Manuela
Eu estava sentada na cama, ouvindo a Ágatha me contar cada detalhe do que tinha acontecido:
— E como ela está? — perguntei, eu precisava da resposta, por pior que fosse.
Ágatha ajeitou o cabelo atrás da orelha e falou devagar.
— Eu acho que ela tá bem… quer dizer, tá machucada, mas ta lá na UPA.
Assenti com a cabeça, sentindo um misto de alívio e revolta. Parte de mim achava pouco ela ter apanhado no meio da rua, outra parte se perguntava onde eu havia errado.
— Tá bom. — murmurei.
Ela me encarou firme.
— Você quer ir lá ver ela? Se quiser, eu vou contigo.
Eu sabia o que a Ágatha queria. Ela queria que eu fosse, até porque uma mãe não abandona um filho nunca. Mas eu não tinha forças, não depois de tudo.
— Não. — respondi de imediato.
— Tá certo. — ela suspirou, respeitando minha decisão.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, até que eu perguntei:
— E o Terror?
— Ele esteve aqui. — ela respondeu sem demora. — Ficou bastante tempo, mas como você não acordava… ele foi embora. Tava muito m*l, Manu. Muito m*l mesmo.
Fechei os olhos por um instante. Era óbvio que ele estaria. Ninguém fica bem depois de ser traído pela própria filha.
Peguei o celular. Liguei pra ele. Nada.
Mandei mensagem. Nada.
Perguntei pro Iago, e ele também não sabia o paradeiro do Terror.
Todo mundo perdido. Mas eu não. Eu conhecia o Bernardo. Eu sabia pra onde ele ia quando o mundo desabava.
Já sei onde tá!
Desci da cama.
— Eu sei onde o Terror está e eu vou atrás dele.
— Manu, fica aqui. — Ágatha levantou a mão, como se quisesse me segurar. — Espera um pouco.
Eu entendi a intenção dela. Queria me proteger, queria que eu respirasse antes de ir. Mas não dava. Eu precisava ver o Bernardo, precisava olhar nos olhos dele.
— Não, Ágatha. — neguei. — Eu preciso falar com o Bernardo. Ele deve estar acabado. Eu tenho que pedir desculpa por ter duvidado dele.
Ela suspirou, visivelmente preocupada.
— Então deixa que eu te levo. — sugeriu com carinho.
— Não. Eu preciso andar um pouco. — cortei, já indo em direção à porta. — Obrigada tá! Te amo.
Saí dali. Andar era a única forma de aliviar a cabeça até encontrar ele.
Segui pelas ruas até parar diante daquela casa da rua 15. A mesma casa onde a gente viveu os melhores e os piores dias, onde a gente se fez e se desfez como casal tantas vezes. O refúgio dele, o cantinho que eu sempre procurei ele quando o mundo tava grande demais pra ele.
Empurrei a porta devagar e lá estava ele, exatamente como imaginei. Sentado no chão, cotovelos apoiados nos joelhos e cabeça baixa. Nem levantou os olhos quando entrei.
Fechei a porta e me aproximei até sentar ao lado dele. O silêncio entre nós dois parecia não ter fim.
— Eu sabia que você tava aqui. — murmurei.
Ele continuou quieto.
Esperei alguns segundos e, sem conseguir mais segurar, desabei:
— Me perdoa por não ter acreditado em você… por ter desconfiado. Eu nunca ia imaginar que a Alicia fosse tão fria, tão sem vergonha, ao ponto de inventar uma coisa dessas. — era difícil conseguir falar tudo aquilo que eu estava sentindo.
As lágrimas escorriam, mas eu continuei:
— Eu não sei onde foi que eu errei. Eu dei tudo pra ela. Amor, cuidado, respeito… nunca faltou nada. E mesmo assim, ela escolheu esse caminho. Se uniu àquela vagabunda pra destruir a nossa família.
Me silenciei, sentindo a dor da traição me consumindo.
