capítulo 4 Leonardo

1408 Palavras
NARRADO POR LEONARDO VERANO 06h04. Desperto sem despertador. Como sempre. O corpo já treinado, a mente já em estado de guerra. Paz nunca foi meu estado natural — controle, sim. Levanto. Colchão ortopédico. Lençóis de mil fios. Quarto minimalista, silencioso, com cheiro de limpeza e ausência. É isso. Tudo aqui tem ausência. De barulho. De cor. De excesso. De afeto. O banheiro é de mármore. O espelho me encara com a frieza de sempre. Barba feita. Mandíbula trincada. Olhos como aço congelado. Leonardo Verano. CEO do Grupo Verano. Herdeiro de um império. E de um trauma: o de nunca ser suficiente. Faço tudo no piloto automático. Rosto limpo. Roupa engomada. Terno cinza grafite sob medida. Relógio suíço. Não erro na aparência. Não erro no horário. Nunca erro. Errar seria dar razão a quem disse que eu só estava aqui por causa do sobrenome. E eu odeio quando eles têm razão. No carro, motorista silencioso. No trajeto, reviso mentalmente a agenda: Reunião com os acionistas. Corte de verba na campanha da filial de São Paulo. Entrevista com aquele i****a do jornal financeiro. E a eterna, insuportável, entediante rotina de gerir o ego dos incompetentes da diretoria. Chego no prédio. 7h59. Café preto, sem açúcar. Andares subindo. Elevador sem som. Sorrisos forçados me recebem. — “Bom dia, doutor Verano.” — “Bom dia.” Mas não olho nos olhos. Não cedo à tentativa de contato. A rotina me protege. A rigidez me isola. E é exatamente assim que eu gosto. Ou finjo que gosto. Entro na minha sala. Piso de madeira, janelas de vidro, vista para um mundo que gira em looping e finge que é progresso. Minha secretária já deixou relatórios separados em ordem de importância — eu exijo isso. Prioridade. Clareza. Hierarquia. Mas mesmo com tudo no lugar, tudo sempre parece... desajustado. Porque ninguém vê. Mas eu vejo. O buraco. A rachadura sob a perfeição. Sou o tipo de homem que não erra vírgula em contrato, mas trava ao ouvir a palavra “pai” numa reunião de conselho. Sou o tipo de homem que segura o mundo com uma mão, mas não sabe lidar com um elogio sincero. Sou o tipo que beija sem sentir. Assina sem duvidar. Fala sem hesitar. Mas quando deito... ...o silêncio me engole inteiro. Fui treinado pra vencer. Não pra viver. Meu pai, Leônidas Verano, sempre dizia: — “O nome Verano é uma sentença. Não um presente.” E eu cresci tentando provar que merecia essa sentença. Provar que eu era forte o suficiente pra não ruir como ele. Provar que eu podia ser herdeiro sem parecer fraco. Provar que o império podia continuar, mesmo sem ele. Mas a verdade? A verdade é que eu carrego esse império nas costas como quem carrega um corpo morto. Pesado. Rígido. Frio. E ninguém, absolutamente ninguém, sabe disso. Aos olhos de todos, sou o CEO perfeito. Rico. Bonito. Preciso. Letal. Um tubarão de terno caro. Mas a verdade mais íntima? Sou emocionalmente burro. Analiso tudo. Entendo tudo. Prevejo tudo. Mas não entendo a p***a do que eu sinto. Ou pior: não sinto nada. Minha terapeuta diz que é defesa. Minha mãe diz que é herança genética. E eu? Eu só sigo. Até hoje, nunca houve ninguém que me fizesse parar. Até hoje, nenhuma mulher mexeu no meu eixo de forma real. E olha que já tive todas. Modelos. Advogadas. Socialites. Uma vez, até uma poeta. Todas lindas. Todas perfeitas. Todas entediantes. Porque elas vinham com um roteiro. E eu odiava roteiro. E o amor? Esse eu arquivei na pasta dos conceitos obsoletos. Junto com disquete e honestidade na política. Então é isso. Esse sou eu. Leonardo Verano. 