📖 Capítulo 5 – Sombra e Desejo

1540 Palavras
📖 Capítulo 5 – Sombra e Desejo Narrado por Kael  Desde a noite do baile, ela entrou como um erro gostoso que eu não sabia admitir. Tentei ocupar os dias com o trabalho de sempre: resolver pepino da boca, organizar a ronda, atender pedido dos meus caras que achavam que eu era solução pra tudo, ver armamento e carregamento de drogas. Mas a cabeça não desliga. No meio do corre, o rosto dela brotava ne minha mente — os olhos secos, a forma de como segurava a respiração quando lembrava da mãe. Era como ver um reflexo de mim em outro espelho, um espelho em que eu também já fui quebrado assim como ela. Quando a encontrei na laje, olhando o céu, eu soube que não era só desejo. Era reconhecimento. Ia além do calor do momento. Tinha história pesada naquele olhar, e eu senti, sem muita cerimônia, que aquilo podia machucar — ou curar. Não que eu quisesse cura. Eu queria entender. E, se tivesse de ser, proteger. Depois daquele pôr do sol, não tive sossego. Pus uns moleques pra observar, discretamente, sem ela perceber. Não por posse — não era esse o ponto — mas por cuidado. A favela é curva, tem buraco onde quem vem de fora cai fácil. Eu não queria que alguém a empurrasse por "descuido". No dia seguinte, desceram pro bar do Neto — lugar calmo, com banco de madeira rangendo, dominó sempre à mesa e cerveja quente que ninguém reclama. O bar é ponto de respiração da quebrada; tem gente que resolve problema ali, e tem gente que só vai encher o copo e esquecer. Fiz de conta que tinha compromisso de rua. Não tinha. Só a curiosidade ardendo. Zoio me seguia, lambendo um espetinho, jeito de quem sempre tem piada pronta. — Vai ficar só olhando, chefia? Ou vai lá se apresentar? — ele disse, mordendo a língua. — Vai devagar, irmão. Essa aí não é igual as outras — respondi, sem tirar os olhos dela. Ela estava sentada de frente pra rua, pernas cruzadas, o vestido leve esvoaçando quando o vento batia. Mexia no celular, ria com a Júlia de alguma bobagem, mas de vez em quando o olhar escapava e pairava distante, como quem revisita lembrança. O cabelo preso de qualquer jeito, as mãos pequenas — detalhes que me desmontaram mais que qualquer arma. Me aproximei devagar. NK fez um aceno sutil; o bonde sabia que quando eu me interessava, ninguém adianta. Respeito por instinto. — Achei que ia sumir de novo — ela disse antes que eu abrisse a boca. A naturalidade da frase me pegou. Não tinha escudo, era casual. Isso me fez querer a riscar todo plano. — Quem some, não quer ser achado. Eu só tava respeitando seu tempo — respondi. — E se eu não quisesse que você respeitasse? — rebateu, com faísca nos olhos. Júlia, que tava ali perto, arqueou a sobrancelha e fez sinal de “se fudeu”, mas já sabia que ia perder a conversa. Ela se afastou com uma amiga, deixando o espaço nosso. O bar ficou mais barulhento ao redor, com o som do dominó e vozes, e a gente ali num silêncio que falava. — Então cê vai ter que me dizer — falei, direto. — Porque eu não corro atrás de quem não quer ser alcançada. Ela mordeu o lábio, fez um meio sorriso, e por um segundo pensei que era truque de menina. Mas a mão dela tremia um pouco. Pequena falha. Humana. — E se eu quisesse? — perguntou, encarando com coragem. — Aí cê me diz. E eu venho. Sem freio. — Respondi e senti que soava promissor demais para ser só conversa. O bar ao redor seguia com sua rotina; Zoio fazendo papel de bobo da corte, NK trocando ideia com o motoboy, velho do dominó resmungando vitória. Mas ali, naquele quadrado de madeira, meu mundo reduziu a ela. Não era só t***o. Era um conjunto: dor, coragem, uma vontade de proteger algo que eu não poderia medir. — Você sempre fala assim? — ela perguntou, com mistura de desconfiança e curiosidade. — Só quando sinto que vale a pena — respondi, sem vacilar. Ela riu curto, quase timidez. — E você acha que eu valho? Cheguei mais perto. A respiração dela bateu mais forte, eu senti. A resposta saiu em voz baixa, quase rouca: — Tô aqui, não tô? Foi simples. Foi direto. E ela sorriu — sorriso que não era só de boca; chegava aos olhos. Eu senti o golpe. Era problema. Bom problema. Péssimo