Analu
O choro veio com a força de um rio transbordando. Deitei na cama, afundando o rosto no meu travesseiro.
Covarde.
A palavra que eu tinha cuspido nele ecoava na minha mente, mas o som mais alto era o do choro do filho dele. O menino, com seus olhos iguais aos do pai, aqueles olhos castanhos que viam um herói onde eu agora via um mentiroso.
Três dias.
Setenta e duas horas de um silêncio que doía mais do que qualquer gritaria. Meu telefone estava ali, na mesa de cabeceira, um objeto inofensivo que se transformara num instrumento de tortura. Eu pegava, olhava a tela preta, colocava de volta. Repetia o ritual a cada meia hora, como uma doida.
Meu pai, é claro, notou.
— Você está diferente, Analu. Está comendo pouco.
Diferente.
Era um jeito polido de dizer "se acabando por um motoboy que não presta". Minha mãe, mais sutil, apenas me observava com aqueles olhos que sempre sabiam demais. O condomínio era uma redoma, mas minha mente era uma cela – e o único prisioneiro era eu.
Minha mente voltava o tempo todo para aquele dia no shopping.
Ele era só uma criança.
Uma criança que tinha me olhado e sorrido, que tinha chamado o pai de "papai" com um amor tão puro que doía lembrar. E naquele momento, no carro, com o vidro fechado separando-me do mundo, entendi uma coisa: Cayo, o ogro convencido, o bruto, o motoboy que eu julgava conhecer, era um pai. Um pai que o filho amava. E isso não era algo que se fingia.
Fui para casa com aquele imagem na mente. Zyon nos braços dele, se aconchegando, buscando proteção. O instinto dele, de proteger o filho, mesmo naquela situação de merda. Havia uma verdade ali, sob todas as mentiras.
Foi quando o celular vibrou.
Não era uma mensagem. Era uma ligação. O coração deu um salto no peito, um traidor desesperançado.
Era ele.
O nome "CAYO" piscava na tela, uma acusação e uma súplica.
Deixei tocar três vezes.
Quatro.
No quinto, atendi.
Não falei nada.
A respiração dele do outro lado era pesada, como se tivesse corrido.
— Analu.
Meu nome saiu como um suspiro, um gemido.
Não respondi.
O silêncio era minha única arma.
— Eu... eu preciso te ver.
A voz dele estava rouca, fraturada.
— Por quê?
A palavra saiu curta e afiada.
— Porque eu não aguento. Porque eu errei. Porque eu sou um merda, um covarde, tudo que você disse. Mas eu te amo. E isso é a única coisa verdadeira nessa história toda.
Fechei os olhos. As lágrimas escorreram, silenciosas. Malditas lágrimas.
— O seu filho... — eu comecei, mas a voz falhou.
— Ele pergunta por você. Todo dia. 'Cadê a moça bonita, pai?' — A voz de Cayo quebrou. — Ele não entende. E eu também não. Como eu pude estragar tudo?
— Você não estragou só a gente, Cayo. Estragou a imagem que eu tinha de você. Eu confiava. Eu acreditava que, por trás daquela casca de ogro, tinha um homem honesto.
— Eu sou honesto! Em tudo, Ana. Em tudo, menos na minha vida pessoal. E não é porque não te respeito. É porque te respeito demais. Tinha medo de... de ver aquele olhar que você teve no shopping. O olhar de desilusão. Preferia viver na mentira do que ver aquilo.
— E a mãe do seu filho? — A pergunta saiu antes que eu pudesse parar.
A ferida ainda aberta, supurando.
— Não tenho nada com a Gabi. Juro por Deus, juro pelo Zyon. Ela é a mãe do meu filho, e eu respeito ela por isso. Pago a pensão, vejo o Zyon, cumpro meu papel. Mas não existe amor, não existe sexo, não existe nada. Ela é ciumenta, possessiva, não superou que eu não fiquei com ela. Com certeza ela apareceu lá no shopping para causar, porque viu que eu tava com alguém. Para fuder com a minha vida. E conseguiu.
