Capítulo 1

1750 Palavras
Caveira narrando Eu conquistei meu império na sujeira, derramando sangue, lágrima e dor nos meus inimigos, não foi sorte, não foi herança, não foi amizade. Foi na guerra. Eu era um ninguém, igual o Toco costumava falar quando eu trampava de vapor. Mas foi o ninguém aqui que pegou ele sozinho. E não, não foi na covardia. Foi cara a cara. Eu queria mandar ele pro inferno olhando dentro dos olhos. Queria que ele visse quem era o nada que ia sentar na cadeira que ele se gabava todo dia. E já faz oito anos que tô aqui. Oito anos no trono. Muitos tentaram me derrubar… falharam. O que encontraram? A morte. O sol começa a nascer no horizonte, clareando o morro. Levanto da cama, corpo cansado, mas a mente afiada. Tomo um banho gelado pra acordar. A água escorrendo sobre os cortes que ainda tão cicatrizando no meu braço me lembra de onde vim. Lembro que eu não posso vacilar nunca. Término, visto a calça preta e a camisa larga. Cinto, pistola na cintura, corrente no pescoço. No espelho, só enxergo o Caveira. Não existe mais o Diego aquele moleque. Só existe o Dono. Boto a chave no bolso, desço a escada e ligo minha moto. O motor ronca alto, assustando os cachorros na viela. Eu gosto disso, gosto do barulho. É como se o mundo soubesse que eu tô passando. O caminho até a boca é rápido. O movimento já tá na pista, vapor correndo com baseado, rádio chiando, aviãozinho gritando “olha a boa!”. O cheiro da maconha e do pó no ar é sinal que o caixa tá virando. Chego e já vejo o Mostro sentado, conferindo o caderno de devedor. Ele sempre com aquela cara fechada, igual bicho que não confia em ninguém. — Fala, Mostro. — Encosto no balcão. Ele fecha o caderno devagar, me olha com calma. — Tem merda na pista, chefe. — Qual delas? — respondo rindo. — O engomadinho da Zona Sul. Três dias atrasado. Cem mil. Dou uma risada alta. — Cem mil? Esse filho da p**a tá pensando que engana quem? — passo a mão no meu rosto. — Hoje essa cobrança é minha. Vou ensinar a esse playboy de merda que não se faz de o****o um homem como eu. Mostro sorri de canto, já entendendo. — Quer que eu leve quem? — Chama dois vapores. Hoje a gente vai buscar duas almas. Descemos o morro em comboio, eu na frente na moto, Mostro e os moleques atrás no carro. A pista tá tranquila, asfalto liso, prédios ricos surgindo no horizonte. A favela ficando pequena no retrovisor. — Olha aí, chefe. — Mostro aponta quando a mansão aparece. — O cara acha que tá blindado atrás dessas paredes branquinhas. Dou uma risada debochada. — Hoje ele vai descobrir que muro nenhum segura a morte. Tiro a arma da cintura. Sem enrolar, já meto o pé na porta. O barulho ecoa pelo salão. — A COBRANÇA CHEGOU! — minha voz retumba como trovão. Da cozinha, sai um cara de bermuda cara, camisa social amarrotada, e uma v***a agarrada nele. O medo já estampado na cara dele. — C-caveira… calma… eu vou te pagar… — ele gagueja. — Vai me pagar agora. — Aponto a pistola na testa dele. A mulher treme, se esconde atrás dele. Ele tenta explicar, falando que logo vai receber o dinheiro, mas que no momento não tem. — Não tem? — aproximo o cano da pistola da cabeça dele. — Então tu tá me chamando de palhaço? De repente, a voz de um dos vapores me chama: — Chefe, olha isso aqui… Ele me mostra uma foto numa moldura. Uma garota. Bonita, olhar puro. Algo estranho me percorre. Um arrepio. — Quem é? — pergunto, fixando os olhos no engomado. Ele engole seco. — Minha filha. Lisandra. Olho de novo a foto. Tem algo nela que me prende. O cara percebe o interesse nos meus olhos e tenta se aproveitar. — Se… se você quiser… pode ficar com ela como parte do pagamento. — Ele fala rápido, desesperado. A mulher dele, complementa: — Ela é prendada… e virgem. Dou uma risada seca, debochada. — Virgem? Nessa p***a de mundo ninguém é mais virgem. Mas a garota… essa eu gostei. Então é assim: vou ficar com ela. Aperto os olhos sobre eles. — Onde ela tá? A mulher responde, com a voz trêmula: — Logo, logo ela chega da faculdade… Sento no sofá, cruzo a perna, arma descansando no braço da poltrona. — Então vou esperar. Se ela não aparecer… — faço o gesto de um tiro na cabeça. — Vocês já sabem. O tempo passa. O relógio marca mais de uma hora. Eu já começo a perder a paciência. E então a porta se abre. Lisandra entra, mochila no ombro, cabelo preso, o olhar inocente que não combina com esse inferno. Ela percebe o clima estranho na sala. Sente que algo tá errado. — O que tá acontecendo? Quando me encara, seus olhos se arregalam, quando ela descobre que agora me pertence ela tenta correr, mas ninguém foge de mim. Eu seguro ela. E o Mostro traz um lenço com clorofórmio tapa sua boca e nariz. Ela se debate, chuta, tenta gritar. Mas