Draco
Faz três dias e o morro ainda fala.
Não de um corpo encontrado na vala.
Nem de um acerto entre facções.
Falam dela. Da moça da ONG.
— Cê soube? A Luna peitou o Draco.
— Diz que ela bateu de frente na chuva, sem tremer.
— Uma mulher, mano! Louca ou corajosa?
Louca.
É o que eu repito pra mim mesmo, toda vez que escuto o nome dela ecoar pelos becos como tamborim fora de hora. Porque não é só fofoca. É veneno.
Nesse lugar, homem que manda e abaixa a cabeça pra mulher — ainda mais uma que não veste ouro, não rebola na laje, não chama de “chefe” — perde respeito.
E respeito aqui vale mais que dinheiro. Mais que vida.
Hoje, no fim da tarde, fui cortar o papo.
— Esse assunto morre hoje — falei no Bar do Mário, onde metade das línguas afiadas se encontra. — Quem falar da garota sem minha permissão, perde dente.
Eles calaram na hora. Mas o estrago já tava feito. Não pela língua dos outros. Pela reação que eu mesmo não consigo controlar.
Porque o problema não é o que dizem.
É o que eu lembro.
A boca dela molhada pela chuva.
O olhar que fura.
O jeito que não tremeu.
E a p***a do nome dela na minha cabeça, todo dia, sem trégua.
Luna.
Parece nome de paz. Mas carrega guerra.
Voltei pra base, tentei focar nos negócios. Tinha carregamento pra organizar, rota pra ajustar, e um traíra pra rastrear. Mas nem os números batiam como deviam, porque a maldita cena voltava sempre.
Ela andando embora de mim. De costas. Vitoriosa.
E eu? Calado.
Na minha cabeça, isso era imperdoável.
Mas na real?
Na real, eu tava curioso. Intrigado. E isso era ainda pior.
***
Mais tarde, o Buda — meu braço direito — veio falar comigo:
— Draco, tu vai deixar assim? A mina tá ganhando moral com os moradores. Dizem que ela fala mais alto que tu agora.
Olhei fundo nos olhos dele. Buda não me afrontava, só cumpria o papel: lembrar que chefe que não impõe medo, vira piada.
— Não esquece quem manda aqui — respondi baixo. — Se eu não queimei ainda... é porque ainda tô decidindo se vale a pena.
Ele assentiu. Mas não entendeu.
Nem eu.
Naquela mesma noite, peguei a moto e fui. Sozinho. Sem aviso. Morro acima, entre vielas sujas, cheiro de fritura e gritos de criança.
Parei uns metros antes da ONG. A casa colorida ainda tinha luz acesa. Ouvi risos, vozes infantis. Um som estranho pra esse lugar.
Fiquei ali, encostado na parede, ouvindo. Esperando.
Ela saiu pouco depois. Cansada. Suada. Mas viva. Com aquele andar apressado e firme. Mochila nas costas. Um fichário contra o peito.
Luna.
Pensei em chamá-la.
Pensei em intimidar, só pra recuperar meu lugar na cabeça dela.
Mas não fiz nada.
Só observei.
Porque se tem uma coisa que aprendi nesse mundo... é que certas guerras se vencem no silêncio.
E essa mulher, por mais que me desafie, não vai sair de cena assim fácil.
Ela me deve um recuo.
E eu vou cobrar.
Do jeito mais lento possível.
Luna
Tem coisa que a gente sente antes de entender.
Não é grito.
Não é toque.
É presença.
E nos últimos dias, eu sentia.
Começou com passos atrás dos meus. Sempre distantes, sempre calados, mas sincronizados demais pra ser coincidência. Depois, vieram os olhares. Não os normais — os do morro, que sempre te medem pra saber se é polícia, otária ou isca. Esses eu já conheço. Mas os que me seguiam agora... tinham peso.
Era como se meus movimentos estivessem sendo anotados.
Na ONG, fingi rotina. Mas o corpo já andava em alerta: tensão nas costas, olhos varrendo os cantos, mão sempre próxima do celular, mesmo sabendo que, se fosse ele, uma ligação não ia adiantar nada.
Ele.
Draco.
Desde aquele dia em que o enfrentei na viela e ele me olhou como se tivesse me engolido inteira, nada voltou ao normal.
E agora, era como se ele estivesse por perto. Invisível, mas pulsando no ar.
***
Na quarta, voltei mais tarde da ONG. Chuva miúda caía, deixando o chão escorregadio e o morro com cheiro de barro molhado e óleo queimado. Eu estava com pressa, querendo evitar o breu das vielas.
Foi quando vi.
Uma moto. Preta. Encostada perto da escadaria. Ninguém por perto. Só o ronco baixo do motor, ainda quente.
A mesma que vi outro dia na esquina da padaria. A mesma que senti cruzando devagar quando saía da estação.
Meu estômago virou. Olhei ao redor. Nada. Só os postes falhando e o som abafado de um baile lá longe.
Acelerei o passo. E aí veio o instinto: parei de andar, de repente, no meio da viela.
Atrás de mim, alguém também parou.
Não olhei. Só ouvi. Respirando. Bem perto.
E então a voz, grave, baixa, cortou o silêncio:
— Você anda tarde demais, Luna da ONG.
Gelei.
Mas não virei. Não ia dar esse gosto.
— E você persegue moça tarde demais, Draco do morro?
Silêncio.
Ele se aproximou. Devagar. Como fera acostumada a cercar antes de atacar.
— Eu cuido do que me interessa.
— E desde quando eu te interesso?
Agora sim, virei.
Ele estava ali. Corpo inteiro coberto de preto, olhos brilhando na sombra. Tinha cheiro de chuva e perigo. Mas o olhar… não era de quem ia me ferir.
Era de quem queria me ter.
— Desde que você me desafiou na frente dos meus homens. Desde que gritou com arma apontada. Desde que não abaixou os olhos.
— Eu não vim pro morro pra baixar os olhos, Draco.
— Eu percebi. — Ele sorriu de lado. Mas era um sorriso torto, que doía de olhar. — E isso... me complica.
Ficamos em silêncio. O tempo congelou ali, entre a tensão e o desejo, entre o medo e o absurdo de algo se acender no lugar mais errado do mundo.
Ele se aproximou mais um passo. Estava perto demais agora. Senti o calor do corpo dele. Os olhos escuros mergulhados nos meus.
— Você sabe que não devia estar aqui sozinha — ele murmurou. — Você não é daqui. Você não fala como a gente. Não anda como a gente. Mas o morro já te engoliu.
— Eu vim pra ajudar.
— Você veio pra sangrar.
As palavras dele bateram fundo.
Mas eu não recuei.
— Então me observa à vontade, rei do morro. Mas saiba: eu também sei olhar de volta.
Ele riu. Um riso curto, quase sem alegria. Depois virou as costas.
— Tá jogando um jogo perigoso, Luna.
— E você tá jogando comigo?
Ele parou, de costas.
— Ainda não.
E sumiu na escuridão.
Voltei pra casa com o coração aos saltos, os pensamentos em labirinto. Não sabia se o que eu sentia era medo, raiva ou outra coisa ainda mais confusa. Mas uma coisa era certa:
Ele me vê.
E agora… eu vejo ele também.