CAYO
O sol tava torrando, e eu tava na garagem, suando feito um porco enquanto trocava a correia da moto. A mente vazia, só o corpo trabalhando, que é o único jeito que eu conheço de não pensar.
Não pensar nela.
Não pensar no vazio que ela deixou.
Não pensar que fazia dez dias desde aquele barzinho, desde aquele "tchau, princesa" que ecoava na minha cabeça toda noite.
Foi quando a Mari chegou.
A Mari, uma das amigas patricinhas da Analu, a mais quietinha delas. Ela desceu do carro, olhou pra minha mão suja de graxa, pro chão de cimento, e pareceu que ia desmaiar.
— Cayo. — ela falou, e a voz tava trêmula. — Eu não aguento. É errado você não saber.
— Saber o quê? — eu perguntei, já com o coração saindo pela boca.
Algo com a Analu? Um acidente?
— Ela vai embora hoje. O vôo é às cinco. Para Toronto.
O mundo parou.
O som do motor de algum carro passando na rua sumiu. Só ficou um zumbido alto nos meus ouvidos. Toronto. A p***a do Canadá. Ela tinha falado, mas eu... eu não acreditei que fosse real. Achei que era um castigo, um drama.
Não que ela fosse realmente embora.
A Mari ainda falou alguma coisa, mas eu não ouvi. Joguei a chave inglesa no chão, subi na moto ainda com a roupa suja de graxa, e dei partida. O motor roncou, um som rouco e familiar, o único som que fazia sentido naquele momento.
E então eu acelerei.
As ruas passavam num borrão.
Eu cortava corredor, furava sinal vermelho, ouvia as buzinas como se fossem de outro planeta. O vento batia forte no meu rosto, e eu não sei se eram lágrimas ou só o ar que fazia meus olhos arderem.
"Ela não pode fazer isso."
A frase martelava na minha cabeça, no ritmo do motor.
"Ela não pode simplesmente sumir. Fugir. Como se a gente não tivesse sido nada. Como se eu fosse um erro que dá pra apagar com a distância."
Cada esquina que eu virava era uma memória. Ali, naquele semáforo, ela tinha se agarrado em mim com medo da chuva. Naquela padaria, a gente tinha comido pão de queijo às três da manhã, rindo de nada. Naquele motel de beira de estrada... parei de pensar. A dor era física, um peso no peito que dificultava respirar.
Eu mudei.
Por ela.
Pela chance de ter ela.
Virei um homem melhor, sem gandaia, um pai presente. Deixei as brigas, as porradarias, a raiva fácil. Tudo por causa de um sorriso dela. E agora ela vai embora? Sem nem me dar a chance de... de quê, Cayo? De que? A voz na minha cabeça era cínica, c***l. De mentir de novo? De esconder mais alguma coisa?
Mas não era sobre isso.
Era sobre ela.
Sobre o cheiro dela.
O jeito que ela falava meu nome.
A sensação de que, com ela, eu não era só um ex-presidiário, um motoboy, um pai solteiro.
Eu era alguém.
Cheguei no aeroporto suando, o coração batendo como um tambor louco. Estacionei a moto em qualquer lugar, nem liguei se iam rebocar, e corri pra dentro.
O lugar era enorme, branco, cheio de gente com mala e pressa. Gente indo, gente vindo. E eu, parado no meio daquele caos, sem saber pra onde correr. Como achar alguém em um lugar daquele tamanho? Ela já podia ter passado pela segurança.
Já podia estar a caminho do avião.
Um desespero frio subiu da minha barriga. Eu estava perdendo ela. De verdade, dessa vez. Para sempre.
Fiquei andando em círculos, olhando para cada rosto, cada cabelo loiro que via. Nada. Já ia desistir, já sentia o gosto amargo da derrota na boca, quando vi ele. Humberto.
O playboy.
O cara perfeito.
Terno, cabelo impecável, andando calmamente como se o mundo fosse dele. E provavelmente era. Um ódio velho e quente subiu em mim, mas eu engoli.
Ele não era o inimigo agora.
Ele era a pista.
Fiquei longe, seguindo ele. Ele andou até um balcão de check-in, conversou com um funcionário, e depois seguiu para um saguão mais afastado. E foi então que eu os vi.
Os pais dela. Dona Bernardes, de vestido caro, e senhor Bernardes, com a postura de quem manda no mundo.
E ela.
Analu.
Parecia uma versão pálida de si mesma. Vestida com um moletom simples, jeans, o cabelo preso.
Parecia frágil.
Linda.
Meu coração doeu tanto que eu precisei me segurar na parede.
E então eu vi o que fez o ciúme, aquele monstro verde e nojento, se contorcer dentro de mim. Humberto não estava só se despedindo. Ele tinha uma mochila nas costas. Um passaporte na mão.
Ele estava indo também.
Claro.
O cara perfeito ia acompanhar a princesa no exílio. Para garantir que ela não desse nenhum deslize, que não voltaria para o traste que sou eu.
A raiva foi tão forte que eu quase gritei. Quase atravessei o saguão e encostei ele na parede. Mas eu respirei fundo.
"Não, Cayo. Não estraga tudo. Não é sobre ele. É sobre ela."
Fiquei ali, na sombra de uma coluna, observando. Eles conversavam baixo.