— A culpa é minha. — soltei. — Eu falhei como mãe.
Ele ergueu o rosto devagar. Os olhos estavam vermelhos, marejados, mas não caía lágrima.
— Qual foi, Manu? Não entra nessa não, p***a. — rebateu na hora. — Tu segurou essa familia sozinha, foi guerreira pra c*****o. Eu pago o maior p*u pra tu, tá entendendo? Tu é uma mãe maravilhosa.
Ele respirou fundo, encarando dentro dos meus olhos.
— A Alicia é r**m porque quis ser r**m. O caráter dela é esse. Tu não tem culpa de nada.
Aquelas palavras bateram fundo. A raiva dele era grande, mas a decepção era ainda maior.
— Eu só não quero saber mais nada sobre ela. — continuou. — Se tu quiser perdoar, perdoa. Mas eu? Eu não quero olhar pra cara dela nunca mais. Pra mim, acabou.
Ele fechou os punhos, firme:
— De hoje em diante eu só tenho um filho. O Iago. A Alicia morreu pra mim. Se um dia essa peste me pedir um copo d’água, eu viro as costas. Porque ela me traiu, Manuela. Eu podia ter perdido a única coisa boa que eu tenho na vida que era tu.
Abracei ele, encostando minha cabeça no ombro dele. Senti o corpo dele estremecer. Ficamos ali, sem palavras, dividindo a mesma dor.
Eu sempre pensei que eu era forte, que eu aguentava qualquer coisa. Mas não tem força que segure a decepção de ser traída por quem a gente mais ama no mundo.
Por um filho.
Iago
Saí da casa da Natália e meti o pé pra casa do RD pra ver minha coroa. Mas ela ainda tava dormindo e eu não podia ficar esperando, tinha que voltar pro corre que tava rolando antes da Ágatha me soltar a fita da minha mãe.
Uma vez por mês a gente organiza um bagulho na quadra pros moradores: distribuímos cesta básica pra geral e brinquedo pros menor.
O tráfico aqui faz mais que o governo.
Tava lá com os cria, observando a fila enorme, cada morador pegando o que era de direito, quando a Rafaela brotou do meu lado.
— Preciso falar contigo. — largou me encarando.
Continuei na mesma fita, cumprimentando quem passava. Não ia dar moral.
— Depois nós desenrola. — soltei frio, sem olhar muito, mas cravando a visão em cada rosto que recebia as cestas.
— Iago, já tô te chamando pra ir lá em casa faz dois dias e tu não vai. — tentou engrossar, mas a voz dela tremeu no fim. Vi o bandeide na cara dela, e imaginei que ela devia tá querendo caçar outro buraco pra cair.
— Se eu não fui é porque não deu. — falei sério, a cara fechada. — Agora, mete o pé. — lancei o olhar pesado, daquele que corta.
Ela virou as costas e saiu. WL, que tava do lado, deu aquela risadinha debochada, mas eu continuei sério, não dei palco.
— E aí, vai no baile da Rocinha hoje? MC IG vai cantar lá. — ele falou, todo animado, enquanto a Lara tava calada, só observando de canto.
— Não sei, tô decidindo ainda. — respondi, mas meus olhos já tavam nela, e o i****a do Wallace nem percebeu.
Ela sacou que eu tava na intenção e foi se afastando.
— Vai onde? — ele perguntou, desconfiado.
— Comprar um guaraná. Tá quente pra c*****o. — respondeu ajeitando o fuzil nas costas.
— Vai dar perdido em pleno plantão não. — soltei serio, encarando ela.
Ela riu irônica, sem mostrar os dentes, e rebateu:
— Tô ciente do meu serviço, patrão. — e saiu andando.
Fiquei mais um tempo ali, mas depois dei o papo pros menor que ia dar um giro.
Andei pelo meio do povo, cumprimentando, até que bati o olho na Lara dentro do açaí. Fui direto.
