009

1480 Palavras
Acordei como quem volta de um lugar onde não deveria ter ido. Não sei se dormi de verdade ou se só apaguei por cansaço, mas quando abri os olhos, senti aquela mesma sensação de sempre: peso. Um peso que não começa no peito nem termina na cabeça, é um peso que mora na alma — se é que eu ainda tenho uma. A luz que entrava pela janela parecia forte demais pro meu estado. O sol batia no lençol como se estivesse tentando expulsar a escuridão que eu carrego por dentro. Mas não adianta. Tem coisa que nem o sol consegue clarear. Levantei devagar. Meu corpo protestou, como se estivesse cansado de fingir que aguenta. Passei a mão no rosto, senti a pele quente, meio grudenta. No fundo, eu ainda tava com o cheiro da madrugada grudado em mim. Cheiro de rua. Cheiro de pólvora imaginária. Cheiro do que eu virei. Quando saí do quarto, vi minha mãe na sala, dobrando umas roupas. Ela sempre dobra roupa quando tá tentando esquecer o que sente. A televisão tava ligada em um volume baixo, passando uma novela velha que ela já viu mil vezes. Ela olhou pra mim, aquele olhar rápido que faz um raio-x da alma. Mas não disse nada. E esse silêncio dela… é o pior. — Quer almoço? — ela perguntou, sem levantar muito a voz. — Não tô com fome não, mãe — menti. Ela franziu um pouco a testa, mas não insistiu. Mãe sente quando o filho tá quebrado, mas também sabe quando não adianta perguntar. Ela tem medo das respostas que eu poderia dar. Me sentei no sofá um instante, mas a casa parecia pequena demais pra mim. Pequena e apertada. Casa, pra mim, ultimamente, tem cheiro de amor. E amor é uma coisa que dói quando a gente sabe que não merece. Levantei de novo. — Vou dar uma volta ali na rua — falei. — Demora não, Thayan — ela respondeu, ajeitando as roupas no colo. O jeito que ela falou "demora não" me atingiu. Como se ela soubesse que qualquer minuto fora de casa pode ser meu último. Ela não sabe nada, mas sente tudo. Saí. O ar da rua tava abafado, mas melhor que o ar dentro de casa. Fui até a escadaria do beco e sentei ali, olhando o movimento — ou a falta dele. As crianças brincavam mais embaixo, soltando pipa, jogando bola, correndo como se o mundo fosse grande e seguro. Eu fiquei olhando, lembrando de quando eu era como elas. Antes de aprender que o mundo não tem piedade de ninguém. Peguei o celular. Duas mensagens da Navÿlla. Navÿlla: “Aparece mais tarde? Minha mãe tá dormindo.” Navÿlla: “Tô com saudade.” Li e senti algo estranho no estômago. Não sei se era saudade também, ou medo. Porque amar é bonito, mas é perigoso pra quem vive rodeado de morte. Amor faz a gente querer viver… e isso enfraquece. Mesmo assim respondi: “Vou sim.” Guardei o celular no bolso e fiquei observando o morro. O silêncio era diferente. Pesado. Os becos pareciam atentos, as portas entreabertas demais, as janelas fechadas cedo demais. Quem vive aqui sabe: morro não fica quieto à toa. Uma senhora passou apressada, segurando a sacola do mercado contra o peito. Outra trancou o portão antes mesmo de escurecer. O cachorro do vizinho, que sempre late pra tudo, tava inquieto. Esse tipo de coisa eu aprendi a notar depois que meu irmão morreu. Depois daquele dia, desenvolvi um sexto sentido pra tragédia. O morro tem cheiro antes de sangrar. E eu senti esse cheiro. Fechei os olhos por um segundo, tentando afastar a lembrança. Meu irmão caído, a poça de sangue crescendo como um buraco abrindo no meu mundo. Os gritos. O silêncio depois. O Estado subindo o morro como quem caça bicho. Engoli seco. Voltei pra dentro porque a rua tava começando a me deixar tenso. Minha mãe tava na cozinha, mexendo alguma coisa no fogão. Cantarolando baixinho. É a forma dela de pedir pro dia não desandar. Ela não sabe, mas essas cantorias seguram o morro no lugar por alguns segundos. — Saiu pra onde? — ela perguntou, ainda de costas. — Fui ali na esquina, só dar uma volta — menti de novo. Ela assentiu, mas dá pra ver quando a mãe guarda dúvida no peito pra não machucar o filho. Ela sente minha mentira igual farpa no