Milena
Curitiba/ duas semans depois
A cidade tinha o mesmo cheiro de antes chuva ácida e memórias podres, fazia frio, ou talvez fosse só dentro de mim, desci do carro com o capuz sobre o rosto, os óculos escuros encobrindo qualquer pista, Thiago fez o caminho mais longo, cortando por estradas pequenas, fugindo de olhos demais.
— “Você quer ver ela agora?”
— “Não, quero vê-la sem ser vista primeiro.” — Naquela manhã, o vento cortava como faca, mas eu estava quente por dentro.
Inflamada, tensa, nosso carro parou em frente ao colégio, era hora do intervalo Maria estava la entada no pátio, de costas para mim, o cabelo escuro, bagunçado, o jeito de franzir a testa, porem mais reservada,timida no olhar, ela parecia acuada por dois meninos mais velhos, mas se manteve firme, senti um nó na garganta, um tremor nos dedos, queria correr até ela, queria abraçá-la, queria ouvir sua voz, mas não podia, ainda era cedo demais.
— “Ela parece com você.” — sussurrou Thiago.
— “Não, ela é melhor.” — Ficamos só alguns minutos , o suficiente pra me devastar. o suficiente pra me fortalecer, eu precisava ver mais, saber mais, Thiago me levou para uma casa no bairro Pilarzinho, modesta, escondida, mas equipada.
— “Aqui você pode ser quem quiser, mas por enquanto…seja ninguém.”
Nas primeiras semanas, fui só silêncio, vigia, sombra, passei a frequentar uma cafeteria em frente a antga academia o onde Bruno costumava treinar, ele ainda ia lá às vezes, mas agora com o olhar cansado, as mãos mais lentas, ele parecia mais velho, e mais… vazio, numa noite, quase cruzei o portão da casa dele, mas então vi Rodrigo sair de lá, ele estava diferente, menos ingênuo, mais atento, ele ainda me procurava, inda me buscava o mundo seguiu sem mim, mas eu ainda doía neles,apos encontrar Thiago,eu desapareci ate para Rodrigo,não deixamos pistas; passei a reunir informações, pessoas,contatos antigos voltaram como vultos, alguns ajoelharam quando viram que eu ainda estava viva, outros… tremeram e então veio a notícia,Gustavo estava em Curitiba, mas ele estava pocurando por uma mulher chamada Julieta, naquela noite, queimei todas as roupas floridas que usava no Chile, me olhei no espelho com o corpo nu, as cicatrizes ainda estavam ali, mas agora, havia um brilho diferente,é não era só referente a cor dos meus cabelos,muito menos no tom mais claro dos meus olhos,anda não sei explicar,mais algo dentre de mim, pulsa igual, quando uma criança aguarda anciosamente pela manha de natal,curiosa para descobrir o seu presente, a Julieta fez isso ,ela trouxe de volta a alegria da Milena criança. “Julieta não morreu,mas trouxe a verdadeira Milena de volta.”
No porão da nova casa, montei um pequeno arsenal,Thiago trouxe arquivos, fotos, pistas, Gustavo se infiltrava de novo, queria me refazer, de refém, mas agora, eu tinha algo que ele não, paciência, no escuro da madrugada, sentei na cama com o celular de um novo chip, fiquei olhando para um único nome salvo ali "Bruno" o polegar tremeu sobre a tela,mas não chamei, não ainda.
Na manhã seguinte, fui até a escola novamente, desta vez, Maria me viu de relance, nossos olhos se cruzaram, ela franziu a testa, deu dois passos, e então alguém a chamou, ela virou o rosto e seguiu, mas naquele instante, eu soube ela sentiu, ela sabe, ela não lembra de mim, mas algo nela me reconheceu, o mundo ainda não sabe, Bruno não imagina, Rodrigo só desconfia,mas a Soberana está de volta, e quando eu falar…vai ser com pólvora, com sangue, e com a verdade.
Narrado por Bruno
A primeira coisa que aprendi sendo pai…é que o silêncio de uma criança às vezes grita mais alto que o choro, Maria tinha essa mania de engolir o mundo com os olhos,mas quando algo a incomodava ela apertava os lábios, e ficava calada, hoje, quando ela entrou no carro depois da aula, fez exatamente isso.
