Isabela.
Os dias na favela começaram a se desenrolar.
Talvez essa seja uma coisa boa, não é?
O quartinho nos fundos da casa da minha tia, embora apertado e quente, era meu novo lar. Minha tia, Dona Cida, era uma mulher de riso fácil e coração grande. Ela me acolheu com simplicidade e a resiliência de quem vive aqui há décadas.
Ela não tinha muito, mas o pouco nesse momento foi acolhedor.
Comecei a ajudar minha tia pelas manhãs. Essa mulher ganhava a vida vendendo doces na rua. As coisas nesse lugar não eram fáceis, e é difícil encarar algumas realidades, mas quando elas estão bem estampadas em nossa frente, não há muito o que se fazer há não enfrenta-las.
No tempo livre, quando o calor diminuía, tentava organizar os poucos livros que consegui salvar da minha vida antiga.
A leitura, antes um prazer descompromissado, tornou-se um refúgio, uma janela para um mundo onde as preocupações eram outras.
Nos momentos em que eu segura um deles na minha mão, meus olhos se tornavam capazes de ser, pelo menos por momento, dentro das paginas. Era como se eu pudesse passar alguns minutos do meu dia vivendo uma vida que não era.
Mesmo com a ajuda da minha tia, a realidade era dura. Cada centavo contava, e a busca por um emprego estava se mostrava quase impossível, dada a falta de oportunidades na região. Os olhares curiosos e por vezes desconfiados dos moradores me faziam sentir uma estranha, um peixe fora d'água.
Eu só queria voltar a me encaixar. Só queria que a minha vida volta-se a ter um pouco de normalidade, embora eu nem saiba mais qual é a parte normal da minha vida.
Entre o burburinho das crianças brincando e o som do funk que ecoava das caixas de som, tinha uma imagem que me cercava. Aquele cara, com seus olhos intensos e aura perigosa, persistia em minha mente.
Eu o via de relance algumas vezes, sempre imponente, sempre com um grupo de homens ao redor. Parecia que ele nunca abaixa a guarda, que estava sempre em alerta e no meio disso tudo minha curiosidade só aumentava.
— Vai sair hoje? – Dona Cida para próximo a mim.
Como sempre, estava perdida em pensamentos, por isso, levei um susto ao ouvir sua voz.
— Preciso continuar tentando. Preciso de um emprego.
— Vai com calma menina. Logo as coisas se ajeitam. Além disso, aqui você não vai passar fome. Não tenho muito, mas tenho o bastante para alimentar duas bocas.
— Eu poderia já estar ajudando mais se tivesse um emprego.
— Você vai conseguir alguma coisa.
— É só o que eu quero.
— Quer ir comigo hoje? Pode me ajudar a fazer as vendas.
— Sim!
— Você precisa sair mais. Sei que a realidade desse lugar é diferente do que estava acostumada, mas não vai ganhar território se não der as caras.
— Está me sugerindo ir para os bailes funk no alto do morro? – digo rindo. Ela sabe melhor do que ninguém que isso não vai rolar.
— Talvez. Faça uma amiga, aproveita um pouco a vida. Os livros não vão te dar a resposta de tudo. Você só precisa se lembrar de tomar cuidado.
— As pessoas aqui não vão muito com a minha cara.
— Bobagem. Todo mundo aqui anda com a guarda alta. Você só precisa se acostumar e tomar cuidado em quem confia.
— Vou ver o que consigo – digo sorrindo.
— Vêm, vamos para rua vender esses doces. Quero voltar com a cesta vazia hoje.
Talvez minha tia tenha razão e eu precise tentar fazer alguma amizade. Pode ser que a minha vida aqui ficasse melhor se isso acontecesse.
Saímos e seguimos em direção a saída da favela. Minha tia conseguiu vender alguns quitutes enquanto descíamos as vielas.
— Tia, o patrão pediu para pegar a cesta. Vou ficar com tudo o que a têm ai.
— Neco... – a voz da minha tia sai um pouco assustada. O garoto a minha frente deve ter no máximo quatorze anos. E sua postura é tão rígida, que assusta qualquer pessoa.
— Quanto é? – o garoto, que agora eu sei que chama Neco interrompe Dona Cida e não deixa que ela continue — O patrão vai pagar.
Fico surpresa. Achei que perderíamos toda a venda dessa amanhã, mas pelo visto, vamos poder ir para casa mais cedo.
Minha tia faz as contas rápidas. Tudo que ela têm na cesta da oitenta reais. Vejo o garoto tirar uma nota de cem do bolsa da bermuda e entregar a minha tia.
— Fica com o troco.
— Não vai ter problemas?
— Não, o patrão falou que depois pega mais com a senhora.
Todo mundo aqui sabia quem era o dono do morro.
Eu ainda não o vi pessoalmente, mas há sempre alguém falando sobre "Galvão"
Ele era temido e respeitado e o pouco que eu sei é que ninguém aqui ia atrás de problemas com ele, ou com algum dos caras que estavam no comando.
Lembro de uma noite, tia Cida falar algo sobre um tal de Mateus. Ele era tão ou mais temido do que o próprio Galvão.
Eu ainda também não sei quem é, e sendo sincera, acho que nem quero conhece-los.
Vejo tia Cida entregar a cesta com todos os doces que fizemos essa amanhã e depois de guardar o dinheiro no bolso, Neco nos da as costas e sai.
— Bom, acho que teremos mais tempo livre no dia de hoje. Vêm minha filha, vamos aproveitar que estamos com o dinheiro e ir até a venda.
Com apenas um aceno de cabeça, concordo com tia Cida. Estou prestes a voltar a caminhar quando sinto algo me queimando.
Pensei em ignorar essa sensação, mas quando me dou conta, meus olhos recaem sobre uma das vielas estreitas do morro.
Ele não estava tão perto. Mas de onde estou consigo ver seu jeito firme e sua expressão fechada me encarando. Tenho o visto pouco desde que me mudei e é sempre assim, de longe. Mas depois daquele dia, nunca mais trocamos uma única palavra.