Acordei com a sensação de que não tinha dormido. Talvez porque, sinceramente, eu não tinha. Passei a madrugada revirando no colchão, ouvindo cada barulho da rua como se fosse passo de PM entrando pra me catar. A cabeça ainda martelava a operação inteira, como se estivesse presa em looping. Às vezes eu sentia cheiro de gás lacrimogêneo do nada. Outras vezes, escutava estampido que nem existia.
É assim que a favela molda a gente: por dentro, onde ninguém vê.
Quando levantei, o sol já batia no chão de cimento da minha casa. Dona Ana tava na cozinha, sentada na mesa, com o olhar perdido em algum lugar do passado. O café esfriando à frente dela. O rádio ligado baixo, como sempre — mas a notícia era outra.
— Operação deixa quatro mortos na Penha
— Denúncias de a***o…
— Moradores relatam terror durante a madrugada…
Eu respirei fundo.
Era sobre mim. E também não era. Era sobre nós. Sobre o morro inteiro.
— Mãe — chamei, puxando a cadeira.
Ela não respondeu. Só continuou olhando pra frente, rosto amanhecido com vinco de noite m*l dormida. Tinha olheiras fundas, como se tivesse envelhecido uns cinco anos de ontem pra hoje.
— Mãe.
Dessa vez ela piscou, como quem volta de longe.
— Fiz café — disse baixinho, como se essa fosse a única frase possível.
— Eu vi.
Silêncio.
Peguei a xícara, mas nem coloquei açúcar. Minha mão tremia só de imaginar o que ela ia dizer.
— Você não devia estar nessa vida, Thayan.
— Mãe… — comecei.
— Eu te carreguei nove meses — ela continuou, voz sem força. — Te dei banho, te dei comida, te dei roupa. Quando teu pai sumiu, eu que assumi tudo. Quando teu irmão morreu, eu que segurei o mundo caindo na tua cabeça. E agora… agora você acha que eu vou conseguir segurar de novo?
— Eu não queria te machucar.
— Então por que tá me matando aos poucos?
Fechei os olhos. Era pior que tiro. Pior que PM, pior que guerra.
— Eu tô fazendo o que tem que ser feito.
Ela riu — um riso triste, cansado, cheio de desespero escondido.
— Bandido sempre fala isso antes de morrer.
Meu peito travou.
— Não fala assim.
— Vou falar, sim — ela cortou. — Enquanto você morar debaixo do meu teto, eu vou falar. Você tá achando que isso aqui é o quê? Que você é quem? Essa vida não tem fim feliz, Thayan. Não tem. Vai acabar te levando igual levou teu irmão.
Senti o mundo balançar por dentro. Doeu de um jeito que eu não sabia descrever.
— Ele morreu porque confiou na pessoa errada — respondi, segurando a raiva. — Eu não vou cometer o mesmo erro. Eu tô me cuidando.
— Cuidando? Isso é “se cuidar”? Entrar em confronto com polícia? Sair cheirando a morte? Você acha mesmo que isso é p******o? Que isso é vida?
Meu silêncio respondeu tudo.
Dona Ana respirou fundo, juntando coragem.
— Você vai sair disso.
— Não vou.
— Vai, sim.
— Não, mãe — falei baixo, mas firme. — Não tem volta.
Ela levou a mão à boca, tentando segurar o choro. Não conseguiu.
— Então… — a voz falhou — então um dia eu vou perder você também.
Eu queria abraçar ela. Queria proteger ela. Mas como que eu protejo alguém… de mim mesmo?
Saí de casa antes do sol subir direito. Precisava respirar, limpar a cabeça. O morro tava esquisito, com aquele cheiro de ** no ar, como se tivesse sido lavado com cinza. Os barracos ainda fechados, as pessoas sussurrando, as vielas com cara de ressaca.
Passei por dois meninos jogando bola no campinho. Eles pararam quando me viram. Trocaram olhar. Um deles falou:
— E aí, Revoltado.
O apelido bateu diferente no meu peito. Parecia pesado, parecia título. Parecia verdade.
— Tranquilo? — respondi.
— Tranquilo nada — o menor disse, animado demais. — Tão falando que você derrubou dois PM ontem.
Fiz sinal pra ele baixar o tom.
— Fala baixo, menino. Você grita demais.
— Só tô repetindo o que tão comentando…
— Guarda o comentário pra você.
Ele riu, meio sem graça, mas obedeceu.
Continuei subindo.
Mais à frente, encontrei quem eu já esperava.
Mais Novo encostado na parede da barbearia, chupando um picolé, como se o morro não tivesse virado zona de guerra.
— Olha ele aí… — ele abriu o sorriso torto. — Meu cria preferido.
— Você tá cedo demais acordado.
— Dormir pra quê? A noite já tirou meu sono. — Ele bateu no meu ombro. — Ontem você botou respeito, Revoltado.
— Não gosto desse bagulho de ficar falando.
— Problema seu — ele riu. — O morro tá falando por você.
— Não devia.
— Devia sim. O morro só respeita quem vai pra linha de frente. Você foi. Você ficou. Você voltou. Isso te dá nome.
Suspirei.
Antes que eu respondesse, passos mais pesados ecoaram na rua.
Paulista.
Sempre com aquele semblante frio, como se tivesse calculando o mundo inteiro.
— Bom dia, Revoltado — ele falou, voz tranquila demais.
— Bom dia.
— O chefe quer falar com você mais tarde.