problema. Naquela tarde, entre goles e papo curto, eu vi que ela não era ilusão. Ela tinha medo do mundo, mas não se curvava fácil. E havia, por trás da fragilidade, uma resistência que me atraiu como nada antes atraíra. Queria saber do limite dela. Queria ser o homem que ajudava a dobrar esse canto torto sem esmagar. — Me conta — disse, num impulso. — O que te trouxe de verdade até aqui? Ela ficou quieta, mastigou as palavras. Olhou pra Júlia, que fazia força pra parecer desinteressada, e voltou pra mim. — Tinha que sair de casa — falou, seco. — Eu não aguentava mais o silêncio, as perguntas, a cara do meu pai. Vim porque… precisava tentar não me afogar. Thump. O impacto foi direto no que sobrou de humano em mim. Quando fala de pai, minha cabeça voa pra tempos meus — o peso, a falta de pai que educa com colo e os erros que geram mais erros. A gente, sem perceber, reconhece a ferida no outro. — Aqui embaixo não é colo — falei — é outra forma de sobreviver. Mas se for pra respirar, a gente arranja fresta. Só não acha que é fácil. — Não quero fácil — ela disse, firme. — Quero aprender a respirar do meu jeito. A frase bateu. Fiquei em silêncio, olhando. Isso não era apenas desejo juvenil. Tinha vontade de levantar, pegar a mochila dela e garantir que nada chegasse até ela. Mas eu sei o preço das minhas decisões. Sei o que ser próximo significa: alvo, responsabilidade, cobrança. E tinha medo de que, ao aproximar alguém, eu acabasse trazendo pro pescoço dela mais do que poderia proteger. — Você tem medo do que eu sou? — perguntei, franco. — Tenho medo do que eu vou virar ao me aproximar — ela respondeu, sem hesitar. — Tenho medo de que a dor dela se misture com a sua e eu não consiga mais separar. Aquela resposta foi uma rajada de vento que deixou o bar frio por um segundo. Porque eu sei bem: há dores que, quando somadas, viram ruína. E eu já vi casamentos e amizades desmoronarem por falta de espaço para respirar. Ainda assim, algo em mim gostou dessa honestidade. Era raridade. — Então a gente constrói fresta — falei, quase em pensamento. — Devagar. Do jeito que der. Um homem alto do bonde se aproximou e me chamou de canto. Assunto da quebrada, problema com um fornecedor de gás; eu ouvi o suficiente pra saber que era bobeira, mas precisava ir. Levantei, olhei pra ela. Meu corpo queria ficar. — Volto já — prometi. — Vai lá, chefe. Mas não demora, hein — Júlia apareceu, sorrindo e fingindo bronca. Saí, mas a imagem dela ficou. Na esquina, dei um trago no ar como se guardasse um pouco de silêncio. Pensei no que seria ter alguém assim perto: cuidado que pesa, carinho que exige coragem. Eu não sou homem de me entregar fácil. Também não sou homem de mentir sobre o que posso carregar. Ao voltar, percebi que ela conversava com uma menina, rindo leve. A cena me atravessou com ciúme bobo e absurdo — sinal claro de que eu já tinha virado problema por ela. Sentei, pedi mais uma cerveja, e deixei o mundo girar ao redor enquanto eu decidia se queria o risco. No fim da tarde, quando a luz ficou morna e as ruas começaram a acender, cheguei mais perto e falei baixo, quase segredo: — Olivia, eu posso ser sombra ou sol. Depende do dia. Mas se tu quiser, eu fico por perto. Só não me cobre ser santo. Ela olhou. Havia fé e medo no rosto. E, por um segundo, segurou minha mão — nada grandioso, só mão beijando mão — e disse: — Não quero santo. Quero alguém que me olhe de verdade. Apertei a mão com força contida. A favela riu alto ao nosso redor, o velho virou a peça de dominó e gritou vitória. A vida seguia, com seus barulhos e seus pequenos milagres. Eu me senti, pela primeira vez em muito tempo, disposto a correr um risco que eu não sabia se podia vencer. E naquele instante entendi: Olivia era problema. Daqueles que viciam. E eu, que já vivi muito e esperei pouco, me vi pronto pra apostar minhas fichas. Mesmo sabendo que por trás daquilo tudo havia sombra — a minha própria — e desejo — o dela e o meu — decidir ficar assim não era coragem só, era sentença. Mas sentenças, às vezes, são a única maneira de ver se a ferida vira história ou só mais cicatriz.
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