016

1390 Palavras
Acordei antes do sol. Antes do barulho das motos, antes da caixa de som da viela, antes até do mundo lembrar que eu existia. O corpo ainda estava rígido da adrenalina da missão do dia anterior. Às vezes, depois de um assalto, eu apagava pesado. Outras, como naquela madrugada, parecia que meu próprio sangue estava correndo rápido demais pra me deixar descansar. O fuzil estava encostado na parede. O colete largado na cadeira. E Navylla dormia deitada no meu peito, a respiração leve, calma… alheia à tempestade que eu carregava por dentro. O cordão de ouro que eu tinha dado a ela brilhava na pele. Por alguns segundos, eu senti paz. Pequena. Frágil. Temporária. Logo depois veio o resto. A realidade. Meu celular vibrava desde antes de eu abrir os olhos. Peguei. Twitter. De novo. Eram prints, marcações, comentários, gente me marcando, gente marcando ela, gente falando do baile como se tivesse assistido tudo da primeira fila. O vídeo tinha viralizado mais ainda durante a madrugada. Eu dançando com ela, segurando pela cintura, protegendo ela no meio do baile, o fuzil no meu ombro quando passou um tumulto. Parecia cena de filme — e o povo transformou isso em novela. > “O jeito que ele olha pra ela, pqp 😩🔥” > “Gente, esse homem é bonito DEMAIS, misericórdia” > “Revoltado é o novo sonho de consumo da Penha, comenta aí” > “Se a mulher dele piscar, eu roubo pra mim 😭🔥” Até aí, tudo dentro do esperado. Mas aí vinham as outras. As que furavam. As que cortavam. As que mexiam no que não deviam. > “A mina dele é bonita, mas não é tudo isso… ele merecia mais.” > “Se fosse comigo, eu cuidava MELHOR.” > “Queria ser ela por um dia só pra ver qual é a dele 👀🔥” > “Ele tá com ela porque quer ser fiel, mas duvido durar muito…” Merecia mais. Cuidava melhor. Duvido durar. O gosto amargo subiu pela garganta. A favela amava fofoca. Mas aquele tipo de fofoca não era só barulho. Era veneno. Inveja. E ninguém invejava só a mim — invejavam ela. E isso me corroía. Respirei fundo. Tentei deixar o celular de lado. Não consegui. Abri as DMs. E foi um erro. Mulher mandando foto. Mulher chamando pra encontrar escondido. Mulher dizendo que “não precisa contar pra sua mina 😘”. Mulher perguntando se eu era bom “fora do baile também”. Meu maxilar travou. A dor subiu até a têmpora. Navylla se mexeu, sonolenta. — Que horas são? — murmurou, rouca. — Cedo demais. Dorme aí. — respondi, mas continuei olhando a tela. Ela levantou um pouco o rosto, tentando ver o que eu encarava. — É o Twitter de novo? — ela riu fraco. — A galera tá surtada contigo mesmo… Mas então ela pegou o celular da minha mão. Sem pedir. E viu. Viu foto de mulher de lingerie. Viu DM de mulher chamando ela de “comum”. Viu comentário dizendo que ela não era suficiente. O sorriso dela sumiu. Eu senti minha respiração ficar pesada. Ela me devolveu o aparelho devagar. — Não liga pra isso, Thayan. É internet. — falou baixo. — Elas só tão falando à toa. — À toa? — repeti, sentindo algo explodir dentro. — Elas tão te desrespeitando. — Mas eu não me importo, então por que você— — PORQUE EU ME IMPORTO. — a frase saiu dura, seca, diferente de tudo que ela já ouviu da minha boca. Ela piscou, surpresa. Eu nunca tinha levantado a voz pra ela. Mas o homem que eu era antes do crime tava ficando pra trás. E o que tava surgindo agora… era outro. Ela tentou respirar fundo, tentando puxar o ar que ficou tenso. — Amor… são só comentários. — Comentários falando que você “não é tudo isso”. — apertei os punhos. — Comentários dizendo que iam te substituir. Comentários dizendo que iam te tomar de mim. — Mas eu não sou objeto pra alguém tomar! — ela rebateu, levantando da cama. E foi aí que tudo dentro de mim virou brasa. Eu