— Aí, mina. Manda um açaí puro, sem bagulho nenhum. — pedi pra atendente, que sorriu e correu providenciar.
Me virei e encostei do lado da Lara, parada na porta com o pote cheio de coisa.
— Calor da p***a, né não? — tentei quebrar o gelo.
Ela não disse nada, continuou olhando pra frente.
— c*****o, me negando a voz mesmo? — soltei uma risada curta.
— Por que tu não vai procurar tuas marmitas e me deixa em paz? Eu tô com o Wallace. — falou firme, me tirando um riso de canto.
Me aproximei do ouvido dela, pousando a mão na sua cintura. Senti o corpo dela tremer, e o olhar vacilou pra minha boca. A Lara fica se fazendo de difícil mais é só eu aproximar que ela amolece.
— Bora lá pra casa? — sussurrei.
Quando ela ia responder, o Wallace surgiu do nada. Me afastei rápido, puto.
— Tava te procurando. — disse pra ela, que me olhou rápido antes de responder.
Os dois se beijaram na minha frente, e ela puxou ele de volta pra quadra.
Filha da p**a do c*****o.
— Aqui teu açaí. — a atendente chamou, me entregando o pote.
Peguei, paguei e nem quis. Entreguei pro primeiro moleque que passou na minha frente.
Foi quando meu celular vibrou: notificação do i********:. O cuzão do PM tinha me aceitado. Sorri, mas logo minha visão escureceu.
Quando abri no story e vi a Maria Clara na mesma foto que ele.
— O que essa filha da p**a tá fazendo com esse p*u no cu? — soltei baixo, puto.
Não tavam abraçados, nem juntos. Mas só de tá na mesma foto já me impudia.
Entrei no w******p e mandei logo:
— Tá onde?
Ela demorou pra responder. Só isso já me irritou. A mente começou a viajar: imaginei os dois juntos, ele tocando nela. Em poucos minutos eu já tava surtando.
— Fala, c*****o. Tá onde? — disparei várias chamadas.
Até que ela atendeu, voz de quem tava rindo. Piorou tudo. Já imaginei ela rindo pro PM.
— Tá onde? — perguntei me afastando da muvuca.
— Tô na casa dos meus avós. — a voz dela tinha eco, devia tá num quarto, num banheiro.
— Tô ligado. — soltei tentando controlar a raiva, pra não pagar de maluco igual da outra vez.
— E você, tá onde? — perguntou.
— Tô num evento da igreja. — menti.
Se falasse a parada das cestas básicas, era bem capaz dela querer colar junto.
— Vai demorar a ir pra casa? — perguntei, a mente queimando.
— Não, meu pai já tá querendo ir. — respondeu ainda divertida.
— Quando colar em casa me avisa. — precisava saber a hora que ela saía de lá.
— Tá bom.
— Vai fazer o que hoje à noite? — perguntou.
— Vou ficar em casa… pensando em você. — soltei, jogando charme.
Ela sorriu, e eu ouvi o riso dela antes de desligar.
— Beijo, linda. — me despedi.
— Beijo. — respondeu.
Assim que desligou, meu semblante fechou.
Tava puto. Um ódio sem tamanho. Ver aquele merda no mesmo ambiente que ela me deixou pior do que a treta da Alicia.
Avisei os cria que tava metendo o pé e subi pro desenrolo.
Na moral? Eu ia matar a Natália. Mas pior que ela era a desgraçada da minha irmã, que entregou os bagulho pra ela.
Como meu pai já tinha batido, então eu resolvi dar mais um “carinho” e deixar o resto na mão de Deus. Se Ele quisesse levar, já ia tá na mão dele.
Quando colei lá, a p*****a já tava careca.
Então me adiantou.
Peguei a madeira cravejada de prego enferrujado e desci nela sem dó.
Cinquenta no lombo.
A mina tava toda furada.
Depois, mandei deixarem na porta de casa e fui pra minha base.