Eu estava cansada, o corpo pesado depois da noite que m*l dormi. Arthur dormia no meu colo, a cabecinha dele encaixada no meu ombro. Aquele sono pesado, tranquilo, parecia quase um milagre no meio de tudo que acontecia lá fora.
Fui até a lanchonete para buscar algo rápido café para mim, um suco para ele. Não queria fazer barulho, não queria chamar atenção. Só passar despercebida, como sempre.
Quando empurrei a porta, senti um olhar. Um olhar que não deveria estar ali, ou talvez deveria, mas não para mim. Levantei a cabeça devagar, os olhos ainda meio pesados. Ele estava ali, parado, me olhando com uma mistura de algo que eu não sabia definir: curiosidade, tensão, talvez até um pouco de dúvida.
Não sei quem ele é, mas aquele homem tinha algo diferente. Não era só o uniforme. Era a forma como ele me viu não como a "mulher do Canário", não como só mais uma no meio daquela favela. Foi um olhar que parecia querer entender, querer decifrar.
Meu corpo inteiro estremeceu, mas não por medo. Era um desconforto estranho, como se ele tivesse invadido um espaço que eu nem sabia que existia.
Segurei Arthur mais firme, baixei a cabeça e entrei na lanchonete sem dizer uma palavra. Preferi fingir que nada tinha acontecido.
Os tiros começaram quando eu já estava deitada, tentando acalmar o coração que não queria se acalmar. O barulho ecoava como trovões perto demais, estalando as janelas, fazendo Arthur se mexer no sono. Eu sabia que se ele acordasse, ia ser um caos, medo, choro, angústia. Então eu me mantive imóvel, prendendo a respiração.
Ouvi passos correndo lá fora, vozes gritando ordens que eu não entendia, mas que traziam um frio na espinha. Por um momento, achei que tudo ia explodir, que o mundo ia se partir em dois e eu ia ficar no meio.
Mas o que me doía mais era o silêncio dentro da casa depois dos tiros, o silêncio que parecia gritar que nada nunca vai ser seguro aqui. Que o perigo não está só nas balas, mas na espera pelo próximo disparo.
Eu me encolhi no canto, segurando a mão de Arthur como se pudesse protegê-lo só com isso. Prometi a mim mesma que, aconteça o que acontecer, eu ia manter ele longe disso. Eu ia tentar.
Quando o silêncio voltou, não foi um alívio. Era só uma pausa, uma trégua breve antes da próxima tempestade. O sol nem tinha surgido ainda, e eu já estava de pé, fazendo café, olhando para Arthur dormir com um nó na garganta.
Sabia que Canário tinha sido preso. Que ele estava longe dali, algemado, mas ainda presente nas sombras que cercavam minha vida.
Eu não sentia mais raiva dele só um cansaço profundo. Aquele homem, por mais errado que fosse, era o pai do meu filho. E isso não se desfazia só porque ele tinha ido para a cadeia.
Agora, com ele preso, eu sabia que minha vida ia mudar. Que o perigo ia se aproximar de mim de outra forma. E me perguntava, noite após noite, se alguém ia realmente me deixar em paz, ou se eu também ia virar alvo.
Mas eu precisava ser forte. Por Arthur. Por mim.
E mesmo quando o medo apertava o peito, eu segurava firme a esperança de um dia poder respirar sem olhar por cima do ombro.
No dia seguinte à operação, encontrei a Jaqueline na pracinha perto de casa. O sol já estava alto, mas no meu peito ainda carregava o peso daquela noite, os tiros, os gritos, o medo sufocante.
Ela veio logo me abraçar, como se pudesse puxar um pouco daquela tensão de mim.
- Amiga, que noite foi aquela, hein? A favela parecia um campo de batalha. Você e o Arthur conseguiram dormir com esse barulho todo? - ela perguntou, com aquele jeito dela, cheio de preocupação e força.
Eu respirei fundo, tentando segurar a angústia que ainda borbulhava dentro de mim.
- Dormir? m*l consegui fechar o olho. Arthur chorou um pouco, mas consegui acalmar. Só de pensar que podia ter sido pior, já dá um nó na garganta.
Jaqueline me olhou firme e disse: - - Eu sei... Parece que toda vez que a polícia faz operação, é um risco pra gente. A gente vive com medo, mas não tem pra onde correr.
Eu concordei, lembrando de cada instante daquela madrugada. E então falei o que estava martelando na minha cabeça:
- Agora que prenderam o Canário... Ele é pai do Arthur, mas não o homem que eu queria que ele fosse. Só que, mesmo assim, era alguém importante ali, sabe?
Ela assentiu e, com a voz mais baixa, me alertou:
- Bruna, eu sei que você quer distância dessa vida, mas você precisa tomar cuidado. Quando o cara cai, quem fica no meio da linha de fogo às vezes somos nós.
Foi aí que eu me abri um pouco mais, dizendo o que mais me assustava:
- Já pensei nisso. Tô com medo. Não só dos traficantes, mas da polícia também.
Ela me olhou com os olhos cheios de sinceridade:
- Você já pensou em sair daqui? Ir embora? Eu tô juntando um dinheiro pra tentar um emprego do outro lado da cidade. Às vezes, só sair daqui já muda tudo.
Eu olhei para o Arthur brincando no chão com um pedaço de p*u e disse, com o coração apertado:
- Já pensei sim. Mas aqui é tudo que eu conheço. E pra ele, é a única casa que tem. Se eu pudesse garantir que ele tivesse uma vida diferente, eu ia fazer as malas amanhã mesmo. Só que não é assim simples.
Ela sorriu e me deu um abraço apertado.
- Eu entendo, amiga. Mas saiba que não tá sozinha. E se precisar, a gente corre junto.
Naquele momento, senti que, mesmo no meio desse caos, a amizade era um pouco de luz. Uma promessa de que eu não teria que enfrentar tudo sozinha.
Depois que a Jaqueline foi embora, fiquei sentada olhando o Arthur brincar. As palavras dela ecoavam na minha cabeça
“Você não está sozinha.”
Era uma promessa simples, mas me aqueceu o peito.
Eu queria acreditar que dava pra escapar desse lugar, que dava pra encontrar um caminho diferente. Mas o medo de errar, de arriscar e perder tudo, era um peso enorme. A favela tinha me criado, me ferido e me moldado e também protegia, mesmo que de um jeito torto.
E naquele instante eu percebi que, mesmo querendo distância, eu não podia fugir do que estava por vir.
Enquanto isso, o olhar que ele lançou na lanchonete, aquele olhar de delegado, tinha ficado comigo. Não era um olhar de julgamento, nem de ameaça. Era curioso, atento, diferente.
Era como se, pela primeira vez, alguém estivesse realmente me vendo.
E talvez, só talvez, isso fosse o começo de algo que eu ainda não entendia.