CAPÍTULO DOIS

1598 Palavras
CAPÍTULO DOIS A criança com grandes olhos azuis se sentava fitando o menino refletido no espelho que tomava a parede toda mostrando o menino na grande cadeira de couro enquanto o barbeiro aparava seus cabelos loiros desgrenhados. Sua mãe havia se sentado em uma das três cadeiras de metal dispostas perto da janela da frente da barbearia. Ela se entretinha lendo uma velha revista Newsweek. Era seu sexto aniversário e, ainda que não soubesse na época, sua mãe tinha organizado uma festa de aniversário para mais tarde naquele dia. Ao sentir as lâminas de metal geladas contra seu pescoço e ouvir o estalido, sentiu que o som era muito intermitente para vir da maquininha do barbeiro. Seus pensamentos fugiram da escuridão aconchegante do passado, tentando descobrir a fonte do zumbido. Enquanto sumiam, a cena da barbearia se desvaneceu lentamente, e seu torpor teve que lidar com a localização de seu corpo em um tempo e lugar específicos. De repente, se viu em seu apartamento e percebeu de onde vinha o som. Sua mão tateou em busca de seu celular na mesa ao lado do sofá e então se lembrou que o havia deixado no bolso da calça. O som irritante parecia estar vindo do banheiro. Com os olhos semicerrados, se levantou do sofá e cambaleou até o zumbido, quase tropeçando em seus sapatos, que tinha deixado no meio do chão da sala. — Oi? — Ei, tudo bem, mano? — Acho que agora está. Estava tirando uma soneca. — Desculpe por isso. Estou animado, cara. Meu AR-15 acabou de chegar. É uma beleza. Um Delton semiautomático. Também fiz um ótimo negócio com ele. — Certo, — disse Miles sem rodeios e depois fez uma pausa para esfregar alguma coisa viscosa do canto do olho. — Mas, por que você quer comprar uma arma? Especialmente um AR-15? Essa não é uma daquelas armas militares que todo caipira sonha em ter? — É, essa mesmo. — Achava que tinha algo contra armas. — Bem, sim, tenho. — Então, por que comprou uma arma de destruição em massa? — Acho que tenho essa curiosidade mórbida sobre o que ela faz. — Acho que sabe o que ela faz, cara. É a mesma arma que foi usada em Orlando, no pessoal do bar LGBT. — Ahã. E em San Bernardino. E em Aurora, Colorado. Lembra-se daquele estudante de medicina maluco vestido com roupas militares que cometeu uma verdadeira matança? — Mais ou menos. É o cara que disparou em um bando de frequentadores de cinema, certo? Ele entrou em um cinema usando gás lacrimogêneo e essa arma aí. — Sim, esse é o cara. Ele matou um monte de gente com ela. A arma perfeita para fazer o trabalho. Meio que uma coisa de doido. — Meio, não. Completamente. Talvez esse seja um dos pré-requisitos para comprar um fuzil militar. O que te deixa com algumas explicações a dar. Ei, não existe algum tipo de lei, ainda assim, sobre a compra de arma de fogo se você tiver menos de vinte e um? — Uma lei federal. Mas só diz respeito às lojas que vendem armas, não a um indivíduo que te vende uma arma pela internet ou em exposições de armas, sabe. Além disso, ainda há muita porcaria pelo qual precisa passar, mano. — Nem vou perguntar como a comprou. — Muito bem. Mas se quiser saber, te direi. Miles se afundou no sofá, deu um suspiro e depois começou a massagear os olhos. — Não, obrigado. Acho que não estou no mercado de fuzis, — disse sarcasticamente. — A propósito, tentei te ligar mais cedo. — Eu saí. Precisava fazer compras. — Compras? Tipo comida? — Tipo uma garrafa de molho Ragu e macarrão. — Consegue fazer outra coisa além de espaguete? — Não sei. Nunca tentei. — Ei, já ouviu falar de uma coisinha chamada livro de receitas? — Sim, cara. Mas por que eu precisaria de um? Sou bom com meu macarrão. — É, certo, cara. Então olha, você está com vontade de descer ao lago mais tarde? Vai ter uma banda tocando. — O lago? — Sim, no pátio do University Plaza. — Que tipo de banda? — Num sei. Mas com certeza é melhor do que ficar sentado a noite inteira sozinho, mano. — Talvez. — Talvez, uma ova. Vamos lá, cara. Vai te fazer bem sair. — É, está bem. — Miles estendeu os braços acima da cabeça e bocejou. — Quando? — Seis? Seis e meia? — Tudo bem, mas não traga seu novo brinquedo. Não quero que assuste ninguém. — Dá um tempo. — Isso, e você seria preso. A polícia te levaria para a cadeia ou um hospício. — Não se preocupe comigo, mano. Estou de boa. Te vejo às seis. Miles desligou seu celular e balançou sua cabeça de um lado para o outro. David era uma figura. Era único. Em primeiro lugar, não tinha ideia de porque seu amigo compraria uma arma. Se estivesse interessado em caçar ou fosse m****o de um clube de tiro, até ia. Mas, até onde