coração. Almoçamos. Ou melhor, ela almoçou. Minha comida parecia cimento. Cada garfada pesava no estômago. Ela falava sobre o preço das coisas, sobre a dor nas costas, sobre ir na associação de moradores amanhã ver vaga pra psicóloga. Eu só respondia “hum”, “sei”, “é”, tentando parecer presente, mas minha mente tava longe. Tava no beco. No silêncio. Na sensação de que algo r**m tava pra acontecer. Quando terminei, fui pro quarto. Tirei a camisa e fiquei sentado na cama, olhando pro chão. O sol entrava pela fresta da janela, cortando o quarto no meio como se dividisse quem eu era e quem eu tô virando. Respirei fundo. A respiração veio pesada, como sempre. Fechei os olhos e a primeira imagem que veio foi meu irmão. O sorriso dele. A voz dele me chamando de “cria do bem”. A voz dele dizendo que eu tinha futuro, que não era pra eu seguir o caminho dos outros, que ele ia segurar a barra até eu subir na vida do jeito certo. E hoje? Hoje eu sou o contrário de tudo que ele queria. Levantei. Andei pelo quarto como quem tenta fugir do próprio corpo. Passei a mão na nuca, no rosto, no peito. Senti aquele aperto familiar. Raiva. Culpa. Medo. Me olhei no espelho. E nem me reconheci direito. O olhar… apagado. A postura… sempre pronta. A expressão… cansada demais pra alguém tão novo. Pareço alguém que vive no escuro há tanto tempo que a luz machuca. E aí, uma frase atravessou minha cabeça como um tiro: "Se o morro explodir hoje… onde eu vou estar?" A resposta veio amarga: No pior lugar possível. No lugar onde meu irmão morreu. No lugar que tá engolindo minha alma aos poucos. Tentei deitar pra descansar, mas não consegui. Minha mente não sabe mais ficar em paz. Cada barulho na rua me deixava alerta. Cada moto passando me fazia levantar o pescoço. Cada grito distante me gelava o sangue. Minha mãe bateu na porta. — Thayan? Tá bem, meu filho? — Tô sim, mãe — respondi, tentando deixar a voz normal. Ela abriu a porta devagar. Me olhou como quem procura rachadura no vidro. — Tu tá pálido. Dormiu m*l? — Tô só cansado. — Olha… se quiser tomar um banho, descansar… eu tô aqui, tá? — ela disse, com aquela voz doce que cura e machuca ao mesmo tempo. Assenti. Ela fechou a porta. Fiquei ali parado, encarando o teto. Pensando em tudo. Na Navÿlla. No morro. No silêncio suspeito. Na minha mãe. No que eu faço quando ela dorme. No que eu virei. Às 16h, o clima ficou mais estranho ainda. O vento parecia carregado. A rua parecia ouvindo alguma coisa que eu ainda não tinha ouvido. Gente andando rápido. Portas fechando. Crianças sendo chamadas pra dentro. E eu senti o corpo inteiro ficar em alerta. Não por plantão. Não por ordem. Mas porque eu conheço o cheiro da tragédia. Ele entra na pele antes de entrar no morro. Troquei de roupa sem pensar. Camisa escura, bermuda simples. Nada que chamasse atenção. Olhei minha mãe da porta do quarto. Ela tava sentada no sofá, mexendo no celular, com os óculos quase escorregando do nariz. Tinha uma paz nela que eu não merecia estar quebrando. Antes de sair, ela perguntou: — Vai onde? — Na Navÿlla. Ela pediu pra eu passar lá — respondi, metade verdade, metade fuga. — Então vai cedo e volta cedo. Hoje tá… estranho — ela disse, franzindo a testa como se tivesse visto um vulto. Mãe pressente o que o filho esconde. Saí. O sol já tava quase sumindo atrás das lajes. O morro inteiro parecia prendendo a respiração. Cada passo que eu dava ecoava dentro de mim como se fosse aviso. Eu andava devagar, atento, com aquele frio no estômago que eu já aprendi a respeitar. E aí, no meio da rua, enquanto eu caminhava sem saber de onde o perigo podia vir, me dei conta: Talvez a pior parte não seja o risco de morrer. Talvez a pior parte seja continuar vivo do jeito que eu tô. Afogado por dentro. Quebrado por fora. Perdido entre o que eu era e o que virei. E, acima de tudo… …começando a achar isso normal. Porque quando a escuridão vira rotina, é aí que o homem morre de verdade — mesmo que o corpo ainda esteja de pé.
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