Nathan não teve palavras para expressar a enorme surpresa pelo que seu pai revelara. Seu corpo paralisou mediante aquelas palavras. Seu pai parecia um homem tão forte e saudável.
Julian ficou em silêncio por um tempo, igualmente chocado e surpreso. Ninguém esperava.
— Não façam perguntas, não me olhem com pena ou como se eu fosse morrer amanhã. É apenas um período difícil. E preciso que vocês me ajudem a passar por isso. Assumam a empresa e toquem os negócios enquanto me cuido. Ficarei um tempo em casa, me submetendo a tratamentos. Dentro de poucos meses devo estar recuperado. Para todos os efeitos, estou tirando umas férias prolongadas.
— Mas pai...
— Julian, o que quer que vá dizer, que não incluía um o que o senhor tem ou por quanto tempo. Isso, apenas o tempo vai dizer. Não os quero preocupados. Cuidem de suas vidas e da empresa que, consequentemente, serão de vocês um dia. Estamos acertados?
Julian e Nathan se olharam. Seu pai falara do assunto como se tivesse fechando mais um contrato e não era exatamente assim que devia lidar com uma doença grave. Deixando-os totalmente no escuro, como se não importasse nem um pouco os sentimentos que os dois tinham. Eles tinham o direito de saber, como filhos, como seres humanos que o amam, como pessoas se importam e se preocupam, eles deviam saber. E tirar esse direito, era como tirar sua única chance de se proteger contra o inimigo. Seja ele mortal ou não.
Nathan encostou o corpo na poltrona, tomou o restante do whisky em seu copo e tratou de superar o fato de que seu pai doente preferia esconder os detalhes de sua doença por puro orgulho e machismo. Não que ele também não fizesse o mesmo no lugar dele.
Julian passou a mão pelo cabelo, olhou para as chamas dançando em um ritmo quase tão lento aos seus olhos que ele podia ver os movimentos suaves e intensos. Seu pai não podia negar-lhe aquela informação, como se fosse uma coisa natural, corriqueira, ou como se lidassem com completos estranhos. Ele sentia-se terrivelmente deslocado com aquele pedido. Mas não podia fazer nada, além de concordar. Ele era o responsável por própria sua vida e tomava suas decisões, quem seria Julian para impedir o pai de fazer o que bem entendesse?
Com um suspiro, ele assentiu, devagar e quase imperceptível. Os olhos de Davin encararam Nathan.
— Quem vai assumir a presidência?
— Você, obviamente, junto com seu irmão.
— Com o Julian? Ele não sabe quase nada da empresa.
— Vai se atualizar. E o Julian pode fazer a gestão e o Marketing junto. Algum problema Julian?
— O senhor é quem manda.
— Ótimo. Gosto assim. Mais alguma coisa Nathan?
— O senhor vai voltar, não vai?
Por mais que quisesse mandar em tudo aquilo, enfim, não desejaria o m*l de seu pai, não daquela forma. Não depois de tudo que ele e Julian passaram quando sua mãe faleceu. Mesmo seu pai não sendo o melhor ou o mais sensato, ainda era seu pai, ele ainda o amava e se preocupava mais do que seria capaz de admitir.
— Sim, Nat. Eu irei voltar. Nem que seja por mais um dia.
O silêncio, sendo quebrado apenas pelo som do fogo, foi o abraço coletivo que ambos tiveram. Cada um com sua própria reflexão, preocupação e responsabilidade, pesando sobre os ombros largos. Era um mundo enlouquecido e gritante.
***
Kiera voltou para casa, exausta e com a mente fervendo. Ainda sem encontrar uma forma de chegar mais perto de Davin Bishop e descobrir a verdade. Ela não sabia qual rumo seguir. E nem como encontraria provas necessárias. O homem parecia não esconder nada. Talvez não fosse culpado. Talvez outro homem tivesse sido mandante do m******e. Ela começava a duvidar de suas próprias decisões e pensamentos.
Ao chegar em casa, sua tia já estava preparando o jantar.
— Chegou cedo. Achei que ia ficar mais algumas horas vasculhando o lixo do patrão pra achar algo bem incriminador.
Kiera cruzou os braços e encostou o corpo no batente da porta. Pelo visto, o humor n***o da sua tia fora ainda mais forte do que a chuva e o anoitecer.
