capitulo 3

1362 Palavras
CONTINUAÇÃO — SUZANA, O GREMLIN DA GELADEIRA Eu deitei no sofá, puxei a coberta até o nariz, fechei os olhos e tentei dormir. TENTEI. Mas minha mente decidiu virar uma rave. Eu virava pra esquerda. Nada. Virava pra direita. Nada. Virava de barriga pra cima. Parecia um cadáver desconfortável. Aí veio o pior inimigo da madrugada: O pensamento aleatório. — Suzana… E se tiver um espírito sentado no teto te olhando dormir? Abri os olhos na hora. — Pronto. Não durmo mais. Tentei me acalmar. Respirei fundo. Virei de novo. E aí veio o outro inimigo: o estômago. Meu estômago fez um GROOOOOUUUURRRR tão alto que parecia uma jaguatirica sendo estrangulada. Eu sentei na hora. — Tô morrendo de fome. — Preciso de alimento. — Preciso de sustento. — Preciso de carboidrato agora. Olhei pra tia Berenice, que dormia no quarto com a porta entreaberta. A luz azul da TV iluminava um pedacinho do corredor. A casa estava silenciosa. Demais. Silêncio de filme de terror. Silêncio de “se você levantar, a cadeira range e chama o d***o”. Mas eu precisava comer. Então levantei como um ninja com labirintite. Pisei no chão com a delicadeza de um búfalo. A cada passo eu jurava que o mundo inteiro acordava, menos a minha tia. Cheguei na cozinha. A cozinha parecia brilhar. Ou talvez fosse a fome alucinando. Abri a geladeira devagar, com cuidado, para não fazer aquele CLÁÁÁK de porta velha. Abriu fazendo CLÁÁÁK de qualquer jeito. — Pronto, acordei a vizinhança inteira. Mas fingi que não. A luz branca iluminou tudo como se eu tivesse achado o portal de Nárnia. Arregalei os olhos. A geladeira da minha tia era um paraíso da fartura comparado à minha. Tinha pote de sorvete verdadeiro (não arroz congelado). Tinha queijo. Tinha bolo. Tinha frango. Tinha suco. Tinha legumes (não ia comer isso, mas legal saber que existiam). Tinha iogurte. Tinha torta. Tinha pudim. Eu soltei um suspiro emocionado. — Obrigada, Deus da fome, obrigada. E comecei. Peguei o bolo. Dei três garfadas tão grandes que parecia prova de resistência. Peguei o pote de sorvete. Comi de colher, direto, sem respeito pela humanidade. Peguei as fatias de queijo. Enrolei tudo e comi como se estivesse participando de um reality show culinário. Peguei o frango. Sim, comi frio. Eu sou selvagem. A cada garfada eu gemia baixo: — Meu Deus isso tá maravilhoso… — Isso aqui cura depressão… — Isso aqui cura inveja… — Isso aqui cura a minha alma… Quando percebi, já tinha comido metade da geladeira. Literal. A porta estava aberta, e parecia que um urso tinha invadido. Fui fechar quando… — SUZANA?! Eu congelei. Travei. Fiquei igual uma capivara flagrada fazendo merda. Me virei devagar. A tia Berenice tava parada na porta, descabelada, com cara de quem acabou de testemunhar um crime. — O… QUÊ… QUE… OCORREU… AQUI? Eu engoli um pedaço de frango. — Nutrição. Ela olhou pra geladeira. Olhou pra mim. Olhou pro chão. Voltou a me olhar. Ergueu um dedo. — Você… — Comeu a metade… — Da minha geladeira? Eu ergui as mãos, toda suja de chocolate, frango e sorvete. — Tia… a fome não dá aviso. — A fome chega como bandido: rápida e sem educação. A tia fechou os olhos, respirou fundo e disse: — Eu devia ter deixado você morar com sua mãe. — Lá ela te exorcizava e eu tinha paz. Eu dei um sorrisinho fofo. — Tia… você me ama. — Amo nada. — Vá dormir antes que eu te faça virar oferenda. Eu passei por ela sambando de leve, porque eu estava alimentada, feliz e pronta pra dormir como um boi depois de pastar. — Boa noite, tiaaaa! — Boa noite, praga… Deitei no sofá, barriga cheia, coração leve, mente cansada. Eu dormi sorrindo. SUZANA, O ACORDA NÃO OFICIAL Eu tava no nível mais profundo do meu sono… Aquele estágio lindo, pesado, gostoso, que