A amiga dela Bia chegou se juntando a eles, cumprimentando a todos. O pai dela ajeitou o colarinho do casaco de Humberto. A mãe abraçou Analu, com os olhos cheios de lágrimas. Era a cena da família perfeita se despedindo. E eu era o espectro, a mancha na pintura impecável da vida deles.
Até que a Bia, a amiga dela, se separou do grupo e foi em direção ao banheiro.
Era a minha chance.
Me movi rápido, interceptando ela antes que chegasse à porta.
— Bia!
Ela deu um pulo, assustada.
— Cayo! Pelo amor de Deus, o que você está fazendo aqui?
— Só preciso falar com ela. Um minuto. Por favor.
Ela hesitou, olhou para trás, para a família, depois para o meu rosto desesperado.
— Ela tá lá no corredor, perto da loja de presentes. Mas vai rápido, Cayo. O pai dela... se ele te ver...
Não precisei que ela repetisse.
Corri.
E a vi. Parada sozinha, olhando uma vitrine cheia de ímãs de geladeira e urso de pelúcia. Ela parecia perdida. Tão longe de casa, mesmo antes de entrar no avião.
— Ana...
Ela se virou.
Os olhos azul-acinzentados, que eu tanto amava, se arregalaram de choque, depois de medo, e depois... de uma dor que era igual à minha.
— Cayo? Como você...?
— É isso mesmo que você quer? — eu cortei, a voz saindo mais áspera do que eu queria. — Fugir? Correr para o outro lado do mundo como se a gente nunca tivesse existido?
Ela olhou em volta, nervosa, como se esperasse que o pai dela surgisse a qualquer momento.
— Não é fugir. É viver. É uma oportunidade que eu não posso perder.
— E a gente? O que a gente teve? Foi só uma... uma diversão? Uma aventura da patricinha no mundo real?
— Você sabe que não foi! — ela sussurrou, os olhos brilhando de lágrimas. — Foi a coisa mais real da minha vida. E a que mais doeu.
— Então fica. Fica e deixa a gente tentar de novo. Eu juro, Ana, eu... eu vou fazer direito dessa vez. Não vou esconder nada. Vou te mostrar tudo, cada parte feia da minha vida, todos os dias.
Ela balançou a cabeça, uma lágrima escapando e escorrendo pelo seu rosto.
— Eu não aguento mais, Cayo. Eu não aguento mais a dor. A desconfiança. Toda vez que a Gabi aparece, toda vez que eu lembro das coisas que você escondeu... é como se alguém enfiasse uma faca no meu peito. Eu preciso de paz.
A palavra "paz" me atingiu como um soco. Eu era a guerra dela. O caos.
Tudo que ela não precisava.
— E você me esqueceu? — eu perguntei, e minha voz quebrou. — Já conseguiu?
Ela me olhou, e a verdade estava ali, crua e nua nos seus olhos.
— Não. E acho que nunca vou.
Foi quando eu não aguentei mais. Fechei a distância entre a gente e a puxei para um beijo.
Não foi um beijo de despedida.
Foi um beijo de guerra.
Um beijo de promessa.
Era salgado das lágrimas dos dois, era desesperado, era cheio de tudo que a gente não conseguia dizer. Senti ela tremer contra mim, suas mãos se agarrando à minha jaqueta suja, me puxando para perto como se fosse a última âncora antes do naufrágio.
Quando nos separamos, estávamos os dois ofegantes, chorando ali mesmo, no meio do corredor, com as pessoas passando e olhando.
— Não é o fim. — eu disse, pressionando minha testa contra a dela. — Eu vou te provar. Eu vou arrumar a minha vida, vou juntar dinheiro, vou virar um homem que merece você. Não importa quanto tempo demore.
Ela enxugou o rosto com as costas da mão, tentando se recompor.
— Eu vou embora, Cayo. Eu preciso ir. Preciso tentar ser feliz longe de você. E se um dia... se um dia a gente se encontrar de novo, e as peças se encaixarem... — Ela não terminou, mas eu entendi.
Era um "quem sabe".
Não era um sim.
Mas também não era um não.
Era uma fagulha.
Uma minúscula, frágil fagulha de esperança no meio da escuridão.
— Eu te amo, Ana Luísa. — eu sussurrei, pela última vez.
— Eu também te amo. — ela respondeu, o som quase abafado pelo anúncio de um voo.
A Bia saiu do banheiro e nos viu.
Seus olhos se arregalaram e ela fez um sinal urgente.
— Eu já tenho que ir. — A Analu disse, seu olhar pregado no meu, como se tentasse gravar cada detalhe.
Eu só consegui acenar com a cabeça, a garganta fechada.
Ela se virou e caminhou em direção à família, de costas eretas, sem olhar para trás. Humberto me viu, e seu rosto se contraiu em desprezo, mas ele não disse nada. Apenas colocou um braço protetor no ombro dela e a guiou para longe.
Fiquei parado ali, até eles sumirem na multidão. Até o último vislumbre do cabelo loiro dela desaparecer.
O barulho do aeroporto voltou a todo volume. O mundo continuava. Mas eu sabia, no fundo da minha alma, que nada nunca mais seria o mesmo.
Subi na moto, o corpo dormente.
A esperança era uma coisa dolorosa, um fio tão fino que quase não dava para ver. Mas ele estava lá.
Era tudo que eu tinha. E por ela, eu iria agarrar aquele fio com toda a força que me restava.