— Tomou seus remédios no horário?
— É claro. Se for depender de você...
— Ok tia, eu posso não viver como a senhora quer. Mas não pode me culpar por querer fazer justiça. Eu faço o que posso pela senhora! É minha única família!
Jasmine parou de cortar o tomate, e se virou na hora que Kiera saiu da cozinha. Sabia o quanto estava sendo duro para ela superar o que acontecera. E a única coisa que ainda a mantinha em pé era o sangue fervendo por justiça. O desejo de descobrir a verdade e vê o verdadeiro culpado pagando por tudo que fizera. E ela estava sendo c***l. Não conseguia apoiá-la nessa empreitada.
Kiera tinha conhecimentos linguísticos, entendia quase tudo de moda e tinha contatos influentes, mas escolhera trabalhar como faxineira. Não que não fosse uma profissão digna. Era um trabalho admirável e distinto. Mas por tudo que ela vivera, merecia mais, merecia fazer algo que gostava, viver sua vida, e não apenas viver para encontrar uma justiça há muito tempo perdida. Não era esse o tipo de trabalho que ela imaginava para sua sobrinha. Ainda mais naquele lugar, onde tudo parece ter começado e se encerrado da pior maneira possível.
Se Davin descobrisse que ela estava lá, que a filha do ex-sócio que ele provavelmente mandou matar estava trabalhando de faxineira para ele, não pensaria duas vezes. Logo perceberia os planos de Kiera e seria impossível pará-lo. Depois de tudo, o que seria a vida dela, comparado a seus atos? Nada além de um fiapo de tinta a riscar do papel de funcionários e uma insignificante quantia em dinheiro.
Esse era o maior temor de Jasmine. E ela não era capaz de admitir. De forma alguma, que sentia pavor da ideia de ficar sozinha. Não que fosse totalmente dependente de Kiera, sabia se virar bem, mas a questão não era essa. Como a jovem mesmo dissera, ela era sua única família. E Jasmine sabia que isso também lhe servia. Era elas por elas, e nada mais.
No dia seguinte, a chuva ainda não havia cessado. Liverpool, conhecida como a cidade portuária, também era conhecida pela sua grande quantidade de água que vinha dos céus molhar a terra, principalmente no outono.
Em dias como aquele, Jasmine contava com a ajuda de Kiera para não se molhar até entrar no ônibus.
Durante o caminho até o ponto, o silêncio reinou. Mas quando seu peito se apertou, vendo que Kiera estava de uma forma rara, silenciosa e pensativa, ela decidiu que não podia estender mais aquilo. Se aprendeu uma coisa nos últimos quase quatro anos, é que não se pode guardar rancor e deixar o orgulho vencer quando se trata de pessoas que amamos verdadeiramente. Infelizmente, como os egoístas que nós em sua maioria somos, temos uma forte tendência a deixar as coisas se resolverem por si só e cuidar apenas de si. O que nem sempre, é realmente bom.
— Kiera, eu preciso falar uma coisa.
— Meu ônibus está chegando.
Kiera avistou-o e colocou a mão. Jasmine segurou seu braço firmemente.
— Sabe que eu a amo, não sabe?
Kiera encarou os olhos castanhos claro e sentiu um sorriso crescer nos lábios finos e grandes, que ela tratou de segurá-lo.
— Eu também, tia. Eu também.
Ela deu um beijo na testa da tia e subiu no ônibus, que chegou no mesmo instante.
Jasmine ainda aguardou mais um pouco, pensativa. O coração mais quieto, mas ainda podia ouvir as palavras ecoando em sua mente e se espalhando feito pó na areia.
Kiera se apertou para entrar no ônibus, se segurou e apoiou a cabeça no braço levantado. Estava tão cansada dessa rotina. Para quem já viajou para diversos lugares do mundo, frequentou os melhores restaurantes, os hotéis mais caros e deslumbrantes, e ia em uma festa ou bar diferente todo dia, aquilo realmente a fazia chegar ao fundo do poço. Mas apenas socialmente falando. Ela sabia que o fim do poço fora receber a ligação de sua tia, depois de tanto tempo.