levantei também. — Você não tá entendendo… — falei, com a voz baixa e afiada. — Falar de mim tudo bem. Agora falar de você? Mexer com você? Ela virou as costas, indo pra cozinha. — Eu não vou discutir por causa de Twitter, Thayan. Pelo amor de Deus— A raiva explodiu. Não como um grito. Não como um impulso infantil. Mas como algo escuro, pesado, que eu vinha alimentando sem perceber. E antes de notar, minha mão já estava fechando no cabelo dela, puxando com força. O corpo dela dobrou, o ar escapou num choque. — NÃO VIRA AS COSTAS PRA MIM. — minha voz saiu grave demais pra caber na cozinha pequena. Ela arregalou os olhos. E naquele segundo, eu soube. Eu tinha cruzado outra linha. Mais uma. E cada linha cruzada tornava mais difícil voltar. Ela tentou puxar o cabelo pra aliviar a dor. — Thayan… me solta… — Eu tô falando com você. — aproximei a boca do ouvido dela. — E quando eu falo, você olha pra mim. Ela virou o rosto. Devagar. Assustada. Ferida. Confusa. E entendendo exatamente quem eu estava me tornando. — Isso não é você. — ela sussurrou. O impacto daquelas palavras me acertou como um soco. Eu soltei o cabelo dela, mas fiquei perto demais. — Você é minha. — falei, sem filtro. — Minha. Eu protejo. Eu cuido. Eu faço o que tiver que fazer por você. Mas você não vira as costas pra mim. Isso não. Ela respirou fundo, tentando achar o equilíbrio. — Eu virei porque não queria brigar… — disse. O silêncio que veio depois pesou como fumaça densa. Eu estava quebrado. Cheio de raiva. Cheio de medo. Cheio de ciúmes. Ciúmes f**o. Ciúmes sujo. Ciúmes que nasce da insegurança e cresce na violência. Ela colocou a mão devagar no meu rosto. E eu devia ter recuado. Devia ter pedido desculpa. Devia ter feito qualquer coisa que não fosse ficar parado como um animal encurralado. Mas eu não era mais o Thayan. Eu era o Revoltado. E o Revoltado sentia tudo como faca. — Eu tô contigo — ela disse, quase num sopro. — Eu não quero ninguém. Nunca quis. Você sabe disso. Minha respiração falhou. Ela continuou, tentando me puxar de volta pra ela: — Mas você precisa confiar em mim. Precisa confiar que eu tô do seu lado. Eu fechei os olhos. O mundo tremeu. Por um instante, só um, eu dei dois passos pra trás. Passei a mão no cabelo, tentando organizar o caos. — Eu não queria… — falei. — Eu só… eu não aguento que falem de você. Não aguento imaginar alguém querendo você. Não aguento olhar essas merdas. — Eu sei. — ela disse, se aproximando de novo. — Mas você não pode descontar em mim. Não pode. Ela me abraçou. E apesar da minha mente estar em guerra, meu corpo cedeu. A segurei forte. Forte demais. Como se ela fosse escapar se eu afrouxasse um centímetro. — Você é tudo que eu tenho. — admiti, a voz arranhada. — Se alguém te tirar de mim… — Ninguém vai. — ela prometeu. — Só não me puxa assim de novo. Meu estômago virou gelo. Eu tinha mostrado minha pior parte. A mais sombria. A que eu escondi até de mim mesmo. E ela ainda estava ali. Maluco. Ou apaixonada. Ou tão perdida quanto eu. A favela acordava lá fora. O rádio chiava. Notificações continuavam entrando. Mas ali, na cozinha apertada, uma verdade me engoliu inteira: Eu tô mudando. E não para melhor. O crime tá me moldando. Me torcendo. Me fazendo virar algo que eu não reconheço. E ela? Ela tá vendo tudo. Sentindo tudo. Sofrendo junto. Enquanto segurava o corpo dela contra o meu, sentindo o tremor ainda preso nos ombros dela, eu tive um pensamento que me feriu mais que qualquer tiro poderia ferir. Eu amo ela. Mas eu tô aprendendo a amar do jeito errado. E o jeito errado machuca. De um jeito que, uma hora, pode não ter volta. E o pior? Eu já não sabia se queria voltar.
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