Capítulo 6 – Sangue no recreio

1429 Palavras
Luna Tem dias que o morro acorda em silêncio. Mas não é paz. É aviso. Naquele dia, nem os passarinhos piavam. O céu estava pesado, e até o vento parecia carregar segredo. Eu sabia que algo ia acontecer. A gente sempre sabe. Mesmo assim, fui pra ONG. Porque se a gente só aparece nos dias fáceis, a gente não serve pra estar aqui. As crianças chegaram mais devagar. Sem a correria de sempre, sem o barulho bom da inocência. Pedro ficou o tempo todo de olho na janela, como se esperasse o mundo desabar a qualquer momento. Célia nem ligou o fogão. Só ficou sentada, rezando com o terço na mão. E eu... segui tentando manter normal. Mas quando o relógio bateu três da tarde, o mundo virou. Dois homens armados entraram sem bater. Rostos cobertos, armas apontadas. Gritos. — Todo mundo pro chão! — um deles berrou. As crianças choraram. Pedro se colocou na frente. Célia gritou por Deus. E eu… fui até eles. — Aqui tem criança! Vocês tão malucos? Um deles riu. — Criança cresce. Cresce e vira inimigo. Melhor aprender cedo o que é respeito. — Respeito? Isso é covardia! O outro me empurrou com o cano da arma. — Fica quieta, Luna. Tu já falou demais. Hoje é só pra deixar claro: ou tu para… ou a ONG para contigo. Minha mão tremia, mas eu não baixei os olhos. Não dessa vez. Foi aí que se ouviu o primeiro tiro. Não dentro. Lá fora. Depois outro. E outro. Uma rajada. Os dois caras se olharam. Deram um passo pra trás. E antes que pudessem fugir, a porta foi arrombada com um chute. Draco. Arma na mão, respiração pesada, olhos em brasa. Atrás dele, quatro dos seus. Todos armados. Todos prontos pra guerra. Mas ele não atirou. Ele olhou pros dois homens como se estivesse olhando pra traidores. Como se não fossem da sua laia. — Vocês entraram na ONG? — A gente só veio dar um recado, chefe… — Eu mandei? Silêncio. — Eu mandei?! — Não, mas… Dois tiros. Rápidos. Um no joelho de cada um. Eles caíram berrando. As crianças gritaram. Célia caiu de joelhos. Pedro puxou todo mundo pro canto. E eu... continuei de pé. Draco olhou pra mim. As mãos ainda tremendo da fúria. — Eles agiram por conta. Não foi ordem minha. — Mas foi por tua causa. Ele não respondeu. — Isso aqui é sagrado — falei, apontando ao redor. — Aqui ninguém entra com arma. Ninguém grita com criança. Aqui é o pouco de vida que sobra. Draco guardou a arma. Passou as mãos nos cabelos, como quem tenta segurar o caos por dentro. — Eu sei. Eu sei, c*****o. Se virou pros homens. — Leva esses dois. Some com eles. Hoje, não tem perdão. Quando ficou só ele na sala, o silêncio ficou grosso. Denso. Eu olhei pra ele. Ele olhou pra mim. Os dois sujos de tensão. — Isso tudo... porque eu te enfrentei? Ele negou com a cabeça. — Isso tudo porque tu me afetou. Deu um passo. Depois outro. Parou perto demais. — Tu não sai da minha cabeça, Luna. Nem dormindo, nem acordado. E quando te ameaçaram, eu quis matar meio mundo. — Então mata esse desejo também, Draco. Antes que ele destrua tudo. Ele chegou mais perto. A voz baixa, perto do meu ouvido. — Tem coisa que nem a bala resolve. E naquele momento, eu odiei o que senti. O calor, o arrepio, a vontade. Porque era errado. Porque era sujo. Porque era ele. Mas também era inevitável. Depois que ele saiu, a ONG ficou em ruínas. As crianças foram levadas pra casa. Pedro passou o pano no sangue do chão. Célia chorava baixinho na cozinha. E eu… fiquei parada. Porque naquele dia, o morro me mostrou duas coisas: Que ninguém está seguro. E que, mesmo tentando negar, eu já tô marcada. Por ele. Pelo desejo. Pela guerra que começa quando se tenta amar o perigo. Draco Já vi homem morrer com um tiro no peito e outro no orgulho. Já mandei sumir com traidor no esgoto. Já vi mulher implorar pela vida de