36 anos. Rico. Frio. Bem-sucedido. Sozinho pra c*****o. Mas tudo segue funcionando. Até hoje. Até agora. A notificação pisca no canto do monitor. Discreta. Controlada. Do jeito que eu gosto. É da Ana Clara, minha secretária há cinco anos. A única pessoa que sobreviveu à minha política de tolerância zero pra incompetência. > 08h07 — Ana Clara: "Reunião remarcada com o RH. Sala 3. Em quinze minutos. E... chegou um e-mail novo no seu pessoal. Achei... diferente. Mas não abri. Está sinalizado com prioridade." Franzo a testa. E-mail pessoal? Ninguém usa aquele endereço a não ser minha mãe (pra me mandar versículos bíblicos que eu finjo ler) e minha terapeuta (pra remarcar sessões que eu costumo cancelar). “Diferente” vindo da Ana Clara, que viu de perto minha reunião com um executivo que tentou me vender NFT de café como se fosse inovação — e não pestanejou —, é o equivalente a um alerta vermelho piscando na testa da Mona Lisa. Ignoro por um instante. Levanto. Terno impecável, gravata alinhada, respiração medida. Eu sou o retrato da estabilidade. Caminho até a porta. Paro. Me viro. Olho de novo pro monitor. O e-mail tá lá. Quieto. Imóvel. Como se não soubesse que carrega dentro dele uma bomba com glitter e tequila. Ajeito a gravata. Falo pra Ana Clara sem olhar: — “Mais tarde. Depois da reunião. Depois de tudo.” Ela assente. Como sempre. Mas eu sei que ela sabe. E ela sabe que eu sei que ela sabe. Tem algo estranho no ar. Um cheiro. Um ruído. Um sinal. Como quando a luz pisca antes de acabar a energia. Como aquele segundo antes de um raio cair — o ar segura o fôlego. E eu... Eu sigo. Entro na sala da reunião. Três diretores de RH. Dois gestores. Uma apresentação em PowerPoint com o título: “Nova Direção Criativa — Perfis Sugeridos”. Sento. Cruzo as pernas. Meus olhos passam pelas fotos dos candidatos. Mulheres lisas. Homens engravatados. Currículos inflados com buzzwords que me dão vontade de bater a cabeça na mesa. “Mindfulness criativo.” “Gestão humanizada de branding.” “Soft skills sensíveis.” Sério? Olho pra tela com a mesma empolgação de quem assiste tinta secar. Um deles, um tal de Diego, sorri animado. — “Senhor Verano, todos têm MBA, vivência internacional e forte bagagem em campanhas disruptivas.” Eu levanto a sobrancelha. — “Disruptivas?” — “Sim.” — “Me diz uma campanha de um deles que mudou algo de verdade. Que gerou conversa. Impacto. Ruído.” Ele pisca. Gagueja. — “Bom… Teve uma com storytelling sobre uma marca de água que virou vinho num post de Páscoa. Viralizou.” — “Milagres no i********:. Incrível.” — falo, ácido. Eles se entreolham. Eu apoio o cotovelo na mesa. — “O que eu quero é alguém que não pense com o cu do LinkedIn. Que entenda que criação não é fórmula. Que ideia boa vem de gente suja de vida real. De frustração. De caos.” Silêncio. Todos fingem anotar. Um dos gestores finge tossir. Eu me levanto. — “A gente não vai contratar ninguém hoje.” Ana Clara, que entrou discretamente com um tablet na mão, me olha com a calma de quem prevê o apocalipse, mas sabe que não adianta impedir. — “Quer que eu agende nova rodada de entrevistas, senhor?” Olho pra Ana Clara. Ela sabe que eu tô no meu limite. E eu também. Mas não externo. Só abaixo o olhar pros papéis, pro tablet, pro PowerPoint ridículo projetado na parede com fotos de gente que parece ter saído de um molde feito à base de coaching e whey protein. Respiro fundo. Trinco a mandíbula. — “Por enquanto, não.” — “Entendido.” — “Tô cheio dessas apresentações com sorriso forçado e palavras vazias. Gente que diz ‘brainstormar’ como se fosse verbo. Que chama slide de ‘deck’. Que acha que autenticidade é usar moletom na sexta.” Ana Clara segura o riso. Sigo. — “A gente precisa de alguém que saiba criar mesmo. Sem precisar fazer dancinha no Reels pra provar que é moderno.” Ela inclina a cabeça, discreta. — “O e-mail?” Demoro meio segundo. — “Daqui a pouco. Antes... me vê um café.” — “Preto, sem açúcar?” — “Não. Hoje... põe um pouco de açúcar.” Ela arqueia as sobrancelhas, surpresa. Isso, vindo de mim, é o equivalente a mudar a ordem natural do universo. Ela sai. E eu fico ali. Sozinho. Na sala. O PowerPoint ainda brilhando na parede como um lembrete do quanto o mundo criativo anda estéril. E o e-mail, ainda ali... me esperando. Chamando.
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