Cayo
Eu tava destruído. A volta do trampo naquela sexta-feira foi como levar um soco atrás do outro. O dia já tinha sido uma merda: entregas atrasadas por causa do trânsito no Rio, um cliente que gritou comigo porque o pedido chegou frio, e o dono do barraco mandando mais um recado sobre o aluguel atrasado.
Mas o pior não era isso.
Era a Analu.
O vazio que ela deixou depois do “término” no bar, depois que eu fodi tudo com meu ciúme, com minha raiva, com o jeito que sempre estrago tudo. Eu não conseguia tirar da cabeça o olhar dela, assustado, decepcionado, quando disse que acabou. p***a, eu sabia que ia dar merda, mas não achei que doesse tanto.
Cheguei em casa com o corpo pesado, a cabeça girando. O Zyon tava com a Gabi, como sempre, porque eu não tinha condição de buscar ele depois de um dia desses. Minha mãe tava na cozinha, fazendo um café, e tentou puxar conversa.
— Cayo, tá com cara de quem viu fantasma. Quer comer alguma coisa?
— Tô de boa, mãe — murmurei, passando direto pro meu quartinho.
Tranquei a porta, joguei a jaqueta no chão e me joguei no colchão. Não queria ver ninguém. Nem o Zyon, meu moleque, que é a única coisa boa na minha vida.
Eu não merecia ele.
Não merecia ninguém.
Só queria apagar tudo, apagar ela, apagar a merda que eu sou.
Peguei uma garrafa de cachaça que tava guardada no canto, um resto de uma noite que eu nem lembrava direito, e dei um gole longo, sentindo a queimação descer pela garganta. Acendi um cigarro, traguei fundo, o cheiro de fumaça enchendo o quarto.
Mas nem a cachaça, nem o cigarro, nem o silêncio tavam conseguindo apagar a culpa. A culpa de ter assustado a Analu, de ter quase arrebentado aquele mauricinho, de ter mostrado pra ela o pior de mim. Eu sabia que ela era boa demais pra mim.
Uma princesa de outro mundo, com vestidos caros e pais que nunca aceitariam um cara como eu.
Mas, p***a, eu queria ela.
Queria tanto que doía.
E agora? Agora eu tava aqui, sozinho, me afundando na minha própria merda. Pensei no Zyon, no jeito que ele me chama de “melhor pai do mundo”.
Ele não sabe.
Não sabe que o pai dele é um cara que fode tudo, que não consegue segurar uma mina como a Analu, que não consegue nem pagar o aluguel direito. Pensei na Gabi, que me odeia, mas que ainda tá na minha vida por causa do nosso moleque. E pensei nela, na Analu, no jeito que ela riu na garupa da minha moto, no jeito que ela me olhou no show de rock, como se eu fosse mais que o cara da quebrada.
Mas eu não era.
Eu era só isso.
Um fracasso.
A porta do quarto rangeu, e eu ouvi a voz da Gabi.
— Cayo, abre essa p***a de porta. Preciso falar com você.
Eu bufei, jogando o cigarro no cinzeiro ao lado do colchão. Levantei, com a cabeça girando um pouco por causa da cachaça, e abri a porta. Ela tava lá, com cara de quem tava pronta pra guerra, os braços cruzados, o cabelo preso num r**o de cavalo bagunçado.
— O que foi, Gabi? Tô de boa aqui, já veio me tirar do sério, pô.
— De boa? — ela retrucou, entrando no quarto sem ser convidada. — Tu tá com cara de quem tá se matando com cachaça e cigarro. E eu preciso falar do Zyon. Ele tá precisando de tênis novo, e o material escolar tá atrasado. Tu acha que eu vivo de quê? De ar?
Eu senti a raiva subindo, quente, como sempre acontecia quando a Gabi vinha com esse papo.
— p***a, Gabi, eu transferi grana pra você semana passada! Tô ralando todo dia, tu acha que eu faço o quê? Fico passeando?
— Ralando? — Ela riu, com aquele tom que cortava como faca. — Tu é um fracassado, Cayo. Sempre foi. Tô aqui criando teu filho sozinha, enquanto tu tá aí, bebendo, correndo atrás de qualquer mina que te dá mole. Tu não presta nem pra ser pai!
Aquilo foi o estopim.
Eu explodi.
Avancei, agarrei o cabelo dela com força, puxando pra ela me encarar. Meu rosto tava a centímetros do dela, e a raiva tava me cegando.
— Fracassado? Tu acha que eu pedi por isso, Gabi? Acha que eu pedi pra ter um filho com você? Eu não pedi por essa vida, p***a!
Ela me olhou, os olhos arregalados, não de medo, mas de raiva. Ia retrucar, mas antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, a porta rangeu de novo. E lá tava ele.
O Zyon.
Meu moleque, com os olhos grandes, segurando um carrinho de plástico, parado na porta, olhando pra gente. Olhando pra mim, com a mão no cabelo da mãe dele, gritando como um louco.
— Pai? — A voz dele era pequena, confusa, e quebrou algo dentro de mim.
Eu soltei a Gabi na hora, o coração despencando pro estômago.
Ele viu.
Meu moleque viu o pior de mim.
A vergonha veio como uma onda, me afogando. Eu tava destruindo tudo.
Tudo que eu amava.
— Zyon... — comecei, mas minha voz falhou.
Ele correu pra Gabi, se agarrando nas pernas dela, e eu senti o mundo desabar. Gabi se abaixou, abraçando ele, e me olhou com um misto de raiva e pena.
Mas não disse nada.
Não precisava.
— Gabi, eu... me desculpa — murmurei, a voz rouca, as mãos tremendo. — Eu não queria... p***a, eu não queria.
Ela ficou quieta por um momento, acariciando o cabelo do Zyon, que ainda tava agarrado nela. Então, pra minha surpresa, ela se levantou, puxou o Zyon pro colo e se aproximou de mim.
— Você é uma merda, Cayo — ela disse, baixo, mas sem o veneno de antes. — Mas eu sei que tu ama ele. E sei que tu tá tentando. Só... para de se destruir. Pelo Zyon.
Eu assenti, sentindo as lágrimas queimarem nos olhos, mas segurando pra não deixar ele ver. Ela me abraçou, um abraço rápido, mas que parecia dizer que, apesar de tudo, a gente ainda tava ligado pelo nosso moleque. O Zyon me olhou, ainda confuso, mas estendeu a mãozinha pra mim. Eu peguei, apertando de leve, e murmurei:
— Desculpa, moleque. O pai te ama, tá?
Ele assentiu, tímido, e voltou pro colo da Gabi. Eles saíram, e eu fiquei ali, no quarto que cheirava a cachaça e cigarro, com a vergonha me comendo vivo.
Eu tava perdendo tudo.
O Zyon, a Analu, até a mim mesmo. Eu queria ser melhor, por ele, por ela, mas parecia que tudo que eu tocava virava cinzas. Deitei no colchão, encarando o teto, e senti o peso do que eu era. Um cara que ama, mas que sempre estraga. E, p***a, isso doía mais que qualquer coisa.