filho. Mas não lembro da última vez que uma olhada me travou o sangue. Luna. A menina da ONG. A mulher que peitou meus homens. Que encarou minha arma com a cara limpa. Que mandou no meu morro por dois minutos — e ninguém riu. Eu devia ter calado ela ali. Devia ter deixado os moleques fazerem o que sabem. Mas não fiz. Porque quando olhei pra ela, vi coisa que não entendo. Nem quero. E agora… tô preso nessa p***a. Depois daquele dia, ficou no ar. A tensão. O medo. O nome dela na boca dos outros. — A mina bate de frente com o chefe? — Diz que ele ficou mexido… — Se fosse qualquer outro, já tava no saco preto. Eles falam. Observam. Testam. E eu escuto. Mas quando mexem com ela sem minha ordem… aí não. A ONG é dela. E ela é… Não sei o quê ela é ainda. Mas não é de ninguém. E não vai ser deles. Então mandei buscar. — Chama ela. Discreta. Sem alarde. Quero falar. Só eu e ela. Tiago, meu braço direito, arqueou a sobrancelha. — Tem certeza? — Tu ouviu errado? Vai. Escolhi o lugar: casa no alto do beco da Laje do Céu. Vista larga. Só o barulho da cidade ao fundo. Onde a favela inteira se mostra — e ninguém escuta grito. Esperei em pé. Mão no bolso, cigarro apagado entre os dedos. Ela chegou de mochila nas costas, camiseta simples, rosto limpo. Mas o olhar… o olhar era guerra. — Que foi? Vai me fuzilar no olhar de novo? — falei, com meio sorriso. — Você me chamou, não fui eu quem veio. — Sabia que tu vinha. Curiosa demais pra negar. Ela cruzou os braços. — Curiosa não. Prevenida. — Mesma coisa. Quem vem pro alto do morro sozinha pra falar com bandido sabe que corre risco. Mas tu não tem medo, né? — Tenho. Mas aprendi a ir com medo mesmo. Eu ri. Pequeno. Verdadeiro. — Senta aí. Ela não sentou. Ficou de pé. Me encarando como se estivesse numa delegacia. — Fala logo, Draco. O que você quer comigo? — Entender por que caralhos tu me tirou do eixo. Ela piscou. Surpresa. Mas só por dentro. Por fora, permaneceu de gelo. — Eu não tiro nada de lugar. Você que não gosta de ser desafiado. — Pode ser. Mas contigo… é diferente. — Diferente como? — Como se fosse pessoal. E eu nem te conheço. Silêncio. O vento bateu. Ela olhou pro chão. Depois pros meus olhos. — Então por que chamou? — Porque não gosto de ficar devendo. E tu tá me devendo. Me deve o nome que sujou. Me deve os dias que não durmo. Me deve o gosto r**m de alguém me olhando sem medo. — Não é dívida, Draco. É consequência. Me aproximei. Um passo de cada vez. — Então me dá a resposta: tu me odeia? — Não. — Tem medo? — Sim. — E mesmo assim me encara? Ela assentiu. E foi aí que entendi: era corajosa… mas também era frágil. E isso me feriu mais que bala. — Tão dizendo por aí que tu vai me derrubar. Ela deu de ombros. — Eu só quero proteger as crianças. — Então por que parece que tu quer me consertar? Silêncio de novo. Mas dessa vez, foi ela quem chegou mais perto. — Porque quando te olho, vejo duas versões. A que o morro criou. E a que ainda tenta não virar monstro de vez. Aquela frase bateu fundo. Porque era real. Porque era o que eu escondia até de mim. A raiva passou. O controle também. E o desejo… virou uma febre que eu não sabia controlar. Segurei o queixo dela com firmeza. Ela não recuou. — Não encosta no que tu não tá pronta pra carregar, Luna. — E você? Tá pronto pra lidar com quem não abaixa a cabeça? Eu respirei fundo. E soube que dali em diante, não tinha volta. Ela mexia onde não devia. Falava o que não podia. Mas já era minha sentença. Mesmo que eu não tivesse coragem de chamar de amor. Ainda. Antes dela sair, falei: — Tu tá marcada. Ela parou na porta. — A ONG? — Tu. — E o que isso significa? — Que se alguém encostar, morre. — E se for você? Não respondi. Porque até eu tinha medo da resposta.
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