só existe quando você dorme na casa dos outros com a barriga cheia. Eu tava sonhando que estava num spa, numa banheira de espuma, sendo servida por três garçons com cara de ator mexicano. Aí… TRRRRAAAAAAAMMMMMM!! Um barulho metálico explodiu dentro da minha cabeça. Abri os olhos igual um cadáver reanimado. — QUE FOI?! MEU DEUS, É GUERRA?! Eu levantei do sofá assustada, com o cabelo de águia electrocutada, a coberta enrolada no pescoço igual cachecol de suicídio. Outro BÁÁÁÁM veio da cozinha. Eu fui mancando até lá. E encontrei a tia Berenice. De pé. De avental. Fritando ovo. Mas não fritando normal. Fritando com ÓDIO. Ela mexia a frigideira como se estivesse acertando minha alma. CLÁP! O ovo estourou. PÁ! Ela bateu a colher na pia. BLÉM! Ela chutou a porta do armário sem motivo nenhum. Eu fiquei parada na porta igual criança vendo a mãe incorporar o demônio doméstico. — Tia… — Por que a senhora tá fazendo barulho de destruição em massa às SETE DA MANHÃ? Ela virou devagar, com olhos de quem não dormiu bem. — Porque eu moro sozinha. — E quando eu acordo, eu faço barulho. — Barulho espanta encosto. Eu toquei meu próprio peito. — Encosto?! EU TÔ AQUI, TIA! — EU deveria ser espantada?! Ela me fuzilou com o olhar. — Suzana… você comeu minha geladeira inteira. Eu ergui um dedo. — In-tei-ra não. — Sobrou o pepino. Ela ergueu outro dedo. — O pepino é do detox. — Vixe… Desculpa então. Ela suspirou e voltou pro ovo. Eu sentei na cadeira com a postura de uma mendiga emocional. — Tia… eu não durmo assim desde 2008. — Se eu tivesse continuado naquele sono, eu virava santo. Ela revirou os olhos. — E você ronca. — EU NÃO RONCO! Ela ergueu o celular, apertou play e… Era eu. Roncando. Roncando nível motosserra com asma. Eu travei. — Isso não foi eu. — Isso foi… — O demônio da geladeira. — O demônio da geladeira, Suzana? — Sim. — Ele se manifesta quando a fome bate. Ela largou a frigideira. — Meu Deus… eu devia ter tido filhos. — Você é pior que três adultos imaturos. Eu dei um sorriso fofo, com a cara amassada de quem dormiu no meio de um terremoto. — Tia… — Faz um ovo pra mim? Ela virou a frigideira devagar. — Eu fiz UM ovo. — UM. — Pra mim. Eu fiz beicinho. — E se eu te der esse cupom aqui? Tirei o cupom do sutiã igual uma carta mágica. Ela cruzou os braços. — Cupom falso não compra café da manhã aqui. Me joguei pra trás na cadeira. — Então vou morrer. Ela virou com um prato e botou um ovo na minha frente. — Come e cala a boca. Eu sorri largo. — OBRIGADA, TIAAAAA! — A senhora é o amor da minha vida! Ela sentou, tomando café, e me olhou tipo “vou te entregar pra adoção”. Depois de devorar o ovo, eu bati a mão na mesa: — HOJE É O DIA, TIA. — EU VOU ARRUMAR UM EMPREGO NOVO. — EU VOU USAR MEU CUPOM. — EU VOU MUDAR MINHA VIDA. Ela bebeu o café com calma. — Você… — Com esse cupom vencido? — Vai mudar a vida de quem? Do motorista que vai te xingar? Eu sorri. — Sim. — Vou mudar a vida dele. — Ele vai lembrar de mim pra sempre. A tia cruzou os braços. — Suzana… — Você tem certeza ABSOLUTA que quer sair usando esse cupom “válido até 2026”? — Claro, tia. — A fé move montanhas. Ela respondeu: — A burrice também. Eu peguei minha bolsa, levantei animada, dei um beijo na bochecha dela e disse: — SE EU NÃO VOLTAR… — LEMBRA QUE EU TE AMAVA! Ela gritou da cozinha: — Volta sim! — Você esqueceu o celular, desnaturada! Eu voltei correndo. Peguei o celular. Respirei fundo. E falei: — Tia… — Deseja-me sorte. — Pra quê? — Pra você destruir menos coisa hoje? — Não. — Pra eu não ser presa. Ela ergueu a mão e fez o sinal da cruz. — Deus me proteja dessa menina… Olá meninas adicione na biblioteca... em breve atualização diária.
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