastar minha mãe pelos braços. Ela olhava pra mim e pra Alicia, as lágrimas escorrendo sem parar pelo seu rosto.
— MÃE! SOLTA ELA, FILHA DA p**a! — desci correndo da cadeira e agarrei nas pernas dela, desesperado.
Um dos policiais me empurrou com força, me jogando de b***a no chão.
— Fica com eles, Cleberson! — ela gritou, chorando, antes de ser levada. — Alicia, mamãe te ama! Iago, tá tudo bem meu filho, a mamãe tá bem! Te amo.
A Alicia berrava, esperneando no colo da mulher do Cleberson, querendo voltar pros braços da dela.
E eu não conseguia acreditar no que tava acontecendo. Meus pais tavam sendo presos na minha frente.
Me levantei do chão e corri até o lado de fora.
E antes da porta traseira da viatura bater, meu coroa me achou no meio da confusão, levantou o rosto e sorriu pra mim. Um sorriso fodido, que nunca saiu da minha mente.
As viaturas arrancaram, a poeira subiu e até o helicóptero sumiu no céu. No auge do desespero eu corri atrás, descalço. Pisando nas pedras da estrada de terra, ignorando o chamado do Cleberson.
— PAAAAI!
— MÃE!
Gritei até doer a garganta, correndo com minhas pernas pequenas até onde elas não aguentaram mais. Quando o ar sumiu, despenquei no chão, engolido pela poeira que ficou no lugar das sirenes.
Em menos de uma hora minha vida tinha desabado. O silêncio era imenso, só aquele vazio me cercando.
Pra justiça, eles eram bandidos perigosos. Pra mim, eram meus pais.
O cara condenado a mais de trinta anos era o mesmo que sentava comigo pra fazer a lição, que inventava história pra eu apagar no sono, que jogava bola comigo no quintal.
E a mulher condenada por associação ao tráfico era minha mãe, que nunca se meteu em p***a nenhuma do que ele fazia.
Depois disso eu e a Alicia fomos jogados em abrigos. Sessenta dias separados. Sem notícia deles. Eu chorava dia e noite naquela p***a, sentindo que merecia. Como se aquela p***a fosse um castigo que eu merecia por ter sido teimoso, mesquinho.
Sessenta dias depois minha tia apareceu e buscou nós dois. Ficamos com ela até minha mãe conseguir a domiciliar, porque tinha filhos pequenos. Dois anos assim, ela presa dentro de casa, mas perto da gente.
Foi f**a, mas passamos.
Quando fiz dezoito, assumi o morro e desde então sou eu e o WL de frente.