Nathan não tinha a menor disposição para o trabalho. Na verdade, sempre preferiu ficar em festas, bebendo, dançando e se divertindo com as mulheres, mas seu pai fora rígido e enfático em avisar-lhe sobre as consequências de seus atos. E precisou mudar, se quisesse conquistar o direito de assumir a presidência. E agora lá estava ele, prestes a ter seu desejo realizado. Mas ainda faltava alguma coisa... Não era a roupa, nem nenhum objeto familiar. Era... Alguém. Isso! Lhe faltava alguém, para compartilhar sua cama e sua vida. Mas isso ele não pretendia ter. A menos que seu pai o obrigasse.
Mas se o pai estava mesmo doente, talvez não insistisse tanto, ou ainda mais, pelo fato de precisar morrer em paz sabendo que sua linhagem estava protegida. Era difícil saber se tratando de Davin.
Julian acordou um pouco mais cedo, tomou seu café da manhã e seguiu para a biblioteca. A chuva lhe permitia pequenos estalos das gotas contra a janela como forma de música clássica e poética. Ele leu alguns artigos guardados ali sobre a empresa mais rápido do que uma pessoa comum. O hábito de leitura, adquirido nos cursos e nas viagens, fora bem alimentado.
Depois de devorar diversas informações, desceu, onde Nathan ajustava a gravata, finalmente.
— Depois sou eu que pareço uma mulher me arrumando, não acha Nat?
— Vai a merda Julian. Olha esse tempo? É perfeito para sair elegantemente vestido.
— Como se não tivesse feito isso o ano todo. Todos os dias, em todas as reuniões e em cada dia de trabalho.
— Você me conhece tão bem, Juli. Mesmo de longe.
O irmão caçula balançou a cabeça e suspirou. Aquele dia seria um novo recomeço para sua vida. Longe das pessoas que amava, mas perto de outras. E ainda com um vislumbre de esperança de algum dia reencontrar a mulher que ele partiu o coração.
— Vamos logo, não quero me atrasar.
Eles saíram juntos para o trabalho, na mesma limusine.
Nesse instante, Kiera desceu do ônibus, abriu o guarda-chuva e andou mais um pouco até a empresa. No horário de sempre. Apesar de sempre a ver um pequeno desconto de tempo para todos os funcionários que se atrasassem por causa da chuva.
Elena chegou logo após.
— O que houve? Passou do ponto? Dormiu lendo Agatha Christie?
Fora a vez de Kiera soltar uma piadinha, terminando de pôr o uniforme. Elena revirou os olhos, guardando a bolsa.
— Impossível dormir lendo Agatha Christie.
Apesar de não ser gostar de seriados investigativos, a maioria por ser muito previsível, Elena adorava livros de romance policial, principalmente os de Agatha Christie.
Kiera começou os trabalhos no elevador, e Elena ficou limpando as escadas. Como havia mais de um elevador no térreo, não tinha problema em limpar ali de dia. Fora que muitos dos funcionários ainda não haviam chegado.
Nathan e Julian desceram do carro, já dentro da garagem, e entraram por uma porta lateral. O elevador daquele setor ainda estava em reforma. Eles entraram e foram para os elevadores centrais do térreo.
Kiera limpou os espelhos, e encarou-se por alguns instantes. O elevador estava parado ali mesmo, com as portas fechadas.
Ela m*l conseguia enxergar a mulher que já fora um dia. Tão bela e radiante, tão viva e florida, cheia de boas energias, de paz e alegria. Se transformou em uma pessoa isolada, vivendo pelo sangue de justiça, alimentando a dor que a consome diariamente, sendo aos poucos, engolida pela fome e o desespero que aquela dor lhe causava.
Nunca em mil anos, imaginou ser esse o destino de sua vida. Mas ela iria superar. Precisava. Não iria aceitar aquilo que a vida lhe dava. Se rebelaria contra o destino se necessário. Quantas vezes fosse preciso. Enquanto houvesse qualquer chama de vida em seu peito.
Ela respirou fundo, guardou o material e abriu as portas do elevador, no instante em que Nathan e Julian se aproximavam.
Por uma fração de segundos, o coração de Kiera quase saltou pelo peito, e Julian m*l pôde acreditar, paralisado.
— Kiera...