os movimentos vão ficando fracos. A última coisa que ela ouve antes de apagar é minha voz, sussurrando no ouvido dela: — Dorme, princesa. A partir de agora… teu inferno só tá começando. Olho pro Rogerio, que tá branco, quase desmaiando. — Quinze dias. — Digo frio. — Quinze dias pra me pagar o resto. Se não… nem adianta tentar se esconder. Eu te acho, nem que seja no inferno. Saio dali, carregando a garota desacordada. O silêncio mortal da mansão fica pra trás. Na rua, o Mostro vai para a minha moto e eu vou no carro. Lisandra no meu colo, caída, entregue. E eu só penso: o destino acabou de me dar um presente. E eu não costumo devolver nada. Assim que cheguei no morro, já sabia o que ia fazer. Não entreguei a garota pra ninguém, não deixei Mostro nem os vapores encostar nela. Essa cobrança era minha, e o prêmio também. Levei direto pra minha casa, parte de baixo, onde eu guardo o que é só meu. Abri a porta do quarto escuro, joguei ela na cama de ferro e amarrei as mãos dela na cabeceira. Não precisei de muito esforço. Já tava apagada pelo clorofórmio, corpo leve demais pra quem acha que vive no paraíso da Zona Sul. Sentei na poltrona, acendi um cigarro e fiquei só observando. O quarto era iluminado por uma lâmpada fraca, balançando devagar no teto, fazendo sombra nas paredes. A cena parecia saída de um pesadelo. Só que esse pesadelo era real. Demorou, mas ela começou a se mexer. Primeiro os dedos, depois a cabeça. Os olhos abriram devagar, confusos, marejados. Ela respirava rápido, tentando entender onde tava. Levantei, dei uma tragada funda e falei, minha voz grave quebrando o silêncio: — Bem-vinda ao inferno, princesa. Ela arregalou os olhos, puxando as cordas como se tivesse força pra se soltar. Não tinha. A respiração disparou, o peito subindo e descendo como se o ar tivesse faltando. — Onde… onde eu tô? — a voz dela saiu trêmula, fina, mas eu ouvi cada sílaba. — Tá na minha casa. — soltei a fumaça devagar no ar. — E daqui ninguém tira você. Ela engoliu seco, mordeu o lábio, tentando segurar o choro. Mas lágrima sempre escapa quando o medo aperta mais que a coragem. — Por favor… me deixa ir… — tentou negociar, quase sem voz. Eu ri. Uma risada seca, debochada, que ecoou no quarto e fez ela estremecer. — Teu pai já me deu o que eu queria. Agora você é parte da dívida. Ela arregalou mais os olhos, como se não tivesse acreditando. Como se ainda pensasse que tudo era um pesadelo. Dei dois passos pra frente, cheguei perto da cama. Ela tentou se afastar, mas não tinha pra onde. Segurei o queixo dela com firmeza, obrigando-a a me encarar. — Olha bem pra mim. — falei baixo, firme. — Aqui não existe polícia, não existe faculdade, não existe conto de fadas. Só existe Caveira. E eu vou ser a última coisa que tu vai ver antes de dormir e a primeira quando acordar. Ela fechou os olhos, as lágrimas escorrendo. — Eu não mereço isso… — sussurrou, quase implorando. Soltei o rosto dela e dei um passo pra trás. Cruzei os braços, só observando. Eu sempre gostei desse jogo. A bala mata rápido, mas o psicológico… o psicológico corrói devagar, mata a cada minuto. — Por que eu? — ela perguntou, a voz falhando. — Você podia ter levado dinheiro, carro, qualquer coisa… por que eu? Olhei fundo nos olhos dela e respondi sem pressa: — Porque quando eu vi tua foto, eu soube que você ia ser minha. Ela tremeu, mas mesmo assim tentou mostrar coragem. — Eu não sou tua… nunca vou ser. Andei até a janela, puxei a cortina. O morro respirava lá fora: barulho de moto, avião gritando, funk estourado no rádio. Um mundo que ela nunca imaginou de verdade. — Olha lá fora, Lisandra. — Apontei. — Esse é o lugar onde eu mandei e matei. Teu pai vive na Zona Sul, achando que tá blindado. Mas aqui, quem manda sou eu. Tu tá do lado errado da cidade agora. E ninguém vem te buscar. Ela virou o rosto, chorando mais forte, soluçando. Voltei até a cama, sentei na beira, passei a mão no cabelo dela devagar. Ela fechou os olhos, tentando se afastar, mas não tinha como. — Tu tem cheiro de coisa limpa, de vida boa. — Murmurei no ouvido dela. — Aqui, esse cheiro não dura. Ela virou o rosto, engolindo o choro, e cuspiu as palavras com raiva: — Eu vou odiar você pro resto da minha vida. Ri de novo, sem me abalar. — O ódio é só uma forma de atenção. E atenção é tudo que eu quero de você. Me levantei, fui até a porta. Antes de sair, olhei de novo pra ela, ainda tremendo na cama. — Se acostuma, Lisandra. O morro engole quem cai nele. E você caiu direto nos meus braços. Fechei a porta atrás de mim. O som do choro abafado dela ficou preso dentro do quarto. E eu sabia: aquela garota ainda ia aprender o peso de ser minha.
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