— “Tudo bem, pequena?”
— “Uhum.”— Mentira, dirigi em silêncio por uns três quarteirões, então olhei pelo retrovisor.
— “Te incomodaram na escola?”
— “Não.”
— “Fez alguma prova difícil?”
— “Não.”
— “Então o que foi?” —Ela demorou, mordeu o lábio, suspirou.
— “Papai… você acha que fantasmas podem voltar?” —Aquilo gelou minha espinha, parei o carro num sinal e virei o rosto pra ela.
— “Como assim, filha?”
— “É que tem uma moça,eu vejo ela às vezes, ela fica parada, do outro lado da rua,ou me olhando no pátio,ela nunca fala nada.”
— “Uma funcionária?”
— “Não, ela não usa crachá,ela só… aparece.” —Tentei manter o tom calmo.
— “E como ela é?”
— “Linda.” — ela disse, sorrindo de leve.
— “Tem o cabelo na altura do ombro, sabe? com as pontas cor de ouro queimado,os olhos,são como mel,mas não o mel claro,é mais escuro,quase âmbar, ela me olha como se me conhecesse,como se quisesse chorar,mas sorrisse com os olhos.”
Meu coração travou por um instante,aquela descrição…era Milena,mas não podia ser,ela estava morta,eu a segurei sem vida nos braços.
— “Você chegou a conversar com ela, filha?”
— “Não,mas às vezes…eu sinto que já conheço ela de algum lugar,mas não sei de onde”
Ela olhou pela janela, distraída.
— “Você vai brigar comigo?”
— “Claro que não,mas se ela aparecer de novo, você me avisa, ok? e nunca… nunca se aproxime de ninguém estranho,mesmo que pareça legal, mesmo que sorria, entendido?” — Maria assentiu,o resto do caminho foi silêncio,mas não do confortável,do tipo que lateja dentro do crânio,meus pensamentos foram longe…para o dia em que enterrei Milena,ou melhor, o dia em que a vi sangrar, parada, imóvel...mas nunca vi o corpo ser enterrado,nunca vi caixão,nem funeral, a surra que levei naquela noite me apagou antes disso, e quando acordei, ela já tinha sumido, e se…?
Chegando em casa, Maria foi pro quarto e colocou música, eu desci até o porão,onde guardo coisas que nunca mostrei a ela,fotos,cartas,relatórios, fragmentos de Milena, do que fomos, e do que não deu pra ser,peguei uma imagem,uma foto que ela avia enviado para minha irmão anos atras,e eu peguei,ela sorria,olhos ambar,cabelo longo com as pontas douradas,a foto tinha olhar como Maria descreveu,senti algo no estômago,uma angústia que fazia cócegas na alma,voltei pra cima,Maria estava desenhando,uma mulher, a figura tinha o cabelo dourado,os olhos âmbar,e um sorriso no canto dos lábios.
— “Quem é essa, filha?”
— “Ela.”
— “Ela quem?”
— “A moça,do pátio,do outro lado da rua.” — Engoli em seco.
— “Você deu nome pra ela?”
— “Não,mas quando penso nela…me vem uma palavra ,Calma.”
Era isso,o mesmo efeito que Milena tinha,mesmo quando tudo pegava fogo, ela tinha um silêncio que hipnotizava,fui até a janela,olhei a rua,nada,mas eu sentia,estávamos sendo observados,não por um inimigo,mas por alguém… que tinha voltado do inferno e não sabia como bater na porta,peguei o celular,abri a pasta com os velhos contatos, Thiago estava inativo há dois anos,desaparecido,mas se ela estivesse viva…ele seria o único a saber,e agora, minha filha via uma sombra de olhos âmbar todos os dias,coincidência? não,era Milenam,de algum modo…de alguma forma…era ela, e se ela voltou, tinha um motivo,só me restava descobrir…se ela ainda era minha Milenao,ou um reflexo distorcido do que sobrou dela.