CAPÍTULO 7

1191 Palavras
Estava revisando uma denúncia anônima sobre uma boca de fumo disfarçada de quitinete quando o celular tocou. **Ayla.** Atendi no segundo toque. - Oi. - Hoje às quatro. A visita do apartamento. Achei justo perguntar se você quer estar presente. Afinal, o imóvel é seu. Pensei por um segundo. Quase recusei. Tava atolado de trabalho e o assunto era pequeno demais perto dos nomes que eu andava perseguindo. Mas a voz da Ayla veio com um leve desafio: - Você deveria conhecer a mulher por quem decidiu abrir mão de contrato, fiador e aluguel cheio. Ela tinha razão. Mesmo que não soubesse disso. - Tá. Eu vou. **Laranjeiras. 16h10.** Cheguei primeiro. A faxina já tinha sido feita. O lugar tava simples, mas limpo. Luz natural invadindo a sala, cheiro de desinfetante e promessa de recomeço. E então, ela entrou. Bruna. Com a criança no colo, ainda com as bochechas meio pálidas. Os dois com roupas modestas, mas bem cuidados. O menino dormia no ombro dela como quem finalmente descansava de verdade. Por um instante, tudo em mim parou. Ela olhou pra mim com surpresa. Os olhos se estreitaram, como se algo nela também começasse a se lembrar. E ali, em pé no meio da sala, minha cabeça embaralhou. **O baile.** O olhar firme. A discussão. O orgulho. A dança antes disso, o corpo dela se movendo com naturalidade selvagem, e a raiva depois como um estalo. Mas não era só isso. **A favela.** No dia da invasão, na porta da lanchonete. Ela, com o menino no colo, exatamente como agora. Um segundo de distração entre correr e revistar. Lembrei da sensação incômoda que tive. O rosto dela me marcou naquela noite e eu nem sabia por quê. Agora eu sabia. Me aproximei devagar, e foi quando vi. No braço esquerdo, bem perto do ombro, uma tatuagem desbotada, m*l feita, mas visível. **“Canário.”** A letra cursiva, pequena. Marcada na pele como um pertencimento antigo. Um gosto amargo subiu pela garganta. Ela era ligada a ele. Companheira. Possível testemunha. Peça-chave. Meus olhos voltaram pro rosto dela. Mas agora não era só desejo. Era instinto de delegado. Era intuição. Era confusão. Bruna, a mulher que vinha povoando meus pensamentos, minhas noites. Bruna, a mulher do baile. Bruna, a mãe da criança internada. Bruna… ex do Canário. Que merda! Ela continuava me olhando. Talvez reconhecendo mais do que devia. Talvez sentindo que eu também já não sabia em qual papel devia atuar. O homem? O delegado? O homem que não consegue esquecer? Ou o delegado que não pode se envolver? Ela ajeitou Arthur no colo e falou primeiro: - Então… o apartamento é seu. Só consegui responder com a verdade, crua e involuntária: - Você… tem me tirado o sono. O silêncio entre nós não foi desconfortável. Foi como o ar antes da tempestade. E eu sabia, no fundo, que aquilo ali… Não era o fim da confusão. Era só o começo. Ayla passou os olhos entre mim e Bruna, franzindo levemente a testa. Arthur ainda dormia no colo dela, mas a tensão no ar era nítida. - Peraí… vocês já se conhecem? Bruna respondeu antes de mim, sem tirar os olhos de mim: - Nos vimos uma vez. Rapidamente. Ayla olhou pra mim. Eu só dei de ombros, mas meu maxilar travado me entregava. Bruna então passou devagar pelo corredor estreito, observando o apartamento. Parou diante da janela da sala e disse: - Aqui e lindo. Simples e aconchegante. Pausa. - Aqui, estaremos seguros filho! Ela falava com a voz baixa, mas carregada. Cada palavra tinha peso. Ela sabia usar o silêncio como parte da fala. Quando Ayla saiu momentaneamente pra atender uma ligação no corredor, Bruna virou-se para mim. Encostou Arthur no ombro e cruzou o olhar com o meu. - Agora sem plateia, podemos falar de verdade? Cruzei os braços. - Você sempre fala desse jeito? Como se o mundo te devesse respostas? - E você? Sempre age como se ninguém tivesse o direito de encostar no que é seu? Respirei fundo. - Você foi petulante naquela noite. - E você foi ridículo. O tom dela era calmo. Quase frio. - Acha que porque usa uma arma na cintura, todas as mulheres vão abaixar a cabeça? - Eu só quis te proteger. - rebati, a voz já num tom mais duro. - Não pedi. Ela caminhou até a pia da cozinha, ajeitou Arthur no braço e voltou, parando diante de mim. - Você não sabe lidar quando não tem controle. É isso. Frágil. Essa palavra… me atravessou. - Cuidado com o que você diz. Ela arqueou uma sobrancelha. - Por quê? Vai me prender por dizer o que todo mundo já percebe? Você é um homem cheio de armadura… mas que se desmonta todo quando é contrariado. O sangue subiu. Mas no fundo, ela tinha tocado num ponto que eu escondia até de mim mesmo. A mulher do baile agora estava aqui, diante de mim, com o filho no colo, os olhos firmes e a boca jogando verdades como quem sempre venceu na guerra do caos. E mesmo com toda raiva, toda irritação... Eu não conseguia tirar os olhos dela. E ela sabia disso. Fechei a porta do apartamento assim que ela saiu com Ayla. O silêncio me invadiu com força. Como se o vazio do cômodo ecoasse tudo o que eu não consegui dizer. Ela estava ali. De verdade. Bruna. O nome agora tinha corpo, tatuagem, história e uma poŕra de presença que me desmontava. Passei as mãos no rosto, andei até a janela e encostei a testa no vidro. Eu devia me afastar. Devia olhar pra ela como qualquer outra peça num tabuleiro criminal. Mulher do Canário. Testemunha possível. Com tatuagem no braço que gritava tudo o que ela fingia esconder. Mas então… por que eu não conseguia pensar em mais nada além do jeito como ela me olhou? Não era medo. Era raiva contida. Era poder na ponta da língua. E quando ela disse que eu era *frágil*… eu quis apertar o pulso dela, empurrar contra a parede, beijá-la com força e mostrar que não era. Não pela força. Mas porque eu precisava provar pra mim mesmo que ainda controlava alguma coisa. E eu não controlava mais p***a nenhuma. Desde aquele baile, o rosto dela me visita à noite. A boca, o corpo, o modo como ela dançava como se ninguém tivesse o direito de comandá-la. E agora, com o filho no colo, mesmo machucada por tudo que a vida jogou no caminho, ela ainda mantinha a coluna reta. Forte. Linda de um jeito que incomoda. E isso me irrita. Porque mulheres assim são veneno pra homens como eu. Ela carrega o nome de um criminoso no braço, e mesmo assim, meu corpo inteiro responde quando ela fala. Não posso me envolver. Ela é o tipo de mulher que pode destruir minha carreira. Minha reputação. Minha sanidade. Mas se ela me pedisse pra ficar… se ela me olhasse um segundo a mais… eu largava tudo. Tudo. E esse é o problema. Não é só desejo. É obsessão. E isso vindo de mim é perigoso demais.
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