A Pontinha do Véu

1161 Palavras
Bruno Camila estava linda. Sempre estava,vestido azul claro, sorriso impecável, jeito doce. Ela fazia tudo certo — cuidava de Maria com paciência, me olhava com carinho, mantinha a casa viva com flores e bolo de cenoura com calda de chocolate. Tudo certo. Tudo certo demais, e mesmo assim, eu sentia que estava afundando, desde aquela noite em que beijei Milena ou melhor, em que me entreguei àquilo, nada voltara ao lugar. O toque dela, o gosto, a maldita lembrança... tudo grudava em mim feito cola. Eu tentava focar em Camila. Tentava ser presente. Ser justo. Mas bastava um olhar mais demorado de Maria, uma pergunta boba demais, e tudo desmoronava, hoje, por exemplo, depois do almoço de domingo, ela veio até mim no quarto, com os pés pequenos descalços e os olhos grandes, pensativos. —" Pai..." — "Oi, minha flor." — "Por que a mamãe mora sozinha?" Engoli em seco. — "Ué... porque... às vezes, os adultos não moram juntos, mesmo se gostam um do outro." — "Mas você gosta da mamãe?" — Ela perguntou com aquela inocência cortante,sorri, tentando esconder o caos interno. — "Gosto, sim. Muito." — "E da tia Camila?" Demorei a responder. E só isso bastou para que ela percebesse. — "Você gosta mais da mamãe, né?" — disse Maria, séria,antes que eu pudesse responder, Camila apareceu no corredor. Ela ouviu. Eu vi, o sorriso dela vacilou. Durou meio segundo. Mas vi Camila, ela estava observando tudo. Sempre. Cada palavra, cada toque, cada silêncio entre pai e filha. Cada vez que Maria mencionava Milena, ela cravava as unhas na palma da mão, Narrador Naquela noite, sozinha no apartamente, Camila passou os dedos por cima da foto emoldurada que tinha com Bruno e Maria. Era do aniversário da menina, ela usava um vestido rosa e estava no colo do pai ,Camila ao lado, sorrindo,mas na verdade, ela não estava ali. Nunca esteve, de verdade. Maria olhava para ela com gratidão, mas não com amor. Bruno a beijava na testa, mas não com paixão, era como se Milena ainda vivesse ali. Invisível. Ocupando espaço no sofá, na cama, no coração dele. “Essa mulher precisa desaparecer,” sussurrou, encarando o reflexo no espelho com um sorriso que não alcançava os olhos. Camila se levantou e pegou a pasta onde vinha guardando cópias das fotos antigas. As que ela encontrou na casa de Bruno, quando ele deixou a caixa com coisas do passado aberta por engano. Aquelas de Milena com Gustavo, sorrindo. Cenas felizes demais. Ela tinha mais agora. Fotos novas. Algumas feitas de longe. Milena com Rodrigo. Rindo. Se tocando no ombro. Uma até deles saindo juntos de um restaurante. Camila pegou uma envelope. Enfiou tudo ali dentro. Destinatário: Bruno Souza. Sem remetente. — Bruno Recebi uma carta, as fotos dentro pareciam punhais. Milena e Rodrigo. Juntos. Sempre juntos,mas o pior não era isso,era o bilhete anônimo, digitado, com letras frias: “Ela não mudou. Ainda está te traindo, como sempre. Você nunca foi o único.” Algo dentro de mim gritou,não pela raiva da traição. Mas pelo medo de estar amando alguém que eu já não conseguia confiar. E pior ainda,pelo receio de que Camila soubesse mais do que demonstrava. Narrador Maria sentia o ar pesado entre os adultos. Mesmo quando sorriam, mesmo quando disfarçavam,uma noite, ao se deitar na casa da mãe, ela disse baixinho: — "Mamãe… a tia Camila não gosta de você." Milena acariciou seus cabelos. — "Por que acha isso, meu amor?" — "Porque ela me pergunta sempre se você me faz feliz. E ontem, quando eu disse que sim, ela ficou com cara de choro." Milena olhou para o teto escuro. Não respondeu. Apenas abraçou a filha com força, Narrado por Camila Eles me subestimam,sempre me subestimam, a doce Camila. A boazinha. A namorada compreensiva. A que leva bolinhos para a filha do namorado, que sorri quando a ex aparece, que diz “não tem problema, amor, eu entendo” quando Bruno passa as noites com Milena por causa da Maria,mas eles esquecem que eu observo tudo. Cada gesto. Cada mentira disfarçada de gentileza. Milena ela é o problema. Sempre foi. Uma mulher que ressuscita dos mortos e é recebida com abraços e compaixão. Uma mulher que fez Bruno sangrar por dentro durante cinco anos e, agora, volta como se nada tivesse acontecido, e pior está ganhando Maria. Não, isso eu não vou permitir, eu amo aquela menina. Eu a ensinei a fazer trança, a pintar as unhas, a fazer cartinha pro coelhinho da Páscoa. Eu a busquei na escola quando Bruno não podia, cuidei da febre dela quando a mãe estava “ocupada demais”, presa em seus segredos e no tal advogado Rodrigo, eu me fiz presente. E presença cria raízes,mas ultimamente... Maria anda diferente. Menos carinhosa. Mais hesitante,eu sei por quê, Milena está tentando me apagar,ela quer me tirar como quem apaga um nome num papel com uma borracha nova,não vai conseguir,hoje à tarde, quando fui buscar Maria na escola, ela estava desenhando no pátio. Aproximei devagar. — "Que desenho lindo, meu amor. É você e o papai?" — "É a mamãe, o papai e eu" — ela respondeu sem nem me olhar,respirei fundo. Sorri. — "E a tia Camila?" Ela hesitou. Fez uma nuvem no canto da folha. — "Você tá aqui, ó. Numa nuvem. Voando." Doce. Mas doeu. No carro, depois, coloquei uma música baixinha e perguntei: — "Você acha que sua mãe é mais legal que eu?" Ela deu de ombros. — "Às vezes sim. Às vezes você." — 'É que..." — falei com uma tristeza bem calculada na voz — "às vezes eu sinto que você gosta mais dela. E isso me deixa triste." Vi seus olhos ficarem grandes. Funcionou. — "Não fica triste, tia Cami... eu gosto muito de você também..." Toquei sua mãozinha e sorri. — "Eu sei, meu amor. Só não esquece da tia, tá bom? Porque a mamãe teve muito tempo com você, mas eu estive aqui quando ela não pôde." Vi a culpa se instalar. Uma semente plantada. Agora era hora de regar o jardim, a noite, Bruno me mandou uma mensagem. “Vou levar Maria pra dormir com a Milena hoje.” Respondi com o emoji de coração, mas por dentro, tremi de ódio. Peguei uma taça de vinho. Olhei as fotos que tirei de Rodrigo e Milena. Ela rindo como se estivesse apaixonada. Uma v***a dissimulada,eu podia mostrar tudo aquilo ao Bruno agora,mas não,era cedo demais,Bruno ainda estava me testando. Ainda em cima do muro e eu…eu sou paciente,amanhã, vou fazer panquecas para Maria,depois, vou chorar baixinho no quarto, quando ela me ver, para que me abrace,Bruno vai entrar e me encontrar assim vulnerável, dedicada, amando a filha que não é minha,e ele vai lembrar de por que me escolheu ou pelo menos, por que pensa que me escolheu, averdade? eu já estou dentro deles e ninguém me tira de onde eu plantei meu nome.
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