Meu estômago afundou.
— Sobre o quê?
— A operação. — Ele me analisou. — E sobre você.
Mais Novo falou, rindo:
— Relaxa. Isso é coisa boa. Chefe curtiu como você se comportou.
Paulista completou:
— Ele quer te alinhar com a equipe de vez.
Respirei fundo.
— Que horas?
— Depois do almoço. No ponto de cima.
Assenti.
Paulista deu alguns passos, mas voltou:
— A PM já tem descrição tua.
Meu corpo gelou.
— Como assim?
— Tava escuro, mas alguém viu um cara do teu porte avançando na Nova Brasília. — Ele apertou os olhos. — Tem boato de que tão rodando com foto de alguns suspeitos.
Senti o ar sumir.
— Estão indo atrás de mim?
Mais Novo mordeu o picolé, tranquilo.
— Do jeito que você derrubou um deles… tão sim.
Paulista falou baixo:
— Agora você não é só promessa. Virou alvo.
Engoli seco.
— E agora?
— Agora? — Paulista deu de ombros. — Você segura sua postura. Mostra que não treme. E faz o que precisa ser feito.
Mais Novo completou:
— E fica esperto. Eles vão tentar te pegar no erro.
Respirei fundo.
— Beleza.
Eles subiram juntos, sumindo pela curva.
E a palavra ficou rodando na minha cabeça:
Alvo.
Passei o resto da manhã andando pelo morro, olhando cada esquina com cuidado redobrado. Não era medo. Era sobrevivência. A gente aprende isso cedo. Todo carro desconhecido vira ameaça. Todo barulho na laje vira alerta. Todo rádio estalando vira aviso.
A favela tava num clima estranho — mistura de luto, adrenalina e fofoca quente.
Parei no mercadinho do seu Ernane pra comprar um refrigerante. Ele me olhou com aquele olhar de quem sabe, mas finge que não.
— Terra quente ontem, né? — comentou, embalando pão de uma cliente.
— Foi.
— E hoje vai ser também — murmurou. — O morro não esquece.
Paguei e saí.
O celular vibrou.
Navÿlla.
Vem aqui. Preciso falar contigo. Agora.
Meu coração acelerou.
Cheguei na porta dela em menos de dois minutos. Ela abriu rápido. Os olhos vermelhos, cabelo preso às pressas, expressão de desespero.
— Entra.
Eu entrei.
Dona Marta tava de pé, braços cruzados.
— Ele não — ela disse imediatamente.
Navÿlla virou pra mãe.
— Mãe, por favor…
— Eu já falei, Navÿlla. Esse menino vai te arrastar pro buraco junto com ele. Eu não vou permitir.
— Eu amo ele! — Navÿlla explodiu. — Você entende isso? Eu amo ele!
— Ama? — dona Marta gritou. — Ama um cara que chegou aqui todo sujo de sangue? Ama um cara que tá botando a polícia pra virar a comunidade de ponta cabeça? Ama um cara que vai morrer antes dos trinta?
Eu ergui o olhar.
— Com todo respeito, dona Marta…
— Não tem respeito nenhum aqui! Se tivesse, você não botava minha filha nesse fogo cruzado!
Navÿlla segurou meu braço.
— Mãe, a senhora tá machucando a gente.
— EU TÔ SALVANDO VOCÊ!
O silêncio caiu pesado.
Navÿlla deixou uma lágrima escorrer.
— Mãe… me deixa viver minha vida.
— Não. — dona Marta respondeu firme. — Não enquanto sua vida estiver amarrada num homem que já escolheu morrer.
Respirei fundo.
— Eu não vou morrer.
— Já morreu e não sabe — ela rebateu. — Quem entra pro crime morre no primeiro tiro que dá. O resto é teimosia.
O mundo parou.
Navÿlla chorou.
— Mãe… por favor… eu preciso de espaço.
Dona Marta recuou como se tivesse levado um golpe.
— Então tá. — ela disse. — Se é isso que você quer…
Virou as costas e bateu a porta do quarto.
O barulho ecoou.
Navÿlla desabou no meu peito.
— Eu não sei o que fazer… — ela chorou. — Tô perdendo ela. Tô perdendo você. Tô perdida.
Abracei forte.
— Você não vai me perder.
— Você não pode prometer isso — ela respondeu. — Não quando tão atrás de você.
Me afastei.
— Quem te falou?
— O morro inteiro sabe, Thayan. Até minha mãe sabe. Tão rodando teu nome na PM. Disseram que você derrubou um deles. Eles tão caçando “o rapaz do casaco cinza”. E você tava com casaco cinza ontem, não tava?
Meu estômago fechou.
— Tava.
Ela segurou meu rosto.
— Você precisa se esconder! Ou sair daqui! Ou fugir!
— Eu não vou fugir.
— Por quê?
— Porque fugir é assinar sentença. Se eu sumo, eles vêm atrás. Se eu me escondo, eles acham. Se eu corro, a facção acha que eu dei pra trás.
— Então… o que você vai fazer?
— Vou resolver.
Eu não sabia o que isso significa.
Mas tinha que parecer que sabia.
Saí da casa dela com o peito pesado. Enquanto descia o beco, ouvi um rádio estalando — não o meu.
— Tem dois caveirão subindo. Tão atrás do Revoltado.
Parei.
Olhei pro céu.
E entendi:
Ontem, virei homem.
Hoje, virei alvo.
Agora é acerto ou queda.