Ele parou, ofegante. Eu conseguia quase imaginar ele, com a mão livre passando pelo cabelo bagunçado, os olhos fechados, a dor estampada no rosto daquele homem que raramente mostrava vulnerabilidade.
— E por que não me contou antes, Cayo?
Minha voz era um fio, carregado de uma fadiga que ia até os ossos.
— Porque você é a Analu. Você tem a vida perfeita. O pai ricaço, a mãe socialite, o condomínio fechado, a faculdade de gente rica que tu vai fazer. O que você ia querer com um cara como eu? Um motoboy com um filho, uma ex maluca, uma vida que é um quebra-cabeça de peças que não se encaixam? Eu não sou o príncipe do seu conto de fadas, Analu. Sou o ogro. E ogro não merece a princesa.
Aquela foi a facada mais profunda. Porque ele não estava sendo convencido. Estava sendo sincero. Ele realmente acreditava nisso.
— Você é um i****a, Cayo.
As palavras saíram entre um soluço e um riso amargo.
— Você acha que o meu mundo é tão perfeito? Você acha que não tenho minhas próprias prisões? Meus próprios segredos? Minha própria solidão?
O silêncio do outro lado era total.
Ele estava ouvindo.
Finalmente, ouvindo.
— Eu não me importava que você fosse um motoboy. Eu me importava que você fosse você. Gostava do seu jeito bruto, da sua honestidade cortante, do modo como você me olhava como se eu fosse uma mulher, não uma boneca de porcelana. E você tirou isso de mim. Tirou a minha confiança em você, Cayo.
— Eu sei. — A voz dele era um sopro. — E eu vou passar a vida toda tentando recuperar, se você me der uma chance. Só uma. Eu te mostro tudo. Minha vida, minha casa, minhas contas, minha bagunça. Não escondo mais nada. Você merece a verdade, toda ela, mesmo que ela te assuste.
Pensei no filho dele. No jeito que ele tinha se jogado no colo do pai, com uma confiança absoluta. Pensei nos olhos de Cayo quando ele olhava para o filho – um amor puro, incondicional, um lado que poucos viam. O lado que eu tinha vislumbrado e que me fez questionar tudo.
Será que era justo? Desistir de alguém por um erro? Por um segredo guardado por medo? Eu, que vivia uma vida de aparências, que escondia meu relacionamento com ele do meu próprio pai, não entendia o medo dele?
— Analu? — ele chamou, quando o silêncio se prolongou.
— Eu não te odeio, Cayo. Por mais que você mereça. Eu não consigo te odiar.
A confissão saiu baixa, mas clara.
— Estou magoada. Muito. E desconfio. De você, dela, de tudo.
— Eu entendo.
— Mas... — respirei fundo, as lágrimas escorrendo livremente agora — mas também lembro do homem que segurou minha mão na moto quando eu tinha medo da velocidade. Do homem que me olhava como se eu fosse a única mulher no mundo.
Ele não disse nada. Apenas respirava do outro lado, como se estivesse segurando o fôlego.
— Preciso de tempo, Cayo.
— Eu te dou todo o tempo do mundo. Eu espero. Eu fico aqui.
— E não me procure. Não me ligue. Eu... eu te chamo quando estiver pronta.
Foi a coisa mais difícil que já disse. Desligar a chamada com aquela promessa pairando no ar. A promessa de um "quando", não de um "se".
Deitei na cama, olhando para o teto. A raiva ainda estava lá, um carvão quente no meu peito.
Mas ao lado dela, uma pequena chama de... compreensão. O amor não apaga as mágoas. Não justifica os erros. Mas ele complica tudo. Ele te faz questionar seus próprios princípios, suas próprias certezas.
Ele me fez olhar para o homem que mentiu pra mim. O homem imperfeito, assustado, que cometeu um erro colossal por medo de perder algo bom.
E no fundo, eu sabia a verdade mais dolorosa de todas: eu o amava.
Apesar de tudo.
Por causa de tudo.
O amor não escolhe o momento certo, nem a pessoa certa. Ele simplesmente acontece. E quando acontece, ele te obriga a olhar para as sombras, não apenas para a luz.
E eu, pela primeira vez, estava disposta a olhar.