Capítulo- III. Sombra
" Aquilo que se move pela Sombra, chega perto de você e te captura dentro de minutos, de uma forma rápida que você sequer percebe."
Letícia
Não sou Letícia. Esse nome pertence a uma mulher que nem imagina o que lhe aconteceu. Uma profissional exemplar, enfermeira dedicada, tão gentil que nunca desconfiaria de alguém como eu. Em um instante, troquei suas fichas pelas minhas e garanti que ela fosse transferida para outro setor do hospital. Sem alarde, sem deixar rastros. Agora, ela faz curativos em uma ala de enfermos com doenças contagiosas, enquanto eu me escondo no covil dos Falzone. Se esconder não é bem a palavra, eu tento conviver com os miseráveis sabendo o que eles realmente são: escória da humanidade.
São uma das famílias que contaminam o solo da Itália e que destroem vidas e famílias pelo mundo. Porque a máfia não leva ao pó somente o país em que nasceu, mas também tantos outros onde seus tentáculos podem chegar.
Meu nome é Gina. Sou oficial da polícia italiana. E estou cercada por monstros disfarçados de pessoas.
Conseguir um lugar ao lado do silencioso herdeiro dos Falzone, Filippo, não foi obra do acaso. Foi uma jogada estratégica. Me infiltrar no hospital particular financiado pela máfia siciliana foi o primeiro passo. Dentro daquele ambiente‐- que deveria se destinado para o tratamento de cidadãos comuns e bandidos‐- apenas os olhos atentos de quem conhece o submundo perceberiam o vai e vem de carros de luxo e seguranças sem crachá. Quando soube que Filippo estava entre a vida e a morte após uma descobri um tumor, vi minha oportunidade e agarrei com todas as forças. Fiz parecer que fui escolhida. Mas, na verdade, roubei essa chance.
O mais desafiador veio a seguir: manter a farsa. Letícia, a enfermeira. Cuidadosa. Prestativa. Letícia, a mulher que cuida do filho do d***o.
E foi nesse momento que tudo saiu do controle.
Filippo Falzone. Cabelos escuros, traços marcantes, olhos que guardam mais segredos do que revelam. No começo, era apenas mais um nome no relatório, mais uma peça do tabuleiro. Mas, aos poucos, entre os cuidados noturnos e palavras sussurradas, ele se tornou real. Humano demais para o tipo de monstro que deveria ser.
Esta manhã, confrontei meu chefe. Tranquei-me no banheiro — o único lugar da casa sem câmeras — e fiz a ligação.
— Você não deveria estar ligando, Gina. Já passou da hora de enviar alguma prova concreta — ele resmungou, com uma voz áspera como lixa.
— Não é tão simples. A casa é um verdadeiro bunker. Cheia de câmeras, sensores de movimento, alarmes ocultos... E tem , Malva, a nora dos Falzone, que está desconfiada, tenta disfarçar, porém eu percebi há tempos. Ela me observa como se pudesse sentir o cheiro da mentira.
Do outro lado da linha o silêncio cresceu.
— Você não deveria ter errado o tiro naquela noite. Era para Malva estar fora do jogo. Ela atrapalha.
Senti o gosto amargo da bile na garganta. Sim, eu havia falhado. Na floresta, durante o resgate, com todos armados até os dentes, tive uma única chance. E deixei escapar. Pior ainda: perdi meu celular com todas as fotos. Imagens nítidas de quem portava o quê, de como operavam. O rosto de Cosimo manchando a lente, o próprio Nero e os pedaços de corpos espalhados dos seguranças que foram desmembrados com as explosões, e Malva, a mulher que deveria ter sido eliminada, viva. Fiquei nervosa demais, está sozinha, errei o disparo.
— Sem celular, sem provas, Gina — meu chefe resmungou. — Isso não é brincadeira. Queremos todos eles. Cada maldito Falzone. E se você continuar agindo como uma amadora...
— Eu sei! — interrompi, a voz saindo mais alta do que pretendia. — Mas você não tem ideia do que é estar aqui. Isso consome. Isso suga. Tenho que sorrir para monstros todos os dias. Ser gentil com homens que torturam por prazer. Você acha que é fácil?
Ele respirou fundo.
— Promoções não acontecem por acaso. Você realmente deseja fazer justiça? Quer honrar os nomes dos nossos colegas que esses canalhas apagaram? Então, deixe de lado a hesitação. Esqueça os sentimentos, Gina. E, por amor à justiça, não se deixe seduzir pelo mafioso maldito.
Ri.
Uma risada breve, sem graça.
— Isso nunca vai acontecer.