Miles sabia, David desprezava armas. E um AR-15 dificilmente era o brinquedo para se levar a um campo de tiro. O que estaria pretendendo fazer? E a arma também não era realmente para caçar. Usar um AR-15 seria um exagero. Era como usar um trator John Deere para limpar um jardim de flores. Ele tinha lido em algum lugar que havia campos de tiro onde se podia levar um fuzil. A ideia parecia tão bizarra. Imaginou um monte de caras musculosos vestidos com uniforme do exército em que m*l cabiam, usando coletes acolchoados, com protetores auriculares e sombra sob os olhos. Amigos de paintball, formados em armas de destruição em massa. David simplesmente não se encaixava na imagem. Miles conhecia David Marsh desde o 2º ano do ensino médio. Os Marsh haviam se mudado de Nova Jersey quando o pai de David foi transferido para o escritório da Wells Fargo em Charlotte. David não era exatamente do tipo sociável. No ensino médio, era seletivo com quem andava. Tinha poucos amigos, ninguém próximo, a não ser Miles. Eles se conheceram no primeiro ano do curso preparatório de ciências da computação. O professor deles os fez trabalhar juntos em um projeto, e Miles descobriu que David morava a alguns quarteirões de distância, a poucos minutos de sua casa. Havia outra razão para David ter feito poucos amigos. Ele tinha uma opinião muito forte sobre praticamente tudo, especialmente a política, e começou a repreender qualquer um que o desafiasse. Nos dois últimos anos do ensino médio, Miles simplesmente tolerou David. Era fácil, já que Miles nunca tomava partido sobre eventos atuais, política, questões populares ou qualquer outra coisa. Ele era extremamente reservado e nunca falava de sua vida pessoal. Como um jogador experiente de pôquer, preferia segurar suas cartas junto ao peito, de modo que David nunca teve muita oportunidade de chegar a extremos. Eles jogavam videogame talvez uma vez por semana, mas nenhum deles parecia interessado nas coisas que entusiasmavam um adolescente do ensino médio. Como rap, filmes de terror ou ficar chapado. Eles não eram nerds, apenas solitários. Não tinham interesse em clubes escolares ou atividades extracurriculares. Nenhum dos dois praticava esportes. Embora gostassem de programação, Miles mais do que David, o clube de informática da escola não os entusiasmava, mesmo que o Sr. Klinker, o professor de informática, estivesse sempre os encorajando a participar. Principalmente Miles. Ele tinha uma habilidade especial em codificar e hackear. A parte de hackear, Klinker não sabia nada. Miles passava parte de seu tempo livre navegando em sites de hackers, visitando IRCs e checando a Dark Web. Ele tinha o Tor, o roteador cebola, instalado em seu laptop, o que lhe permitia navegar e bisbilhotar anonimamente. David fez alguns hackeamentos menores sob a orientação de Miles, mas nunca foi muito além. Ao invés disso, passava o tempo visitando blogs e conversando sobre política e questões sociais. Ele sabia um pouco sobre o Anonymous e tentou convencer Miles a se juntar a ele, mas nunca conseguiu entusiasmá-lo. David ficava todo animado com o comprometimento do Anonymous com atos de sabotagem corporativa. Ficava impressionado com a negação distribuída de serviço (DDoS) à empresas multinacionais, ao governo e aos sistemas bancários. Ainda que as autoridades classificassem estes atos como criminosos, David os via como justificáveis e heroicos, enquanto Miles os via como inúteis. Miles às vezes se perguntava por que continuava andando com David, mesmo agora depois de completar dois anos de faculdade, ou seja, dois anos de aulas aleatórias sem nenhuma ideia clara do que queria alcançar. Pensava que era porque David tinha um grande coração, era verdadeiro e não era o tipo de cara que menosprezava alguém. E também, não era muito divertido estar sozinho o tempo todo. Antes de partir para o pátio do University Plaza, Miles decidiu fazer um sanduíche e depois tomar um banho. Olhou para o relógio na parede. Ainda tinha uma hora antes de encontrar David no lago. Ele tinha lido algumas coisas sobre inteligência artificial e suas semelhanças com o cérebro humano. O livro se chamava A Sociedade da Mente, escrito por Marvin Minsky, o falecido guru da IA do MIT. Ele tinha lido a maior parte do livro em seu primeiro ano de faculdade e queria rever o que dizia sobre livre-arbítrio. Ele acreditava que o livre-arbítrio era o maior embuste de todos os tempos e achava que Minsky havia concluído praticamente o mesmo, mas precisava dar uma outra olhada na última parte do livro.
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