Nos despedimos, eu prometendo ter algo concreto nos próximos meses, desliguei com os dedos trêmulos.
Filippo está começando a confiar em mim. Dizer que estou apenas cuidando dele seria uma mentira. Estou ocupando o lugar de uma mulher importante em sua vida. Enfermeira? Talvez. Mas agora também noiva. Ou quase isso. O anel está a caminho, e eu... vou aceitá-lo. Quanto mais perto, mais arriscado — e mais certeiro será o golpe.
Olhei para o meu reflexo no espelho do banheiro, prendi o cabelo em um coque simples. Apaguei qualquer vestígio de Gina do meu rosto. Letícia voltou. Pele pálida, expressão serena, sorriso contido. Dei uma última olhada no teto, certa de que ali não havia olhos espiões.
Abri a porta e segui pelo corredor silencioso. O piso de mármore ecoava com meus passos contidos. As pinturas antigas nas paredes me observavam como sentinelas. Respirei fundo. Estava no ninho.
Filippo estava deitado na cama, com o livro sobre o peito.
— "Moby d**k" — ele disse ao me ver. — Sabe, esse livro me acompanha desde a adolescência. Nunca consegui terminar.
— Já li. Três vezes — menti, sentando na poltrona perto da janela. — Melville tem algo de... hipnótico.
Ele sorriu de canto. Um sorriso que não chegava aos olhos.
— Você não parece alguém que lê esse tipo de coisa.
— Gosto de histórias sobre obsessão. E sobre a natureza humana. Também gosto de ler sobre... a máfia.
Filippo franziu o cenho, quase imperceptível.
— Prefiro outros temas. A máfia não é literatura pra mim.
— Por quê?
Ele fechou o livro devagar.
— Porque às vezes é melhor fingir que certos mundos não existem. E, quando eles existem, é melhor não tocá-los.
Fugiu.
De novo.
Mas não insisti. Não dessa vez.
Queria que ele falasse qualquer coisa, que fosse abrindo essa tampa de concreto que cobre essa fossa onde ele nasceu.
Pensei em lhe fazer uma pergunta, foi então que a voz surgiu, suave como seda molhada. Uma canção melancólica, sem pressa, sem afetação. Tocou algo em mim. Talvez pela sinceridade, talvez pela beleza. Eu não conhecia a letra, mas parecia familiar.
— Que voz linda... — sussurrei, me levantando levemente para escutar melhor.
Filippo cerrou o maxilar. O livro escorregou de seu peito para o colchão.
— É Annália.
Annália.
A barriga de aluguel.
A menina de olhos tristes que evita todos os olhares e, ainda assim, é o centro deles.
Eu percebi. Percebi o nome escorregar como um veneno na boca de Filippo. A forma como sua expressão se fechou, como o maxilar se endureceu, como o olhar desviou para o chão.
— Você não gosta dela? — perguntei, quase provocando.
— Não é da sua conta — respondeu, e se arrependeu no mesmo instante.
Mas já era tarde. Eu vi.
Vi o abismo naquele olhar.
Tentei retomar o controle.
— Você já leu “O Poderoso Chefão”? — falei, mudando o tom para algo mais leve. — Os bastidores da máfia são...
— Chega — ele cortou, ríspido. — Eu já disse que não gosto desse tipo de assunto.
Levantei-me da poltrona com um suspiro disfarçado. Era cedo demais para mexer nesses cadeados que eu ainda não tenho as chaves. Caminhei de volta em direção à cama, e ele desviou o olhar, fingindo arrumar os travesseiros.
— Você pode fechar a porta? — pediu, com a voz baixa, quase como um grito silencioso.
— Claro.
— Não quero ouvir a voz dela.
Atendi ao seu pedido. Com calma, fechei a porta, deixando para trás o doce eco de Annália.
Mas ele... ele não conseguiu se livrar disso.
Levou consigo o som, cravado em seu peito.
E eu percebi que havia algo ali que ainda não fosse totalmente clara.
Gradualmente, tudo vai se revelando.
Olhei para aquele homem que escapou de uma doença c***l enquanto muitas pessoas boas sucumbem em semana, meses ou dias. Ma ele, raça r**m, se salvou.
Reafirmei mentalmente:
Eu não sou Letícia.
Não sou sua noiva.
E essa missão não é apenas por justiça.
Mas o que realmente me assusta — o que me faz tremer — é que, mesmo envolta em mentiras, me aproximo demais da verdade.
E a verdade...
A verdade é que talvez eu esteja me perdendo no som da sua voz ao pronunciar meu nome.
Mesmo que esse nome não me pertença.